Director: Marcelo Mosse

Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

BCI
João Nhampossa

João Nhampossa

JoaoNhampossanovaa220322

O Ministério Público é um dos principais garantes da legalidade no Estado moçambicano. De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 233 da Constituição da República de Moçambique (CRM) e no n.º 1 do artigo 1 da Lei Orgânica do Ministério Público e  Estatuto dos Magistrados do Ministério Público aprovada através da Lei n.º 1/2022, de 12 de Janeiro, o Ministério Público constitui uma magistratura hierarquicamente organizada, subordinada ao Procurador-Geral da República.

 

De entre outras funções, o Procurador-Geral da República presta informação anual à Assembleia da República (AR) sobre o estado geral do controlo da legalidade no País. O que deve fazer em conformidade com o disposto no n.º 3 do artigo 238 da CRM, dos n.ºs 1 e 2 do artigo 20 da Lei n.º 1/2022, de 12 de Janeiro e artigo 204 da Lei n.º 17/2013, de 12 de Agosto, que aprova o Regimento da Assembleia da República de Moçambique.

 

Nos dias 19 e 20 de Abril de 2023, a Procuradora-Geral da República foi à Assembleia da República prestar informação sobre o estado geral da legalidade e, quiçá, da justiça em Moçambique referente ao ano de 2022.

 

No âmbito da prestação da informação anual à Assembleia da República sobre a actividade do Ministério Público, a Procuradora-Geral da República deve, nos termos do n.º 2 do artigo 20 da Lei n.º 1/2022, de 12 de Janeiro, abordar o estado geral do controlo da legalidade focando essencialmente, entre outras, as seguintes matérias:

 

a) Aspectos específicos relativos ao controlo da legalidade e direitos humanos;

 

b) Índices de criminalidade, medidas de prevenção e seu combate;

 

c) Aspectos relevantes das funções do Ministério Público no âmbito da administração da justiça, com salvaguarda do segredo de justiça;

 

d) As reformas necessárias para uma maior eficácia da acção da justiça;

 

Perspectivas para o melhor desenvolvimento do Ministério Público;

Importa aqui lembrar que há vários anos e com tendência crescente que pairam na sociedade muitas questões complexas e polémicas sobre a legalidade das limitações sobre o livre exercício da cidadania, com destaque sobre o exercício do direito à liberdade de manifestação contra a má governação e gestão do bem público no geral e contra as violações dos direitos humanos.

 

Facto estranho e preocupante é que a Informação Anual da Procuradora-Geral da República à Assembleia da República quase que ignora a referência de aspectos e situações preocupantes da sociedade relativamente à violação da legalidade que tem sido não apenas recorrente, mas gritante, chegando a representar violação de direitos e liberdades fundamentais no contexto da limitação ilegal do direito à liberdade de manifestação, em que a brutalidade policial está praticamente institucionalizada como a forma mais eficaz do Estado para reprimir os cidadãos que ousam manifestar contra a má gestão do bem público e violação de direitos humanos.

 

Curiosamente, a Informação Anual da Procuradora-Geral da República à Assembleia da República parece mais uma acção de natureza política pouco séria em que basta a apreciação positiva dos deputados do partido no poder na Assembleia da Repúblico para que se considere uma informação anual que responde à questão da legalidade e da justiça no País. Não parece que a Procuradora-Geral da República esteja, de forma responsável, a prestar contas ao povo vítima das grosseiras ilegalidades e injustiças.

 

Na verdade, são sobejamente conhecidos os inúmeros casos de restrição ilegal ou arbitrária do exercício do direito à liberdade de manifestação e da liberdade de expressão com recurso ao abuso de poder por parte das autoridades, nos quais se destacam a Polícia da República de Moçambique (PRM) e os municípios, sobretudo os governados pelo partido no poder, em que se destaca o Conselho Municipal de Maputo.

 

Na sequência desses actos arbitrários e abusivos contra o direito à manifestação e liberdade de expressão e de imprensa, os cidadãos foram vezes sem conta detidos, vítimas de agressão física, baleados e sujeitos a maus tratos. Esses casos sempre foram objecto de diversos debates públicos nos órgãos de comunicação social, incluindo nas redes sociais, fundamentalmente a título de denúncia para que quem de direito pudesse agir em conformidade, neste caso o Ministério Público, considerando as suas funções constitucionais de garante da legalidade.

