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Alexandre Chaúque

Alexandre Chaúque

quinta-feira, 30 maio 2024 09:41

Tempo dos furtivos

Duas horas da madrugada não é tempo dos andantes, é nessa altura que o silêncio e o medo atingem o pico. Os fantasmas deambulantes realizam as últimas incursões do tormento nesse lapso, e se tiverem falhado nos seus planos, no regresso para as tumbas pontapearão os fracos que vão sentir a dor na própria carne. É isso que acontece todos os dias sem qualquer sinal de que teremos uma nova madrugada. Até porque os nossos passos têm ignorado sistematicamente a sinaleta que nos avisa: cuidado, vem aí a descer a espada! E nós já demos o último passo!

 

Saí na última sexta-feira à noite à procura de aragem espiritual, sem destino predefinido. Queria um pouco de adrenalina para espantar o tédio em que se tem transformado o meu dia-a-dia ultimamente, então um copo podia ajudar, mesmo assim tinha que ser num lugar de silêncio, onde os que estão lá não entram em euforia, bebem e conversam de forma quase inaudível, para gáudio do coração.

 

Não foi difícil encontrar essa toca, aliás lembrei-me que em Tsivanene, nome dado a um lago permanente na zona do aeroporto, existe uma barraca que entra em consonância com o que eu pretendia naquela noite sem luar: beber um copo em silêncio no seio de pessoas com as quais não tenho nada a ver, nem elas comigo. E lá fui eu, fumando no escuro sem temor algum, aqui todos me conhecem, o diabo também.

 

Cheguei por volta das vinte e duas e apenas duas mesas estavam ocupadas. Numa, eram quatro mulheres que bebiam cerveja sem pressa, e noutra mesa, dois jovens faziam o mesmo e pareciam desinteressados com o que se passa lá fora onde as estrelas reflectem-se nas águas de Tsivanene, sobrevoadas pelos pirilampos que não se cansam de espalhar a sua luz intermitente para que a vida faça sentido. A vida é constituída pela luz e pelo escuro.

 

Escolhi uma mesa num lugar estratégico, queria ter sob meu controle um cenário que me permitisse ver as pessoas sentadas e outras que vão entrar, e ao mesmo tempo poder contemplar a noite por via das luzes do ambiente lá fora. Sentei-me e não saudei a ninguém, para além do sinal que dei à empregada do balcão que veio de pronto. Sou um cow boy sem coldre, aliás, o meu coldre é a imaginação.

 

- Boa noite, pai, vai alguma coisa?

 

- Boa noite, obrigado, queria beber cerveja, mas está a fazer frio.

 

- É verdade, está muito frio, hoje! Talvez um whisky!

 

Chegaram mais dois grupos quase furtivamente. Isto aqui parece uma gruta onde vamos nos esconder em busca de liberdade, longe das feras. Não  há música, ainda bem! E eu não posso fumar aqui dentro, não que seja proibido, mas porque nestes cachos de jovens ninguém está a fumar, tenho que respeitar essa posição. Sou o único velho, porém não caduco, e o que fortalece a minha paz neste espaço é que todos me conhecem.

 

Já estou no quinto duplo e quero voltar para casa. Pago a conta e saio sem despedir, da mesma forma que entrei sem dizer nada a ninguém. Mas foram eles, os jovens, que quase em uníssono dirigiram-se-me em música, em coro como nos palcos religiosos.

 

- Já vai, cota! Cuide-se!

 

São duas horas da magrugada e eu não tenho medo, medo de quê! Os fantasmas e todos os espíritos malignos que se lixem, eu sou um dos grãos desta areia dos meus antepepassados. Quem sois vós para se interporem no meu caminho!

 

Acendo o cigarro da catarse e embrenho-me no escuro, outra vez, e ainda consigo ouvir a música dos grilos e dos sapos que chuachualham em côro. Nos quintais os cães ladram ao se aperceberem da minha passagem, mas eu sou um simples andarilho quase bêbado, feliz por ter estado num lugar onde a música que ali se toca, é o silêncio e a paz.

