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Alexandre Chaúque

Alexandre Chaúque

quinta-feira, 22 fevereiro 2024 07:16

Ainda sobre o pórtico dos escravos

Virado para o mar, para sempre, o pórtico dos escravos guarda em silêncio as dolorosas memórias dos gemidos. Das torturas. Dos escárnios e das revoltas. Mas nem parece que será daqui onde vão partir sem regresso, os homens acorrentados e empurrados pelos açoites para o interior dos porões sombrios, sem sequer lhes darem a oportunidade de acenar pela última vez para as belíssimas paisagens em todo o percurso a partir da baía, passando por Mucucune e praia da Barra, com Linga-Linga à ilharga até ao Mar Alto, de onde a terra já não se vê.

 

Revisitei ainda esta semana, sem entusiamo, este lugar que fará da cidade de Inhambane inteira, um património da humanidade, e desta vez, em vez das dores vocalizadas dessa fase cruel das grilhetas, senti as canções cantadas em côro para celebrar a poesia. Então, os escravos estão vivos, despidos de mágoa e rancor. O que deixaram para trás cabe a nós preservar, não a eles.

 

Os escravos não carecem das nossas lágrimas, a quem gravita na órbita das luzes brilhantes do pós-morte não se chora, aclama-se como aos actores reais que usam os palcos como Céu, onde a dor não existe. É por isso que, passando por aqui hoje, não se sentem os arrepios dentro de nós, os escravos não estão mais onde jazem os cheiros dos seus corpos tatuados com ferro aquecido em fogo, eles já não se lembram disso, nós sim.

 

Mas não é justo que ao pórtico seja impedido o mar. O mar já não se vê a partir daqui. Barraram-no com construções que representam a anarquia e a desvalorização do belo. É como se eu estivesse a ouvir, passando por este memorial, as vozes dos escravos  em torrente dizendo: derrubem essas barreiras por favor, queremos contemplar a nossa bela baía! Rebentem com isto! Liberdade!

 

Mas esses gritos não serão, comcerteza, dos escravos, são da minha imaginação, dos meus sentimentos, “Rebentem com isto!”. Os escravos já não reivindicam, jamais voltarão a materializar-se, eles agora cantam e dançam danças jamais vistas e cantam novas canções, diferentes das que entoavam nas plantações da prosperidade alheia, já não se lembram das feridas da carne e da própria alma agora livre para sempre.

 

Rebentem com essas construções em frente ao Pórtico dos escravos, porque queremos contemplar o mar e perscrutar os sons da história produzidos pelos pés descalços dos escravos chapinhando na água para terras de longe. O mar é a nossa poesia, é a nossa música. Então rebentem com isso, e deixem os escravos livres!

segunda-feira, 12 fevereiro 2024 07:57

Sou a Zaida Lhongo, vossa maluca agora no cosmos

Fiquei feliz, eufórica como nunca, no dia em que o meu corpo descia para sempre ao depósito das ossadas. O centro era eu, de todas as vossas comoções. Senti o amor inteiro que tendes por mim, da mesma forma que acontecia em palcos infinitos, todos queriam me ver. E abraçar. E dançar comigo. Parecia que o sol nascia de novo depois de fenecer em noites de promessa e de loucura. Mas eu era erguida por vós. Oh, meu Deus, como foi bom! Obrigada!

 

Lembro-me que toda a av. Eduardo Mondlane na cidade de Maputo, enquanto era transportada a minha carcaça pelas ruas do povo,  tornou-se palco também, igual aos espaços de música onde me colocavam como estrela que enloquecia a todos vocês.  A “24 de Julho”, a Av. de Moçambique! Senti meu coração a engordar ao ver nos prédios gente espreitando e  atirando flores imaginárias e beijos para mim, dizendo, hamba kalhe, Zaida (vai em paz, Zaida). E eu dançava em espírito, sem que me vissem.

 

Todos queriam testemunhar a derradeira partida do  meu corpo, sabendo que nunca mais o veriam nos movimentos sensuais que serão o vosso delírio. Queriam tocar minha carne pela última vez, e na impossibilidade de fazerem isso, muitos penduravam-se nas árvores do cemitério à volta do sepúlcuro e choravam lágrimas de amor como se eu fosse a deusa deles. Outros ainda, em vários cantos da cidade e do país, em cachos humanos, deixavam minha música tocar em aparelhos de vários tipos, resignados perante algo irreversível. O meu corpo é irreversível.