 

Ora, não obstante o direito à liberdade de manifestação, que está intimamente ligado à liberdade de expressão, enquadrar o leque dos direitos humanos, na vertente dos direitos políticos e civis e, acima de tudo, estarem constitucionalmente consagrados como direitos e liberdades fundamentais conforme se vislumbra dos artigos 48 e 51 da CRM e nos principais instrumentos internacionais de direitos humanos de que Moçambique é parte; o Ministério Público não revela no seu informe anual dados esclarecedores sobre a sua vigorosa actuação no sentido de repor a legalidade violada e efectivamente responsabilizar as autoridades que arbitrariamente limitaram os direitos e liberdades em referência, pela violação de outros direitos humanos e da legalidade, o que tem alimentando a impunidade com uma espécie de chancela do Ministério Público, que pouco faz para a promoção e protecção do direito à liberdade de manifestação.

 

Não são conhecidas as acções concretas e fortes deste órgão de justiça, garante da legalidade, para acabar com o abuso de poder, intimidação e outras formas de limitação ilegal do direito à manifestação e da liberdade de expressão por parte do Governo, das autoridades policiais e municipais.

 

Aliás, é curioso que até ao momento em que a Procuradora-Geral da República apresenta o seu informe anual sobre a actividade do Ministério Público no controlo da legalidade, é manifesto no debate público a indignação dos cidadãos sobre a proibição infundada do direito à manifestação como se Moçambique fosse uma Estado ditatorial ou Estado de Polícia em detrimento do Estado de Direito Democrático.

 

Urge o Ministério Público tomar uma posição pública sobre a onda de violência e brutalidade policial contra o exercício do direito à manifestação  e intimar o Governo, as autoridades policiais e municipais para se conformarem com a lei e nesse sentido não agirem de modo a limitar ou proibir os cidadãos de exercerem o direito à liberdade de manifestação sem fundamento bastante nos termos da lei aplicável ao caso.

 

De acordo com o artigo 4 da Lei n.º 1/2022, de 12 de Janeiro, as competências do Ministério Público incluem as seguintes, no que releva para o controlo da legalidade para a salvaguarda dos direitos e liberdades supra:

 

  • Defender o interesse público e os direitos indisponíveis; (al. b) do artigo 4);

 

  • Zelar pela observância da legalidade e fiscalizar o cumprimento da Constituição da República, das leis e demais normas legais; al. g) do artigo 4);

 

  • Providenciar consulta jurídica, mediante a emissão de pareceres jurídicos em matéria de estrita legalidade, por determinação da lei ou solicitação dos órgãos do Estado; al. l) do artigo 4);

 

  • Realizar inquérito, inspecções e sindicâncias, ou solicitar a sua realização pelos órgãos da Administração Pública, nos termos da lei; al. v) do artigo 4);

 

Considerando as competências supra, na sua informação anual à Assembleia da República sobre o estado geral do controlo da legalidade, a Procuradora-Geral da República deveria demonstrar em que medida o Ministério Público pôs em prática as suas competências para garantir a legalidade na salvaguarda do exercício do direito à liberdade de manifestação, da liberdade de expressão e de imprensa.

 

Representar o Estado e defender os interesses que a lei determina significa fundamentalmente prosseguir o interesse público no pleno respeito à lei, ao Estado de Direito e aos direitos e liberdades dos cidadãos, uma vez que o interesse público e o respeito pela legalidade são interesses do Estado, isto é, interesses que o Estado visa e deve prosseguir. Representar os interesses do Estado é defender a prossecução do interesse público, de tal sorte que se o Estado através dos seus agentes, serviços ou órgãos não respeita a prossecução do interesse público deve ser denunciado e demandado para respeitar o interesse público.

 

O Ministério Público nas suas funções deve sempre e incondicionalmente, de forma isenta, objectiva, imparcial e legal, defender ou salvaguardar interesse público nos termos da lei e pautar pela justiça mesmo que para o efeito tenha de denunciar comportamentos ilícitos, ilegais do Estado que prejudicam o interesse público ou direitos e liberdades dos cidadãos.

 

Assim, relativamente aos critérios de legalidade, objectividade, isenção e exclusiva sujeição à lei a que o Ministério Público está sujeito no exercício das suas funções em conformidade com o disposto no n.º 2 do artigo 233 da Constituição da República, pelo menos no que respeita às garantias de protecção do exercício do direito à liberdade de manifestação, dúvidas não restam de que a informação anual da Procuradora-Geral da República não espelha a aplicação desses critérios na actuação do Ministério Público.