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Seja para quem for  a mensagem, a expressão não ficou bem a uma figura que, mesmo antes de ascender ao palanque do poder, já está a ser aplaudida como se o facho da vitória estivesse garantido nas suas mãos. A explosão antecipada de garrafas de champanhe em todos os lugares, não será propriamente pela certeza de que o comboio terá um bom maquinista, mas se calhar Daniel Chapo inspira sem que se saiba exactamente porquê. Talvez seja uma intuição da parte daqueles que já o ovacionam estrondosamente de pé na arena da esperança.

 

Eu já o tinha dito, mas não me importo de repetir para lembrar ao próprio e aos demais: nutro uma grande simpatia pelo “El Chapo”, mas fiquei com medo da sua expressão ao se dirigir publicamente numa conferência de imprensa após o encontro que teve com as confissões religiosas, às quais foi agradecer pelas orações que fizeram em seu apoio. O candidato da Frelimo disse assim, a um determinado ponto da sua intervenção: nas próximas eleições teremos uma vitória “trombosante”, um termo, segundo ele, novo.

 

Ora! Chapo não precisa recorrer a esse tipo de  palavras para dizer que estou aqui, é como se estivesse a afirmar que os seus adversários não são nada, são desprezíveis. Parece-me um posicionamento retrógrado, e ele mesmo, o Daniel Chapo, já tinha usado, quando concorria às últimas eleições provinciais onde foi proclamado vencedor, a palavra “qualquerzante”, mas os seus camaradas já diziam isso, em coro: “vamos ter uma vitória qualquerzante”, como se os moçambicanos que lutam pelo poder noutros partidos fossem pessoas quaisquer, não!

 

Este homem de quem se espera um novo amanhecer, deve perceber que está numa importante corrida de estafetas, ele é o último dos quatro e não está na Assembleia da República onde a verborreia impera. Quer dizer, se os outros companheiros de equipa claudicaram durante a prova, então a responsabilidade de vencer está nas suas mãos (se for eleito presidente), mas é necessário que trate os seus adversários políticos com dignidade, sem os “qualquerzar” ou “trombosar”, sobretudo num contexto em que há muitas feridas por sarar, também dentro do seu próprio partido. Para quê andarmos a nos pisar uns aos outros com palavras jocosas!

 

É isso, meu caro Chapo, você é um homem elegido, então não se “qualquerize” com termos primitivos, não trabalhe com a meta de “trombosar” seja quem for, antes pelo contrário, a sua luta será de um acendedor de luzes para todos os moçambicanos, como Moisés que, das masmorras de Faraó, libertou os filhos de Israel.

Percorri todos os bairros da cidade de Inhambane a ver se encontrava algum fontanário para lavar as mãos e molhar a cabeça... nada! Lembrei-me que havia um na Fonte Azul, construído em 1964. Desatei a correr e constatei que apenas sobram as amostras das ruínas. Fui ainda impelido a subir até a Escola Primária Primeiro de Maio, agora não propriamente para lavar as mãos e molhar a cabeça, mas empurrado pela necessidade de reviver a históriia, e também não encontrei nada.

 

Já tinha passado pela Praça dos Trabalhadores, na esperança de molhar o espírito e a alma com a água cuspida pelo repucho, porém fui recebido pela estiagem. Lembro-me do regalo que era todo aquele espaço da rotunda que nos fazia esquecer momentaneamente as agruras da vida, e hoje nem um pingo de água esvoaçando, nem uma gota no aquário.

 

Fui à Chalambe ainda com esperança... também nada! Nem aqui, nem em nenhum outro canto da cidade de Inhambane. Vandalizaram tudo, e nunca mais houve reparações. E se os fontanários e os repuchos não funcionam, é como se nós também tivéssemos abdicado da necessidade de refrescar os nossos interiores que andam de corrosão em corrosão.