 

Mas a culpa de toda esta glória  da qual desfruto hoje, é do Carlos Lhongo, meu marido, rendido ao encanto da minha postura em palco e do meu corpo esbelto feito para se desembrulhar por inteiro na dança, sem preconceitos. A minha vocação não era o microfone, era o chão que sempre vesti com os pés nus, porém acabei  cedendo ao chamamento do Carlos que dizia, Zaida, daqui para frente  vais cantar e dançar. E eu disse que sim. “Se você quer que assim seja, eu também quero que assim seja”.

 

Agora é que percebo que a música não é escutada em função da língua ou da sua origem, música é música, em todo o lado, basta que ela nos penetre o coração. É como a dança, quando é bonita será celebrada. Se assim não fosse, então eu não seria aclamada em Pemba, em Nampula, em Niassa, em Tete, na Zambézia, em Sofala, em Manica, onde não entendem a minha língua. Mas todos desejavam ir aos palcos onde eu estivesse, não queriam me perder.

 

E hoje sou uma mulher feliz, tão feliz como quando estava imbutida no meu corpo sem limites. Estou no cosmos insondável onde não há gravidade, vivo leve como a pluma que não poisa. Exulto sobretudo quando me lembro das noites soberbas em que ninguém queria que amanhecesse.

 

Sou eu a Zaida Lhongo, vossa maluca. Os vossos aplausos eram a minha rampa, faziam-me voar. Cada vez que me ovacionassem, eu ficava mais maluca ainda, então a culpa não é minha, é vossa.

 

Muito obrigada a todos.

sexta-feira, 02 fevereiro 2024 11:41

Assim no tempo de João de Sousa *

A primeira impressão que tenho dele, ao vê-lo,  é de que estamos perante uma figura frágil, pela forma como se move pisando a terra na vertical. Fica-nos a imagem de um taciturno. Um indivíduo com medo de avançar.  Ele tacteia o chão com a perna direita que baila no ar antes de assentar a leve planta do pé. Dança hesitante uma dança desconhecida, em contraste com a voz límpida onde mora toda a sua alma.  Aliás, é com a voz timbrada que  combate todas as vicissitudes, e leva os delírios  dos estádios à todos os cantos das nossas casas. E a todos os lugares.

 

Mas também com o nome de João, tinha poucas possibilidades de não luzir, e ele fez isso, como se as auroras lhe pertencessem. João de Sousa é um megafone elegido, através do qual  vamos receber todo o turbilhão dos campos de jogos, que agora voltam a vibrar depois do silêncio após o último suspiro de uma estrela que nunca descansou. E se a vida é inesperada, então a própria morte também o é. Como agora, que ruíu para sempre esse pilar que sustentava na sua medida e peso, a plataforma do desporto nacional.

 

Os xiricos e os grundigs e os philips, derrubados pela tecnologia imparável, lembram-se com certeza, mesmo nas catacumbas, da voz do João de Sousa. Ele vibrava com as multidões que foi alimentando durante tempos sem fim. Como se cada relato fosse o último, ou o primeiro, numa longa jornada de vida levada na intensidade. A sua arma  era o microfone, funcionando como escafandro na penetração das peripécias do jogo. E tudo o que ele fazia, passava primeiro pela filtração do fogo, como o ouro que se pretende puro.

 

É esta a figura que excedeu os limites, mostrando igualmente, a par do conhecimento profundo sobre o desporto, a sua desmedida paixão pela música. Pela boa música. E nunca será repetitivo dizer isso, pois, programas como “O fio da memória” e “História das Músicas”, trazem-nos uma pessoa culta e preocupada em renovar as memórias. Ele tinha medo que a juventude se perdesse, por não saber de onde vêm estes ventos todos que fundamentam a arte e a cultura. Não queria ser cúmplice da falta de testemunho.

 

Agora cabe-nos prestar vénia ao homem de convicções inabaláveis. Que se recusou a abandonar os mares, pois sem as águas, as guelras do João de Sousa deixariam de insuflar oxigénio para alma. Haveria a morte por dentro. É por isso que estava sempre alí, no centro social da Rádio Moçambique onde se juntava aos amigos, aos velhos amigos, atraindo também a juventude que queria ser  como ele. Eram as pessoas e os jogadores e os amantes do desporto que lhe faziam viver, como se estivesse no marulhar dos grandes estádios, onde a sua voz de ouro misturava-se com o entusiasmo das multidões.