 

Por: João Nhampossa

 

Human Rights Lawyer

 

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

JoaoNhampossanovaa220322

I. O Problema

 

Apesar de no sistema jurídico moçambicano existirem significativas instituições de justiça que directa ou indirectamente defendem e protegem a Constituição da República de Moçambique (CRM), é inquietante o deficiente mecanismo de protecção da mesma, dando espaço até para abuso por parte de quem tem o dever primordial de a proteger, sem qualquer responsabilização. Neste artigo, é demonstrada alguma gravidade da vulnerabilidade a arbitrariedades da Constituição em contradição com os princípios que a norteiam, com destaque, por um lado, para o princípio da legalidade previsto no n.º 3 do artigo 2, que determina que o “Estado se subordina à Constituição e funda-se na legalidade.” E, por outro, o princípio do Estado de Direito previsto no artigo 3 da mesma Constituição e que determina: “A República de Moçambique é um Estado de Direito, baseado no pluralismo de expressão, na organização política democrática, no respeito e garantia dos direitos e liberdades fundamentais do cidadão.”~

 

II. Como o Conselho Constitucional (des)protege a Constituição da República

 

O Conselho Constitucional é por definição o órgão de soberania, ao qual compete especialmente administrar a justiça, em matérias de natureza jurídico-constitucional, conforme resulta do disposto no n.º 1 do artigo 240 da CRM. Da leitura desta definição em paralelo com as competências do Conselho Constitucional, que constam do artigos 243 e 244 da CRM, bem como do artigo 6 da Lei n.º 2/2022, de 21 de Janeiro (Lei Orgânica do Conselho Constitucional), não restam dúvidas sobre a função do Conselho Constitucional que se traduz na salvaguarda da CRM. No entanto, para o efeito, é estranho e incompreensível que o acesso a este órgão de soberania seja deveras limitado pelos cidadãos que só conseguem se forem conjuntamente o mínimo de dois mil cidadãos nacionais com assinaturas devidamente reconhecidas por notário, o que revela sérias restrições ao acesso à justiça constitucional pelo cidadão e difícil protecção da Constituição por iniciativa do cidadão individualmente considerado ou em pequenos grupos e associações.

 

Mais do que isso, é que o Conselho Constitucional não actua oficiosamente ou por iniciativa própria em defesa da Constituição, senão esperar interposição de competentes processos de quem tem legitimidade para o efeito. Ora, por mais que o Conselho Constitucional tenha conhecimento de abusos contra a Constituição da República, ele não intervém de qualquer forma senão foi interpelada pelos restritos mecanismos previstos na lei para tal e por quem tem essa legitimidade.

 

Desde já, tem legitimidade para pedir a protecção da integridade constitucional, por via de acções de inconstitucionalidade das leis e da ilegalidade dos demais actos normativos dos órgãos do Estado, apenas os seguintes órgãos ou entidades de acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 244 da CRM conjugado com o n.º 2 do artigo 64 da Lei Orgânica do Conselho Constitucional: O Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República, um terço, pelo menos, dos deputados da assembleia da República, o Primeiro Ministro, o Procurador-Geral da República, o Provedor da Justiça e dois mil cidadãos. No mesmo sentido, tem legitimidade, por via de recursos, para, obrigatoriamente, solicitar a apreciação da inconstitucionalidade pelo Conselho Constitucional os juízes, quando se recusem a aplicar qualquer norma com base na sua inconstitucionalidade, conforme o artigo 246 da CRM.

 

Estranha e curiosamente, não obstante serem manifestos e significantes os actos e casos de violação da Constituição da República, os órgãos supra referidos raramente interpelam o Conselho Constitucional sobre questões de inconstitucionalidade em defesa da Constituição da República, o que fragiliza a protecção da mesma em caso de violação, uma vez que o Conselho Constitucional está legalmente proibido de agir por iniciativa própria ou de tomar o impulso processual de per si em defesa da Constituição. Os cidadãos e organizações da sociedade civil, que revelam ter grande apetência para a defesa da Constituição, tem grandes barreiras de ordem legal, com cunho constitucional, para aceder ao Conselho Constitucional para a salvaguarda da Constituição da República.