 

Na verdade temos problemas sérios de formação como pessoas urbanas, é preciso reconhecer esse nosso défice. Fica a impressão de que não gostamos do belo, não temos capacidade de preservar as relíquias, aquilo que faz parte de nós e nos faz bem. Não seria imperioso, por exemplo, colocar cercas nos jardins para que as pessoas pisem a relva, se não tivessemos problemas de educação. Então, reconstruir fontanários se calhar pode vir a ser um trabalho inglório, mas não podemos continuar assim, é preciso recomeçar, a vida é um eterno recomeço.

 

As crianças jogam a bola na rua, sem repeito pelos transeutes, pelas pessoas mais velhas. Se você as admoesta, será por elas vaiado. E esta situação de falta de campos surge como resultado da falta de planificação territorial que vai degenarar num dilema: aonde é que os miúdos vão divertir-se!

 

No meu bairro havia dois ou três emblemáticos campos de futebol recreativo que congregavam a miudagem em tardes de liberdade e de felicidade, todos eles desapareceram, ocupados por habitações. Outro espaço ainda, foi engolido pelos mangais, e dizem-nos para não abatê-los. Ora, se assim fosse desde os primórdios, estariamos até hoje a dormir em cima das árvores, pois acho que é possível fazer uma intervenção sustentável sem prejudicar os ecossistemas marinhos.

 

Pois é: se temos uma cidade sem fontanários públicos e sem campos para a rapaziada, como é que podemos ser felizes, assim! Porquê que a tendência generalizada é vandalizar os bens públicos e privados? As crianças precisam ser controladas a partir de casa, mas o problema não são só as crianças. Nós também, os adultos, somos assim.

 

  • Título extraído da música de Fernando Luís
quarta-feira, 24 abril 2024 10:55

CARTA à minha querida Luísa Diogo... outra vez

Olá, meu bem.

 

Sabe, Lulú, a impressão que tenho de ti é que és ouro filtrado no fogo. Já te disse isto muitas vezes, todavia não me canso de repetir. Cada vez que chegam estes dias de facas e baionetas e balas, vens-me à memória. Fazes-me lembrar aquela história da cobra e do pirilampo, em que o réptil, perdido numa noite escura, desconsegue reconhecer o caminho de volta para a casa. Então, olhando para cima atordoada, vê o pirilampo vertendo luz no espaço, e pensou logo que naquele insecto de nada estaria a sua salvação.

 

Pois é! A cobra gritou no seu abominável rastejar e disse, Pirilampo, bem-aventurado, estou perdido nestas trevas, não vejo o caminho de casa, poderá você ajudar-me? E o pirilampo não se fez de rogado, orientou o rastejante até a toca. Porém, chegados à casa da cobra, esta vira-se para o pirilampo e diz: agora quero te matar! Mas matar-me porquê? E a cobra  sibilou com cinismo: porque você brilha.

 

É isso, Lulú, meu bem, você brilha e brilhará para sempre, nem que as nuvens desejem ofuscar-te. É como uma mulher corcunda, mesmo que caminhe numa baixa, a corcunda vai-se ver, e você jamais caminhou nas sombras das baixas, jamais. As estrelas cintilam nos Céus, na glória do Criador.

 

Lulú, não trema minha querida, a águia foi criada em nome da liberdade, por isso plana constantemente ao encontro da luz. E aqui no chão, em pouso, o pirilampo sabe esperar pelo seu tempo, que será demonstrado nas alturas com a vocação de mostrar caminhos. Os guerreiros de Nhabulebule não cansam.

 

Lulú, minha querida, tens asas? Ninguém vai decepá-las, nem os leões que rugem nas jaulas, não com sede de te devorarem, mas com medo de que você os devore. E o que você traz nas mãos não são farpas, são harpas. É por isso que o teu sorriso fácil nos faz acreditar em novas melodias e em mesas fartas para todos. E esse dia vai chegar, Lulú, onde serás proclamada trovadora do povo, pois na verdade falta-nos a música para depois das refeições que não temos, nem sequer uma, e ainda nos dizem que temos três por dia! Que crueldade!