 

João de Sousa, um facebookista generoso, nunca se cansou de nos lembrar os feitos de grandes figuras do desporto e da cultura, e também da política. Esse gesto deixava-lhe com o coração cheio. Os likes e os comentários que recebia de inúmeros facebookistas  que lhe seguiam, eram o sinal de que a vida só é bela quando a partilhamos. E João fazia isso com alegria. Com entusiasmo. Com engajamento.  E continuou a fazê-lo mesmo estando no derradeiro desfiladeiro da vida, sem saber que estava.

 

Quando ele partiu, para sempre, era como se o estádio da Machava estivesse abarrotado no tempo dos Xiricos e dos Grundgs e dos Philips, aplaudindo um jogo que vai começar daqui a pouco. Os que não puderam ir estão em casa colados aos receptores, ansiosos, e no estúdio da Rádio Moçambique  está um locutor que chama: alô João de Sousa, alô João de Sousa! E o relator não consegue entrar em linha, há um problema de retorno. Alô João de Sousa, alô João de Sousa! Nada!

 

Os técnicos que estão no campo, e outros técnicos que estão na sede, entram em pânico porque não conseguem ouvir do outro lado a voz do João. Alô João de Sousa, alô João de Sousa! Também nada!

 

O  ambiente do público é que triunfa: hooooooooooo!!!! Hooooooooo! Mas João de Sousa, nada! Os técnicos insistem e....nada! E o jogo já decorre há meia hora, intenso, com a nossa selecção a ganhar por duas bolas a zero.

 

Alô João de Sousa, alô João de Sousa! Até que o relator, finalmente, passado o tempo de sofrimento, responde quando decorria o segundo tempo: Boa tarde estimados ouvintes! Faltam dez minutos para terminar a partida, Moçambique ganha por duas bolas a zero. O estádio está completamente cheio, com pessoas penduradas nos postes de iluminação. A nossa selecção está endiabrada. É indiscritível o que está a acontecer no Estádio da Machava......

 

Apesar de nos dizer que é indiscritível  o que está a acontecer, ele descreve tudo de forma detalhada, numa situação em que o tempo não lhe dá muito pano para mangas. O juiz apitou pela última vez, permitindo a que João de Sousa gritasse: termina a partida! Moçambique ganhou por três bolas a zero!

 

 Mas o guerreiro deixou as armas cá fora para quem as quiser aproveitar. O cheiro do João de Sousa impregna-nos como país, que ainda tem muitos golos por marcar. Ainda teremos muitos jogos por realizar, com a voz do João em “off” na memória. As músicas do “O fio da memória” e de “História das Músicas”, iremos cantá-las nas madrugadas em que já não seremos nós os ouvintes, mas o João que nos escutará no silêncio do pós-atmosfera. Também os pavilhões de básquetebol ressurgirão sem o João, lembrando as noites de glória. Era o João que gritava: sacôôôôôô!!!!!!!

 

*Texto em homenagem a João de Sousa, pela pasagem dos quatro anos após a sua morte

Mas o que retornou ao pó de onde veio é a minha carne, não sou eu. Eu continuo viva em espírito, levitando nos mesmos palcos que fizeram de mim a parte pequena da luz do universo. Estou nesses escaparates em silêncio, sem dizer nada, mantendo porém  o entusiasmo e a euforia dos tempos em que, como uma das pétalas do Eyuphuru, esvoaçava com alegria, usando a minha voz de passarinha matinal. Não me canso de agradecer aos briosos rapazes macuas que me encontraram na rua sem direcção e disseram, Zena, venha connosco!

 

Vivi os momentos mais felizes da minha vida, amalgamada numa banda alimentada por búzios de Muhipiti, parecia eu o motor, mas não, o motor era o próprio Eyuphuru, então esses rapazes eram a minha catapulta, sem eles jamais seria alguma coisa.