 

Mais do que isso, é que nem toda a prática, acto ou norma contrária à Constituição enquadra o conceito de leis ou de actos normativos dos órgãos de Estado para que o Conselho Constitucional seja competente, em razão da matéria, para apreciar e decidir em protecção da Constituição da República. Esta questão vem a propósito do facto de caber ao Conselho Constitucional, nos termos do nº 1 do artigo 244 da CRM, apreciar e declarar, com força obrigatória, a inconstitucionalidade das leis e a ilegalidade dos demais actos normativos dos órgãos do Estado. Nesse sentido, havendo um comportamento estadual, acto administrativo, acto político, ou conduta de qualquer outra natureza que viole a Constituição, mas que não se enquadra no conceito de leis ou actos normativos dos órgãos do Estado, o Conselho Constitucional não é competente para solucionar o problema. Isto, não obstante a questão ser matéria jurídico-constitucional do qual o Conselho Constitucional é o órgão especial para dirimir conflitos que daí derivam, conforme resulta do nº 1 do artigo 240 da CRM ao determinar: “o Concelho Constitucional é o órgão de soberania, ao qual compete especialmente administrar a justiça, em matéria de natureza jurídico-constitucional.”

 

A exclusão de algumas matérias de natureza jurídico constitucional das competências do Conselho Constitucional, mas que relevam para a defesa e protecção da Constituição da República, constituiu um significativo paradoxo e incoerência jurídica atendendo a qualidade e definição do Conselho Constitucional. Vale aqui lembrar que, infelizmente e em bom rigor jurídico processual, não há, por exemplo, um contencioso constitucional dos actos administrativos e políticos na ordem jurídica moçambicana. A questão que não quer calar é: Para os casos de violação da Constituição da República em que o Conselho Constitucional não tem competência para intervir, a quem cabe a protecção da Constituição?

 

Acresce ainda que o Conselho Constitucional, pelo menos em matéria de apreciação de (in)constitucionalidade, é simultaneamente a primeira, última e a única instituição jurisdicional a quem cabe decidir sobre protecção da Constituição por via da inconstitucionalidade, ainda que com as limitações supra referidas, o que fragiliza a protecção da Constituição pelos outros órgãos jurisdicionais que, ao não aplicarem uma norma com fundamento na inconstitucionalidade da mesma, devem remeter as suas decisões ao Conselho Constitucional para que se pronuncie decidindo sobre essa protecção da Constituição com fundamento na inconstitucionalidade.

 

Actualmente, pairam dúvidas na sociedade sobre a constitucionalidade do acto que cria a Comissão de Reflexão sobre a Viabilidade da Realização das Eleições Distritais em 2024 (CRED), até porque a mesma parece, na verdade, uma comissão para a revisão pontual da Constituição no que diz respeito à norma constitucional que estabelece: “As primeiras eleições distritais, nos termos previstos na Constituição da República, têm lugar no ano de 2024.” No entanto, neste caso, o Conselho Constitucional não tem possibilidade legal de ser chamada a intervir. A CRED pode chegar à conclusão de que as eleições distritais para 2024 não são viáveis, chancelando a posição pública do Presidente da República, o que poderá determinar a materialização da vontade política, aparentemente egoísta, de revisão da Constituição. Este é mais um exemplo da fragilidade da protecção da Constituição da República.

 

III. Chefe do Estado o garante da Constituição?

 

Um outro órgão de soberania relevante para a protecção directa da Constituição é o Presidente da República, entanto que garante da Constituição na sua qualidade de chefe de Estado, conforme dispõe o n.º 2 do artigo 145 da CRM. É, pois, nessa vertente que, dentro das suas competências de promulgação e veto plasmados no artigo 162 da CRM, tem elementos bastantes para não promulgar leis que põem em causa a Constituição da República, tendo, nesse sentido, a prerrogativa de requerer ao Conselho Constitucional a verificação preventiva da constitucionalidade de qualquer diploma legal que lhe seja enviado para promulgação. O Presidente da República é o único órgão com essa possibilidade de requerer fiscalização preventiva da constitucionalidade das leis. Mas não é obrigado a requerer, depende da sua vontade, o que também constitui um mecanismo frágil de protecção da Constituição da República por via da verificação da constitucionalidade preventiva. É facto bem assente que o Presidente da República não tem o hábito e o cuidado de requerer essa fiscalização, mesmo perante leis muito polémicas por manifestos sinais de inconstitucionalidade que promulgou, como são os casos da recente legislação sobre o combate ao branqueamento de capitais e financiamento ao terrorismo, bem como o Código Penal e o Código de Processo Penal em vigor.