 

Lulú, não desisto de ter fé na catarata de Nhabulebule, não sei porquê. Já me perguntaram várias vezes por que acho que você será amanhã a nossa bandeira, e a minha resposta tem sido o poema de Jorge Rebelo: por mais que seja longa a noite, a verdade é que há-de amanhecer. E nesse dia as corujas de Nhabulebule vão bailar, espalhando a dança até Mavago, Inhassunge, Paquitequete, Chifunde, Bárwè, Machanga, Nhassoro, Chókwè, Matutuine.

 

Então nós também vamos esperar contigo pelo dia das garrafas de champanhe. Que irão explodir em todo o chão de Moçambique.

sexta-feira, 12 abril 2024 08:52

Devolvam a nossa praça... a nossa esplanada!

Se eu fosse jovem viria para a rua gritar. Com azagaias em punho e tudo e  escudos de pele. Revolveria as saiotas coloridas dos meus antepassados para proteger a virilidade de mim. Convocaria o corpo por inteiro para que as brisas das manhãs o revigorassem. Sim, faria isso se eu fosse jovem.

 

Se eu fosse jovem não iria dormir, nem de dia nem de moite, até que me devolvessem a minha praça, a “Praça da OJM!” , ora esplanada das tertúlias e da música em  frente ao Cine-Tofo, também rebentado pelos temporais sem fim! Aquele lugar representa a borbulhante história das noites e dos finais de tarde, quando a utopia era o barco da vida. Era ali onde ao menos se acreditava que haveria um novo amanhecer, e isso já era bastante.

 

Se eu fosse jovem viria para a rua com todos os grupos de zorre e dançaria sem parar com o suporte do Mafanele, homem da arte jamais homenageado, mesmo tendo ele alimentado os convívios dos bitongas em noites de ostracização dos mochos. Eu faria isso, se fosse jovem, até que me devolvessem a minha praça, a “Praça da OJM, ora esplanada das tertúlias e da música”.

 

Se eu fosse jovem iria falar sem grilhetas nas palavras. O ilustre Guimino, edil da nossa cidade, iria ouvir as minhas canções de revolta, que eu próprio dançaria com o corpo em forma de águia. Iria transformar-me em águia. Ah, isso sim, seria uma águia, e voaria até ao Palácio do Daniel Chapo, e em voz de trovão rugiria: Chapo, manda parar aquelas obras que me ofendem bastante!

 

Mas já estou velho, rangem-me os ossos. Grito e a minha voz soa para dentro, ninguém a ouve senão eu mesmo. Tento dançar e os meus passos sossobram, a minha coluna vertebral quebrou-se na entrega à vida e ao trabalho e ao amor. E agora só me resta a dor de ficar aqui contemplando o silêncio da juventude que vai degenerando nessa porcaria do txiling.

 

Não, eu não estou velho! Recuso-me a ser trapo. É por isso que estou aqui com estas azagaias e escudos de pele dançando para guerrear. Trago as estrofes da minha fúria. A minha música é esta: Chapo, amigo,  manda parar as obras que estão destruíndo a “Praça da OJM”. Guimino, amigo, vem cá fora e pára com aquilo! Que estupidez!

quarta-feira, 03 abril 2024 11:42

Ainda sobre o refrão dos bitongas

Voltei a passar em frente ao Gabinete do Governador de Inhambane, um edifício de fina arquitectura do tempo, cheio de lâmpadas na fachada, e notei mais uma vez que todo aquele cenário à volta, do qual já falei exaustivamente até não me cansar, continua o mesmo, sem brilho. Os dois aquários colocados no jardim defronte, projectado no sentido de oferecer à cidade uma paisagem esverdeante, e,  consequentemente, trazer beleza e leveza, não têm peixe, o repucho deixou de aspergir água, e o bolor tomou conta de tudo. A estátua de Samora Machel, mal concebedida pelo arquitecto provavelmente coreano, agride violentamente o espírito dos apreciadores da arte, é uma obra deplorável, Samora não tinha pararício no dedo.