 

Recordo-me ainda das actuações inolvidáveis que fizemos no Mundo, com batuques e violas acústicas, aplaudidos sem parar pelas massas populares que vinham até nós, de vários cantos, atraídos pela nossa perfomance e pela voz do Gimo e da minha também. O Eyuphuru colocava-me como a estrela deles, são eles que me davam a luz, como o sol que faz isso à lua. Na verdade a luz que acendia em mim não era minha.

 

Hoje estou aqui de novo para agradecer ao Eyuphuru, não me canso, é por isso que sou feliz. Quando eles vão aos palcos, agora que sou uma galaxina, vou também e fico em silêncio ouvindo tudo e no fim do espectáculo recuso-me a ir com eles  aos camarins, desço ao chão da plateia onde me junto ao mar de gente e ovaciono juntamente com aqueles que sempre nos aplaudiram. E como tenho esta possibilidade, aclamo também o Gimo Remane lá longe.

 

Sou eu, a vossa paixão, que um dia teve o privilégio de ser um poço elegido, ao mesmo tempo uma passarinha, como é bom! Afinal o meu corpo não passava de uma carcaça onde minha alma morava! Mas passei toda a vida cuidando dessa carne agora putrefatacta e tornada banquete dos vermes, com banhos diários e perfumes e batons e cremes,  para que houvesse nela o brilho. Porém isso não me entristece, sem o corpo que me acolhia, não teria sido conhecida por vós.

 

Agora estou aqui em cima ouvindo música sem fim, e cantando também em coros transcendentais no seio dos meus antepassados e dos anjos anunciados. Os movimentos que aqui se fazem são comandados pelas harpas e cítaras e solfejos. E tudo isso faz-me lembrar os tempos áureos do Eyuphuru, é por isso que vim hoje para dizer Ochukuru!

quinta-feira, 18 janeiro 2024 08:34

Chico António: essa rede de emalhar*

Já ninguém pergunta, “quem é aquele velho de cabelos de prata?” Ele próprio, o Chico, descomplexou-se. Também já não pergunta,”onde é que fica o mercado?”. Conhece tudo isto de ponta a ponta, de olhos fechados. Caminha pelas ruas pacatas da cidade, e em cada aurora vai ganhando novo sangue, recusa-se a ser “viente”. Saúda as pessoas em bitonga, língua que nunca antes sonhara, nem os seus antepassados. E para decifrar todas as parábolas, agora vocaliza em tom baixo, aos poucos amigos, dizendo que a sua vontade é ficar nesta terra. Para sempre.

 

Já foi enfeitiçado pelo silêncio da poesia das mulheres que o olham de esguelha, pelo sossego. Volta e meia vai, depois torna a voltar, como as águas do mar que enchem e vazam num ciclo sem fim. Mas a “Terra da boa gente”, lugar escolhido pelo “Estúdio Bom dia” para a comemoração do 25 de Setembro, dia das Forças Armadas de Moçambique (FADM), parece ser o último albergue  do autor de “Sineta”, um tema musical suave e profundo, criado para ostracizar o mau agoiro e exaltar o amor e a fidelidade. É por isso que Chico não sai daqui, estará cá novamente, como o sol que não se cansa de nascer, mesmo que os poentes se multipliquem.

 

Desta vez não vem sòzinho. O “Estúdio Bom dia”, que tem na testa o Roland Mudungaze,  enloqueceu. Traz uma panóplia de grandes músicos que virão juntar-se aos de Inhambane e fazerem uma festa imprevisível em termos de emoções. Tudo indica que haverá um derramento. Do próprio coração. Há uma grande espectativa, até porque reside neste movimento o desconhecido. Há bandas e músicos que os manhambanas nunca ouviram cantar, nem nunca viram tocar, então será uma oportunidade para outras experiências.

 

Inhambane tem sede permanente destes eventos, e ainda bem que o Centro Cultural Machavenga, escancarado para um lago com esse nome (Machavenga), existe. Como forma de dar oportunidade a outras sensibilidades, é uma maneira nova  que surge. Ou seja,  a criação deste lugar projectado por Filimone Mabjaia, vem desmentir que o turismo na cidade de Inhambane sejam só as praias. Por isso a  lagoa de Machavenga tem esse condão. De cantamorfosear..