 

Importa referir que pelo facto do Presidente da República nomear o presidente do Conselho Constitucional e por haver sinais de controle ou forte interferência política sobre o Conselho Constitucional, parece dar lugar a uma espécie de temor reverencial por parte deste órgão relativamente ao Presidente da República de tal maneira que fica difícil contrariá-lo em defesa da integridade da Constituição perante leis que parecem prosseguir objectivos políticos obscuros em violação da Constituição, coerência constitucional. Aliás, o debate público em torno do polémico Acórdão n.º 03/CC/2022, de 17 de Junho referente ao processo n.º 02/CC/2021 sobre a fiscalização sucessiva abstracta da constitucionalidade de determinadas normas do Código do Processo Penal, ora em vigor, com destaque para as normas sobre prisão preventiva, no qual o Conselho Constitucional, num contexto político perturbador do judiciário, negou declarar a inconstitucionalidade dessas normas, com declaração de voto vencido de dois renomados juízes conselheiros, o que apimentou mais a fragilidade da decisão do Conselho Constitucional.

 

São raros os casos de intervenção do Chefe do Estado em defesa e protecção da Constituição da República mesmo perante situações de actos de violação à Constituição, em especial dos direitos humanos, por órgãos como o Governo e as Forças de Defesa e Segurança do qual o Presidente da República é o chefe máximo.

 

IV. Concluindo

 

Portanto, os mecanismos de protecção directa da Constituição da República mostram-se deficientes e muitas vezes ineficazes. O monopólio dessa protecção pelo Conselho Constitucional e Presidente da República é problemático pelas várias limitações acima apresentadas e, também, por haver muito espaço legal que impede a intervenção desses órgãos em defesa da Constituição por iniciativa própria, para além de que no caso de o Presidente não existir situações que seja legalmente obrigatório remeter as leis à fiscalização preventiva da constitucionalidade antes da promulgação.

 

A Constituição da República é muito vulnerável a violações pelos actos administrativos e políticos, com difíceis mecanismos de defesa e protecção.

 

Por: João Nhampossa

Human Rights Lawyer

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

JoaoNhampossanovaa220322

“As primeiras eleições distritais, nos termos previstos na Constituição da República, têm lugar no ano de 2024.” É o que estabelece o n.º 3 da Constituição da República de Moçambique (CRM). Trata-se, pois, de uma consagração constitucional resultante da revisão da Constituição havida no ano de 2018, através da Lei n.º 1/2018 de 12 de Junho, a qual introduziu o polémico pacote de descentralização, incluindo a figura do Secretário do Estado na Província.

 

Ora, dúvidas não restam de que se operou uma alteração profunda da Constituição de 2004, na medida em que foi modificado o direito de sufrágio universal e de participação política no que as autarquias locais diz respeito, bem como da organização do poder político, para além de ter posto em causa a salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias fundamentais relativos à democracia ou ao processo da democratização do País à luz do princípio do Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 3 da CRM. Isto significa que as alterações dessas matérias constituições não deviam ter lugar sem a realização de referendo, o que foi completamente ignorando em violação do n.º 2 do artigo 300 da CRM que determina os limites matérias de revisão constitucional.

 

Em boa verdade, é preciso reconhecer que a revisão da Constituição de 2004 através da Lei n.º 1/2018 de 12 de Junho foi resultado da vontade e acordo de duas pessoas, nomeadamente Presidente da República, Filipe Jacinto Nyusi e o então Presidente da RENAMO, Afonso Dlhakama, sem qualquer participação pública relevante nos termos da lei para o efeito e em clara violação as regras previstas para a revisão constitucional daquela envergadura. Foi uma revisão constitucional alegadamente sustentada na urgência do problemático acordo de paz assinado entre Nyusi e Dlhakama, atendendo as eleições autárquicas e gerais realizadas em 2018 e 2019, respectivamente. Tratou-se, em bom rigor, de uma revisão constitucional completamente refém da vontade e ambição política e que de entre outros aspectos para o referido acordo de paz e de partilha de poder político previu a introdução de eleições distritais para o ano de 2024.

 

Correntemente, ouve-se, recorrentemente, a voz do comando presidencial que se opõe fortemente contra a realização das eleições distritais constitucionalmente previstas para o ano de 2024, no sentido de adiá-las para um outro período, alegadamente por falta de condições, sobretudo, materiais e financeiros, assim como falta de ambiente político e social favorável.