 

Naquele edifício trabalha o governador Daniel Chapo, pelo qual nutro uma grande simpatia. É um homem bom, mas também com o nome que tem, não tinha outra opção que não fosse praticar a honestidade e integridade. Daniel, profecta do antigo testamento, é muito atencioso e apegado a família, possui um senso maternal muito forte. É o tipo de pessoa que gosta de se sentir útil e necessário. Então, urge que o nosso “El Chapo”, como lhe chamam a brincar algumas pessoas, dê uma vista de olhos no “seu-nosso” jardim.

 

Passo por aqui sempre que vou à cidade, onde o silêncio tornou-se o refrão dos bitongas. E não posso voltar para casa sem chegar aos Caminhos de Ferro, cujas instalações estão em forma de escombros, não há esperança. Toda esta zona, a defunta serração que já ninguém se lembra dela nas conversas, nem do restaurante Maguluti do Dalsuco, onde conheci o Magid Mussá cantando o lado mais belo da vida, até hoje, com uma voz  muito mais linda, se calhar melancólica como o canto das rolas ao final da tarde.

 

E é neste percurso em que sou levado pelos demónios do amor, que vejo um homem andrajoso entrado na idade, sentado no banco de madeira na Estação dos Caminhos de Ferro. Eu também sento-me ali, partilhando com um desconhecido, a memória do tempo. Há uma diferença aparente entre nós. Enquanto o ilustre desconhecido traja roupa mais do que carcomida e rota e suja e tem cabelo desgrenhado, eu visto calças e camisa de ganga e sandálias de couro, tudo limpo, sem me esquecer do boné que me proteje a calvice, mas as minhas roupas podem ser pura fantasia fantasia, o importante é saber como é que estou vestido por dentro.

 

Saudei hesitantemente o meu futuro companheiro de ocasião, e para o meu espanto, ele retorque: estás bem, Alexandre? Apanhei um susto como no dia em que Deus troveja numa sarsa tornada caixa vocal chamando pelo Moisés, e Moisés perguntou: que és Tu? E a voz que ressurge da sarsa, respondeu: Sou eu, o Deus de Jacob e de David e de Abrahama!

 

E eu também quis saber do homem que vocalizava o meu nome com carinho,“quem és tu, não me lembro de t!?“ e ele contraperguntou-me: lembras-te do Guipfodzo, teu vizinho na Fonte Azul?

 

Prestei mais atenção nele, mesmo assim não podia reconhecê-lo, a não ser o nome que me ribombava. Era o regresso às paródias de criança e de adolescência, ao amor e à verdadeira amizade, e tudo isso era luz.

 

“Não pagas uma garrafinha?” Fui com ele, o Guipfodzo, entrando pelos becos de Chalambe, onde me indicou uma gruta imunda onde se bebe thonthontho, e onde estão outros homens bebendo aguardente de jambalau e de cana-de-açúcar, sem olhar para trás.

 

E eu tinha uns trocados no bolso, com os quais paguei bebida a potes para o Guipfodzo e para toda a gente que estava alí. Bebi com todos eles, no mesmo copo que rodava na roda da frustração até ficar bêbado, e voltei para casa feliz, a cheirar no corpo o odor horrível do meu amigo, transmitido naquele abraço profundo de despedida.

terça-feira, 26 março 2024 07:05

Estamos a apodrecer

Não me canso de percorrer o mercado Mafurreira, tenho-o entranhado todos os dias, quase todos os dias nas manhãs, sem procurar, no entanto,  nada em especial a não ser a necessidade de rever as mesmas pessoas com as quais lido há anos, e assim, nas saudações que vão acontecendo quase mecanicamente, busco espraecer-me, mais do que querer comprar qualquer coisa. Todavia, vou notando em cada passo, que as minhas amigas deixaram de ser as mesmas vendedeiras dos tempos em que o negócio fluía, perderam o entusiamo.

 

Já são quase doze horas e muitas delas, a maioria, ainda não “fizeram” cem meticais. Outras nem sequer o mínimo que seria preciso para comprar pão para as crianças que esperam lá em casa, não há negócio. As pessoas passam nos corredores, apreciam os produtos colocados nas bancas, porém não compram, nem sequer perguntam o preço, o que torna o cenário ainda mais desesperador para as negociantes que podem voltar para casa de mãos vazias, e não poucas vezes, com os produtos deteriorados.