 

Chico António anda em Inhambane há aproximadamente dois anos. Chegou a estas terras em cumprimento de  um projecto que está sendo seguido sem pressa, quer dizer, ele está nos estúdios “Bom dia” para gravar um disco que irá sair a seu devido tempo, quando estiver maduro. É assim que, desde o primeiro dia,  tem feito um Up and down (Maputo-Inhambane, Inhambane-Maputo), num processo que vai entranhando os temperos do CD, sob direcção de Roland Mudungaze, um austríaco com tendências profundas de rock-blues, mas que as circunstâncias da vida e da música, levaram-no a trabalhar noutras coisas. E tem feito isso com pragmatisco.

 

É isso: Chico António tem sempre uma luz fora do túnel, para que todos amanheçam, é por isso que jamais desvaneceu. Desde que entrou para a estrada, nunca parou de andar. “Tenho tropeçado muitas vezes, mas não aceito ser vencido, embora venha perdendo muitas batalhas. E para te mostrar a minha fé e teimosia, estou aqui de novo, para celebrar o 25 de Sertembro com os manhambanas. Isso significa que estou vivo”. E essa vitalidade repetiu-se na homenagem ao Guita Jr e Momed Cadir. No Centro Cultural Machavenga.

 

É isso: Chico António é rede de emalhar, que se move com propulsão própria!

  • * Texto rebuscado da parede da memória (reescrito - publicado em 2022)

Mas o que me revolta é o facto de a instituição ligada às estradas e pontes em Moçambique, nomeadamente a Direcção Nacional de Estradas, ter vindo a terreiro dizer que as correntes que seguram uma parte da plataforma da ponte, cederam como consequência da passagem de um camião sobrecarregado de mercadoria, em desobediência aos limites de peso impostos na infraestrutura. Revolta-me que a culpa seja atirada inteiramente ao camionista violador das normas, sem nos explicarem que camião é esse, qual era o destino e que carga trazia e o que foi feito para a devida responsabilização, isso seria o mínimo que se exigiria na prestação de contas.

 

A ponte Samora Machel na cidade de Tete, que liga a urbe e os bairros Matundo e Chingodzi e ainda permitindo a passagem para Zâmbia e Malawi,  esteve temporariamente interdita a circulação de viaturas durante 48 horas, entre sexta feira e sábado últimos, criando grandes transtornos à livre circulação de pessoas e bens, por conta de um camião com excesso de peso que supostamente terá rebentado com um suporte da plataforma. Supostamente porquê? Supostamente porque antes já passaram, muito provavelmente, uma vez não havendo controle,  muitos outros camiões com peso para além do permitido, até que  se atingiu o ponto de saturação, e a DNE não fala dessa possibilidade. A culpa, segundo a instituição, é do último camião.

 

A pergunta é: o que foi feito ao camionista? Quais são as demarches que estão sendo encetadas a partir deste incidente, com vista a que se respeitem os limites de carga e se proteja a ponte? Afinal não há báscula de controle? A culpa será, efectivamente, deste camionista “desconhecido” e de outros antecessores?, Ou é da Direcção Nacional de Estradas que tem por obrigação controlar o tráfego no local! Estamos a perguntar!

 

Afinal a cidade de Tete ainda é causticada pela passagem de camiões que demandam países do interland, nomeadamente Zâmbia e Malawi, por via das fronteiras de Kassakatiza e Zóbwè, respectivamente? O que é que passa! Expliquem-nos por favor.

 

No tempo da governação de Armando Guebuza, foi construída, a partir da zona de Mpádwè, uma ponte robusta baptizada Kassuende, exactamente para desviar os camiões que passavam pela cidade com carga pesada, criando longas filas e por consequência, o caos. Era esse o objectivo principal que se tinha na edificação da Kassuende (aliviar a urbe e a ponte Samora Machel), testemunhando a obstinação e audácia de um presidente que queria e estava a atingir altos rendimentos e níveis notáveis de desenvolvimento. Então, queremos que alguém venha nos explicar porquê que os camiões da Zâmbia e do Malawi ainda sulcam a cidade, pressionando por outro lado, e principalmente, a ponte Samora Machel.