 

No entanto, não são apresentados estudos e evidências inequívocas ao público em geral que alimentam essa posição contra a materialização das eleições distritais em 2024. Curiosamente, para a efectivação dessa posição e vontade presidencial, há que se proceder com a revisão pontual da Constituição da República o que, do ponto de vista temporal, se  mostra possível, apesar de revelar fragilidade da Constituição no que diz respeito a maneira como é revista e a forma irresponsável como é usada para firmar compromissos políticos dúbios e amainar os ânimos das forças políticas como parece estar a acontecer com o processo de constitucionalização de eleições distritais e a pretensão da anulação da sua funcionalidade e operacionalização no período constitucionalmente previsto.

 

Ainda que aparentemente possam estar preenchidos os requisitos para uma revisão pontual da Constituição da República de modo que esteja adiada a realização das eleições distritais, tal não deixa de representar uma grande traição à integridade constitucional para satisfazer a “líbido” política, considerando que há violação das expectativas criadas no seio do povo relativamente a governação descentralizada a nível do distrito, bem como violação da coerência e segurança jurídica no que os preceitos constitucionais dizem respeito, para além de se estar a desvalorizar e banalizar a CRM.

 

Mais preocupante ainda, é o facto de haver no sistema jurídico moçambicano deficiente mecanismo de protecção da integridade da CRM que é, vezes sem conta, pontapeada para alimentar interesses políticos, num contexto de quase ausência de debate público franco e profundo sobre a salvaguarda da Constituição mesmo a nível da academia e das principais instituições de justiça, incluindo o judiciário, com destaque para o Conselho Constitucional que é por definição o órgão de soberania, ao qual compete especialmente administrar a justiça, em matérias de natureza jurídico-constitucional, conforme resulta do disposto no n.º 1 do artigo 240 da CRM. Em bom rigor jurídico, o Conselho Constitucional mostra-se de mãos atadas para proteger a Constituição de tal modo que as suas atribuições e competências para esse efeito são, na verdade, cosméticas. Pior ainda, é o facto de não haver ousadia bastante, no estrito respeito pela lei e ética científica, para contrariar a vontade ou posição do Presidente da República, mesmo que essa posição esteja a pôr em causa a integridade da CRM.

 

Portanto, há necessidade urgente de adoptação de mecanismos mais claros de protecção da Constituição da República e garantir que a mesma não seja usada para expedientes políticos não sérios e que a sua revisão seja razoável, respeitosa dos requisitos definidos para tal e que seja feita mediante uma participação pública transparente. No mesmo sentido, urge melhor justificação para o adiamento das eleições distritais agendadas para 2024 com evidências inequívocas e objectivas. Mais do que isso, é preciso explicar a sociedade a real razão de se ter estabelecido constitucionalmente a realização das primeiras eleições distritais para o ano de 2024.

 

Por: João Nhampossa

 

Human Rights Lawyer

 

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

JoaoNhampossanovaa220322

Os cidadãos, fãs e seguidores do Azagaia, considerado herói do povo, decidiram organizar uma marcha nacional agendada para o dia 18 de Março, que, em princípio, terá lugar em todas as capitais provinciais, em homenagem ao rapper, ícone do hip hop lusófono.

 

No entanto, há bastante tempo que, do ponto de vista prático, os cidadãos não são permitidos exercer o direito à liberdade de manifestação, sobretudo os do tipo marcha, na via pública. Aliás, para o efeito da denegação dessa liberdade aos cidadãos, o governo de Moçambique, recorrentemente, através da sua força policial, impede ilegalmente o exercício do direito à manifestação pacífica pelos cidadãos ou grupos sociais, seja por via de ameaças, intimidação, detenções arbitrárias, agressão física, baleamentos, tortura e outros maus tratos que consubstanciam violação dos direitos humanos, para além de argumentos infundados nos termos da lei, de que a manifestação não foi autorizada, quando a realização da manifestação não carece de qualquer autorização pelos órgãos da administração pública. Neste quesito, a Ordem dos Advogados de Moçambique elaborou e publicou um caderno sobre o exercício do direito à liberdade de manifestação que muito bem explica os cidadãos os passos legais para o seu exercício e limitação pelas autoridades.

 

Curiosa e estranhamente, são apenas permitidas as manifestações que visam exaltar ou bajular o governo do dia, especialmente o Presidente da República e o partido no poder.