 

É triste querer comprar tomate, cebola e pimento, numa conta que não chega aos cinquenta meticais e ficar a saber que a senhora que me atende não tem troco, “nunca vi esse dinheiro desde que amanheceu”, e eram duzentos meticais que eu trazia. A companheira do lado também, sentada num saco feito esteira com as pernas flectidas e o corpo apoiado no braço, sem qualquer esperança, ainda não vendeu nada, e se vier a fazê-lo será com muita sorte. Então esta situação magoa.

 

Tivemos tempos em que as coisas floresciam. Havia muita conversa e risos no mercado, entre o movimento do dinheiro que entrava e dos produtos que saíam. O brilho no rosto das mulheres, que nos deixavam sentir o estado vivo da alma, ressurgia em cada gesto e isso era o sinal inequívico da aurora. Era assim, intensamente ao longo de toda a manhã, todos os dias, e aos finais de tarde quando os funcionários voltavam para casa e passavam por alí e enchiam o saco plástico para a alegria da família. Hoje não, o desespero é total, ninguém compra nada, não há “mola de impulsão”.

 

Os intervalos das onze para o “matabicho-almoço”, outrora passados quase em regabofe, com peixe frito, pedaços de frango, salada  e pão, chá quente com limão, e bastante tagarelice para alimentar o coração, passaram a ser frustrantes e dolorosos. Há um silêncio na Mafurreira. As mulheres passam maior parte do tempo a dormir no chão sobre as capulanas sem sonho, ninguém compra nada.

 

Ainda no mesmo espaço temos as peixeiras que passam o tempo todo espantando as moscas sobre o marisco. “Compra, amigo! Se não tens dinheiro, leva, vais pagar amanhã! Mas essa condescendência toda pode significar que está-se no fim da linha, ou no princípio do fim da linha, e o peixe vai apodrecer, e se calhar nós também.... estamos a apodrecer!

sexta-feira, 15 março 2024 11:57

Hora de matar

Um país assim não tem esperança, não pode ter. O consumo de bebidas alcoólicas pela juventude em Moçambique atingiu o cume, bebe-se a descarada em todo o lado e a toda a hora, uma porcaria de bebida que está a levar, diante do olhar impávido do governo, milhares de jovens à loucura. Em muitos casos essas bebidas industrializadas que andam por aí, com fortes suspeitas sobre a sua qualidade, estão a matar, e matam pessoas de tenra idade que perdem a vida sem terem vivido.

 

Não sei como é que se explica que um governo inteiro como o nosso, permita a venda e consumo de “veneno” para destruir a “seiva da nação”. O que anda por aí em garrafinhas com nomes de rótulo como “Dinamite”,  “Boss”, “Royal”, “Soldado”, “Tipo tinto”, é uma verdadeira promotora de chacina, mata aos poucos, o vício adquire-se imediatamente.

 

As mixórdias que enchem os armazéns e bancas e barraracas, tornando-se  verdadeiras dinamites, são piores que a cannabis sativa, combatida ferozmente pelas autoridades policiais. A cannabis pode funcionar como medicamento, dela vai-se extrair o óleo de cânhamo, usado em alguns casos para combater o câncro, mas essas porcarias a que nos referimos, foram concebidas exclusivamente para matar.

 

A cannabis, no lugar de ser tratada como assunto criminal, ela é de forum social. Há camponeses que têm o hábito secular de “dar um shot” para ir trabalhar a terra, então não são criminosos. O assunto cannabis precisa urgentemente de uma outra discussão, talvez mesmo a nível do Parlamento. Mas quanto a essas “garrafinhas” que estão a massacrar jovens que vão morrer ainda imberbes, a posição do governo tem que ser radical para a salvaguarda da vida.