 

Foram 48 horas de nervos entre sexta feira e sábado, numa situação evitável. E já agora, os camiões continuarão, ainda assim,  na saga de “destruir” a cidade de Tete, ou então terão que usar a ponte Kassuende, projectada para efeitos mais do que claros!?

quinta-feira, 28 dezembro 2023 08:51

Passei o Natal sòzinha... como um mamarracho

No dia 24 não dormi, passei a noite inteira ouvindo a música que tocava aqui ao lado da minha casa, boa música. Até porque tinha sido convidada pelo meu vizinho, uma pessoa afável que me trata como sua filha, mas eu disse a ele que não. Ainda perguntou se podia trazer alguma coisa para comer, também disse que não. Na verdade não queria nada, o meu desejo era sentir a acidez das feridas que me cobrem o espírito, resultantes da colheita dos ventos que andei a semear ao longo deste tempo todo.

 

Mas eu preciso de um catalizador para ouvir música, então deslizei à um lugarejo imundo e sombrio onde se vende aguardente de cana de açucar e comprei um litro, depois voltei para casa despida de esperança, com todos os espinhos caíndo sobre a minha cabeça. Aliás, antes de chegar aos meus aposentos lembrei-me que não tinha cigarros, logo rodei sobre o meu próprio eixo e voltei à adega e adquiri dois maços de GT que me vão alimentar sem privações, à par da cannabis que não me pode faltar.

 

Já estou aviada, e o que me resta é viver. Ainda bem que há uma consonância entre mim e o meu vizinho em termos de gostos musicais. Ele sabe que fui educada nessa linha de fazer da música um alimento imprescindível no cardápio do espírito. É como se tivéssemos andado na mesma escola onde os solvejos ocupam um lugar especial nas composições. E eu sinto-me feliz assim, estando na plateia deste lado, e o meu vizinho estando no palco do outro lado.

 

Não há vozearia num ambiente de família onde o som da música é ameno, agradável. Eles conversam baixinho, harmoniosamente, sem atrapalhar a música que me chega ao fundo do coração, e nem parece que estou sòzinha, nem parece que sou um mamarracho. Mas eu adoro ser mamarracho porque assim ninguém quer saber de mim, a não ser o meu vizinho que passa sempre da minha casa, e pergunta, como estás minha querida?

 

Vivo da pensão do meu marido, morto por doença estranha, provavelmente por desgosto que lhe criava. E como se fosse pouco, fui corrida da nossa casa, pela família dele, acusada de ter sido eu, por via do feitiço, a causadora do infortúnio. No fundo prestei um grande contributo na sua morte. Enfeiticei-lhe com a minha vida desregrada, sem respeito àquele que me amava e cuidava. E eu nunca o respeitei.

 

Agora vivo nesta cubata desgraçada como eu. Não consigo melhorar as condições da habitação, pois invisto todo o dinheiro na cachaça para ver se esqueço a dor. Nem telefone tenho, para quê? Quem é que vai me procurar se nem filhos tenho! Eu também não tenho a quem procurar, a quem chorar. Então para quê o telefone!

 

Mas passei o dia Natal no paraíso, ouvindo a música que tocava em casa do meu vizinho, lembrando-me os momentos de levitação que vivia com o meu marido, ele que me ensinou a ouvir boa música. E agora só me restam as lembranças enquanto vou arrastando a minha carcaça alagada de cachaça.

Tudo o que vou dizer aqui, pode parecer repetitivo, mas a vida é isso mesmo, um eterno recomeço. Estaremos sempre nesse ciclo sem fim, procurando a perfeição, ou seja, parafraseando o poeta Kalungano, a perfeição é como o sol, quanto mais nos aproximamos dele, mais ele se afasta. Mas é aí onde mora a beleza da existência do homem, que não cessa de procurar a luz.

 

Pois é! Eu não sei exactamente se a arte é a luz em si, ou é um simples interruptor. O que sei, porém, e não terei dúvidas sobre isso, é que sem a arte jamais seremos alguma coisa. O próprio ser humano é uma obra de arte. O universo, dentro do qual correm os rios e os mares e reverberam as cores do arco-iris e ouve-se a música dos pássaros, tudo isso é uma obra de arte, então significa que esta exposição que se estende diante de nós, vem nos lembrar o valor da arte e dos artristas que a corporizam.

 

“Geração Wagaya” não pode ser apenas um slogan, é mais do que isso, é um grito. É um rito. “Geração Wa Gaya” é poesia. E o poeta não se cansa de voar, nem que as pessoas não se importem com a leveza insuperável das suas asas. O artista plástico é igualmente assim, ele não espera. Plana constantemente. Você é que tem de esperar pelo comboio, nem que a espera seja longa. E vai ser um regalo contemplar estas obras todas que nos são aqui presentes, passando por elas, mais a alma do que olhos.

 

Sim, é necessario voltar a dizer que aqui neste estendal temos pintura, escultura de madeira, cerâmica e desenho, tudo isso amanhado por mãos delicadas que tratam os materiais como se acariciassem a parte mais macia da mulher. Ou ainda, mesmo quando o artista usa o formão ou o martelo para fazer com que a madeira respire, fá-lo com amor para que haja orgasmo.

 

E os nomes dos artistas que nos convocam a este acto de contemplação, de sentimento, de absorção espiritual, devem ser mencionados em voz alta para que sejam conhecidos pelos flamingos que esgravatam as amêjoas aqui mesmo ao lado, na nossa baía. É extraordinariamente cativante ver esses pássaros pernilongos procurando o alimento com as patas. Parecem dançar. Uma dança desconhecida.

 

Então vamos nomea-los, para que os espíritos se regozigem deles: António Marcelino Costa, Azevedo Munhaua, Adil, Anselmo Razão, Matomo, Nhambo, Arão Buque, Mujime, Sebastião Matsinhe, Amilton Massicame, Nélio Guambe, Lizy Guambe.

 

São 47 obras expostas numa mostra que orgulha a cidade de Inhambane. Aliás esta é uma das várias etapas de um percurso que começou há mais de dez anos. Quer dizer, os artistas desta terra juntam-se aos finais de ano e exibem os seus trabalhos, também como forma de presentear os turistas e não só, agraciarem os manhambanas vivendo numa cidade que infelizmente está em estado de degeneração histórica.

 

Recorde-se que nos primeiros cinco anos deste projecto de sonho, havia muita intensidade, mas é preciso manter esse entusiasmo. Exposições desta natureza serão o outro lado dos nossos pulmões espirituais. Queremos continuar a respirar.

 

Mas para que este movimento não desvaneça, os artistas, mais do que nós outros que só estamos aqui para apreciar e sentir a leveza e profundidade de uma obra de arte, precisam de um incentivo impresicindível que é a mola de impulsão e essa mola de impulsão chama-se dinheiro, para que eles continuem a criar. É aqui onde são chamados os mecenas e os próprios dirigentes do Estado, que podiam comprar um quadro e deixá-lo na recepção para que a arte triunfe, e os artistas vivam, mais do que sobreviver.

 

Estão de parabéns todos os artistas que dão corpo a esta mostra e ao projecto Geração Wagaya.

 

*Apresentação da exposição “Geração wagaya” a decorrer na cidade de Inhambane, de 12 de Dezembro a 12 de Janeiro, na Casa da Cuktura

sexta-feira, 08 dezembro 2023 09:46

Um panegírico ao Daniel Cuambe

Escrever várias histórias sobre o mesmo homem, jamais será redundante, e as mesmas histórias podem ser contadas de formas diferentes até que não se atinja a exaustão. É como ir ao rio e ver na ilusão do sentimento e da óptica, as mesmas águas que nos vão banhar o corpo e deixarem-nos frescos. Todos os dias. Então, Daniel Cuambe era isso, como o rio permanente. Que nunca seca, nem que venham as estiagens mais devastadoras.

 

Na Redacção do jornal Notícias onde o conheci melhor, o mano Dany, como era tratado pelos colegas e pessoas mais próximas, destacava-se pela predisposição de articular a palavra sem fim, suportada por um sentido de humor contagiante. Era homem de olhar discreto, mas muito atento. E esse detalhe avisava-nos da presença de um ser inteligente, preparado para todos os momentos e todas adversidades.

 

Mano Dany nunca escondeu a sua paixão pelo jornalismo. Era nesse campo onde a sua vida encontrava suporte e fazia sentido, actuando como um grande jogador de reagueby, sempre a correr com a bola nas mãos ao encontro da luz. O futuro para ele não tinha importância, era preciso viver como o tecelão das redes de emalhar, que trabalha com entusiamo todos os dias sem cansar. É por isso que a euforia do mano Dany não acabava.