 

Entristeceu-se em tempos, ouvir uma governante de gabarito dizer que não se podia proibir a fabricação e venda dessa porcaria porque “eles pagam imposto ao Estado”. Então, em outras palavras, isso significa passar um alavará oficial para matar a nossa juventude, que efectivamente está a morrer aos pedaços perante o olhar impotente dos pais e da sociedade, e no final das contas do governo, a quem cabe a responsabilidade de nos proteger.

 

Mas os fabricantes e os agentes do Estado que promovem esta tragédia, podem estar a aproveitar-se das enormes fissuras que o nosso país tem. A juventude está desnorteada. Maior parte dela não trabalha, não tem ocupação. E nessas condições, torna-se vulnerável a tudo. Até as donzelas bebem isso e perdem completamente o controle de si, tornando-se, consequentemente, alvo dos oportunistas, caminhando também para a zona da morte.

 

É isso: amanhã podemos não ter homens suficientes para fecundar, pois, neste estado de coisas, esses “miúdos” nem força têm para subir uma mulher.

sexta-feira, 08 março 2024 06:24

Êxodo no Wimbe

Estamos a voar sem escala no carrancudo 737 da LAM há mais de seis horas, numa viagem que devia levar pouco mais de 120 minutos, mesmo assim os comissários de bordo não páram de sorrir. A informação que temos é de que chove torrencialmente em Pemba, com descargas atmosféricas de grande magnitude. Apagaram-se as luzes da pista e de toda a cidade.

 

Mas porquê que não desviam a rota para outro aeroporto aqui  perto? Também chove a cântaros em Nampula, com granizo em todo o lado, e na Zambézia os ventos que fustigam trazem poeiras de mau agoiro. E agora como é que vai ser? É só esperar, isto vai passar, não obstante a autonomia de voo poder estar em causa.

 

Estamos por cima das nuvens numa máquina cujo motor é imperceptível aqui dentro. Há um silêncio de morte no bojo, e deste modo pode ser que estejamos numa câmara de gás à espera de ser acionada pelos verdugos para que o cianeto goteje, e ainda assim trazem-nos taças de vinho em carrinhos leves para irmos bebendo, mas ninguém aceitou aquela bebida da cor de sangue, e eu então lembrei-me da música de Chico Buarque e Milton Nascimento “pai, afasta de mim esse cálice...”.

 

A minha cadeira está por cima da asa, que tremilica, e já atingi o limite do medo. Restam-me,  todavia, as últimas reservas de esperança.

 

“Apertem os cintos por favor, estamos para aterrar no aeroporto de Pemba”! A ansiedade e o medo não desvaneciam, aumentavam. A voz feminina soava a música sinistra, provavelmente o comandante tenha decidido fazer o poiso sobre a própria morte, os pássaros morrem no chão. Ninguém sabe o que vai acontecer, mas seja como for, se for para morrer, já estamos mortos. Morremos todos os dias. Moçambique vive de morte em morte.

 

De qualquer das formas parece termos saído, após aquela voz cantante vinda dos altifalantes roufenhos que mais parecem megafones, da antecâmara do diabo. Pemba estende-se na plenitude aos nossos pés como um paraíso, entretanto essa vista será ilusória, Pemba treme em toda a placa. Senti isso quando saí do avião: todos olham para os passageiros que desembarcam com olhar profundamente  inexpressivo como quem diz, o quê que eles querem aqui?

 

Neste momento em que chegamos, há muitos aviões que partem. De meia em meia hora uma máquina busca os ares, até não haver mais nenhum aeroplano para descolar, a não ser o “nosso” que igualmente vai voltar ao espaço daqui a pouco, com gente entulhada como no “My love” onde somos tratados tipo gado de abate.

 

Quando embarquei em Maputo, o meu plano era hospedar no Wimbe e ir desfrutar da vida no restaurante Dolphin, mas alguém, que está fugindo como os outros em massa,  diz-me que o Dolphin está fechado, o Nazaré não está lá. Fugiu da chuva que penetra pelo tecto sem fissuras e janelas fechadas molhando tudo. O peixe conservado nas arcas ressuscitou e voltou para o mar ensanguentado. O arquipélago das Quirimbas está a tremer, as aves marinhas sucumbiram ao cheiro da pólvora e das baionetas e das facas.