 

Há momentos, muitos momentos em que o mano Dany dispensava as palavras, que adorava libertá-las como aos pássaros, para deixar que seja a gargalhada sonora a troar, impregnando o ambiente com alegria inefável. Era um actor seguro. Sabia que as pessoas esperam sempre dele algum gesto, talvez uma frase improvisada, porém suficientemente temperada, e ele sabia disso. Mas nunca teve medo que alguém o aguardasse, pois confiava na sua espontaneidade, na sua capacidade de estar em todos os lugares, em qualquer circunstância.

 

Vestia-se com simplicidade, a camisa e as calças estão sempre bem engomadas. Barba infalivelmente feita e cabelo aparado rente, e também não vai faltar na sua companhia, uma garrafa de água de 1,5 litros que vai bebendo a gargalo nos intervalos do tempo, em particular quando está na Redacção produzindo as prosas que vão marcar a sua vida.

 

E um homem destes, promovido a personagem, ficará sempre na memória pela forma como encarou a vida, tal como ela é, sem acrescentar absolutamente nada. Mano Dany via graça em tudo à sua volta. Trazia a alegria onde estivesse com os amigos,  destacando-se pela gargalhada descomprometida e pelas lembranças que partilhava, muitas delas que nos faziam recordavam a máxima: quem conta um conto, aumenta um ponto. Era assim, o mano Dany: tudo para ele tinha mais um ponto, e isso é próprio de actores livres de tabus.

segunda-feira, 27 novembro 2023 09:10

Izidine Malache: um “velho lobo” ao pôr do sol

Apesar de estar a viver numa cidade por demais pacata como Inhambane, Izidine Malache passa despercebido, como a lua numa grande metrópole onde quem reina é o néon. Naturalmente que já não vai aos campos de futebol submeter-se aos intensos delírios das massas, com a grande responsabilidade de ajuizar os lances, indicando com o estridente apito os sinais dos jogos, mas ele anda por aqui, mantendo a postura física de quem viveu segundo as regras de um desportista disciplinado.

 

Izidine Malache pertence a uma tribo de árbitros da primeira água, que brilhavam e mantinham ordem nos relvados e nos pelados nas décadas de 80 e 90, quando o futebol que se praticava era de topo, então, eles também – os árbitros – não podiam estar à baixo dessa bitola. Era à volta da sua órbita que gravitava toda a classe suprema dos jogadores. E Malache destacava-se na elite da arbitragem moçambiana.

 

Passou a vida inteira em Maputo, a partir de onde viajava por todo o território nacional a arbitrar jogos dos inolvidáveis campeonatos nacionais, por tudo que nos ofereciam, tendo como actores principais, futebolistas muitos deles injustiçados por lhes ter sido vedado o caminho da glória, por políticos que jamais vão perceber que o desporto ergue a nossa bandeira. E nesse fervor que acontecia do Rovuma ao Maputo, Izidine Malache destacava-se pela competência e serenidade e humildade.

 

Há 25 anos que está em Inhambane, um lugar que entra em consonância com o caracter de um homem feito para não empurrar as pessoas. Investe o seu tempo numa escola de condução onde é gestor, e é admirável a manutenção da sua condição física que parece de um jovem de 20 anos. Ele caminha a pé nas ruas da cidade, e já me disse uma vez, “andar de carro numa cidade tão pequena para quê!”.

 

Pois é! Izidine Malache não reivindica galhardetes. Nunca falou disso nos momentos em que nos encontramos e nos saudamos como velhos conhecidos e falamos de pequenas coisas, mas na despedida nunca vai faltar a lembrança de uma memória dos grandes tempos em que pressão do público era avassaladora. O árbitro precisava de “nervos de aço” para aguentar aquilo, e Malache sempre teve os “badalos” no lugar, até hoje, que não se atrapalha com os desconhecidos, mesmo que estes se aproximem dele prescrutando-o com o olhar, sem dizer nada.

 

Mas se calhar a cidade de Inhambane, composta maioritariamente por jovens, que não acompanharam os tempos áureos do nosso futebol, ainda não percebeu que tem no seu seio um “velho lobo” que anda pelas ruas livremente sem chatear a ninguém. E esse “velho lobo” chama-se Izidine Malache, cujo nome está nos escaparates de ouro da arbitragem moçambicana. O resto ficará por conta da história.

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