 

Mas eu quero ir ao Wimbe, mesmo assim. Sentir a brisa no Dolphin e ouvir a música da natureza cantada pelas gaiovotas que não estarão nos galhos, fugiram inesperdamente, deixando para trás os mangais transformados em matadouros de homens. Então lá fui em contramão daqueles que deixavam o mítico Paquitequete, o Metuge e toda Pemba, e todo o Cabo Delgado.

 

No Dolphin não está ninguém, a não ser um homem longelíneo vestido de turba negra, que me estende a enorme bandeja de prata contendo uma cabeça humana acabada de ser decepada.

 

Eu ia receber a bandeja pensando tratar-se de cabeça de peixe, de xerewa. Afinal era um pesadelo, numa noite com temperaturas jamais sentidas em Inhambane.

sexta-feira, 01 março 2024 06:31

Sou eu, o Zé Luís... o gato!

Fui nascido com o firme propósito de reverberar com as mãos tenazes. A mulher que me deu à luz no chão, não sabia que com o andar do tempo eu estaria no cume, nem tinha capacidade de perceber que vinha ao mundo para levantar estádios inteiros. A minha missão  era essa, mais do que defender as azagaias arremessadas com furor, fui escolhido entre muitos para ser o derradeiro reduto.

 

Ainda trago de Chimoio e de toda a província de Manica, aqui onde a vida é vivida segundo as parábolas, as lembranças de que o esteito dos matewe (tribo maniquense) era eu. Era em mim que se agarravam nas batalhas dramáticas do futebol, na esperança quase certeza, de que sobre mim ninguém vai passar. E na verdade era isso mesmo, eu serei a última esperança. A esperança infalível!

 

Diziam sempre, quando me vissem a passar pelas ruas de Chimoio, que a albufeira de Chicamba era eu, pois, segundo eles, sem mim não haveria iluminação no Textáfrica, mas isso era um exagero, Chicamba era toda a equipa, uma das melhores que Moçambique já teve em todos os tempos.

 

Mas todas essas memórias que hoje me vibram na alma neste lugar onde o futebol tornou-se música, não vão querer dizer mais nada,  senão que a minha vida na terra foi uma outra forma de celebrar os sons e os batuques das vitórias, eu dançava na baliza. Ria me dos avançados que desciam em flecha ávidos de celebrar o golo, sem saberem que eu era o baluarte de Chimoio e que nas minhas veias vai circular com verve, todo o sangue dos guerreiros de Chimanimani.

 

Sou eu, o Zé Luís, o Gato! Rejubilo em todos os momentos neste lugar onde vivo a vida jamais imaginada e jamais esperada. Aqui nada é repetitivo, só existe o crepúsculo do amanhecer. Tudo é novo e reluz-se por si mesmo.  É diferente dos dias das derrotas do Textáfrica, e da Selecção Nacional, que me entristeciam profundamente. Sobretudo aquela humilhação nos Camarões! E ainda alguém zombava de nós dizeendo: quem semeaia ventos, colhe tempestades! Mas eu já me esqueci desses vendavais que em determinados momentos tornavam-se em dilúvios.

 

Sou eu, o Zé Luís, o Gato! Apagaram-se em mim todas as dores, e agora passo a vida a planar, ouvindo de vez em quando a voz do João de Sousa gritando: que defesa espectacular do Zé Luis! E logo a seguir vejo o mar de gente enchendo o Estádio da Machava, ovacionando-me. Mas eu chorava sozinho,  de emoção, sentindo os arrepios em todo o meu corpo e espírito, ao ser erguido pelo povo inteiro.

 

Pois e! Só vinha vos dizer isso, e pedir ao Textáfrica, agora que luta por se levantar outra vez, o favor de levar o canecão ao Monte Binga, como aconteceu em 1976. E para essa luta, contem comigo.

 

Sou eu, O Zé Luís, o Gato!

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