 

Perante essa situação, preocupa a “vista grossa” que fazem as instituições de justiça relevantes nesta matéria, com destaque para o Ministério Público, entanto que garante da legalidade, sem, no entanto, ignorar o papel da Comissão Nacional de Direitos Humanos e o Provedor da Justiça que, pelas suas atribuições e competência em matéria de direitos humanos e realização da justiça, deveriam ser mais interventivos e incisivos com vista a garantir o respeito pelo exercício da liberdade de manifestação nos termos da lei.

 

A morte e o legado do Azagaia, conforme ficou notório pela enchente e manifestação de diversa natureza no seu funeral, abriu uma grande janela senão uma grande porta mesmo para o despertar do povo relativamente à salvaguarda dos seus direitos e liberdades fundamentais, bem como para o efectivo exercício dessas liberdades contra a má-governação, abuso de poder, opressão, corrupção, discriminação e violação dos direitos humanos em busca da almejada justiça e bem-estar social de todo o povo.

 

Assim, amanhã, dia 18 de Março, será o primeiro grande teste dos cidadãos face ao combinado com o Azagaia: Povo no Poder! Todavia, será que este povo há muito intimidado pelas autoridades terá a coragem de levar a cabo a marcha nacional em homenagem ao seu herói, independentemente de autorização da marcha pelas correspondentes autoridades, o que não é condição legal para o efeito? E se for impedida a marcha sem fundamento legal, será que esse povo está preparado para demandar sobre várias formas a administração pública em causa e exigir responsabilidades em tempo útil? Será que os cidadãos que pretendem marchar pacificamente amanhã em homenagem a este ícone do hip hop lusófono têm a necessária coragem deste para não se deixar intimidar em lutar pelos seus direitos e liberdades fundamentais?

 

Azagaia morre e deixa riquíssimos ensinamentos de revolução e combate contra a opressão num contexto de excessiva limitação do espaço cívico, de violação dos direitos humanos e de perseguição dos activistas sociais, dos críticos da má-gestão do bem público e da prática cada vez mais acentuada do discurso de ódio contra as organizações da sociedade civil e liberdade académica.

 

Portanto, pela euforia popular e vontade de colocar um basta nos abusos de direitos e liberdades, bem assim no cada vez mais empobrecimento dos mais pobres, Azagaia torna-se numa espécie de Jesus que morreu para nos salvar. Será que temos mente liberta bastante para perceber o sentido e o alcance do princípio constitucional de que a soberania reside no povo e assumir esse poder? Veremos no teste de amanhã…

 

Por: João Nhampossa

 

Human Rights Lawyer

 

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

JoaoNhampossanovaa220322

Uma excepcional escola de democracia e activismo de urgente implementação 

 

Das letras das músicas do Azagaia e das suas posições públicas nas entrevistas que concedeu sempre ficou claro que este ícone do hip hop da lusofonia tinha claro conhecimento e domínio dos objectivos fundamentais do Estado consagrados no artigo 11 da Constituição da República, quais sejam:

  • a) a defesa da independência e da soberania;

 

  • b) a consolidação da unidade nacional;

 

  • c) a edificação de uma sociedade de justiça social e a criação do bem-estar material, espiritual e de qualidade de vida dos cidadãos;

 

  • d) a promoção do desenvolvimento equilibrado, económico, social e regional do país;

 

  • e) a defesa e a promoção dos direitos humanos e da igualdade dos cidadãos perante a lei;

 

  • f) o reforço da democracia, da liberdade, da estabilidade social e da harmonia social e individual;

 

  • g) a promoção de uma sociedade de pluralismo, tolerância e cultura de paz;

 

  • h) o desenvolvimento da economia e o progresso da ciência e da técnica;

 


  • i) a afirmação da identidade moçambicana, das suas tradições e demais valores sócio-culturais;

 

  • j) O estabelecimento e desenvolvimento de relações de amizade e cooperação com outros povos e Estados.

 

Dúvidas não restam de que os objectivos fundamentais do Estado supra mencionados foram muito bem interpretados e divulgados por Azagaia através das suas letras musicais, com base em linguagem simples e directa pela crítica contra a má-governação e injustiça social.

 

Em boa verdade, Azagaia cantou no quadro do Estado de Direito Democrático e foi combatido pelo poder público por praticar a democracia e respeitar a Constituição da República. Foi concebido pelos “vampiros” como uma espécie de criminoso e antipatriota por alertar toda a colectividade para não ignorar o princípio fundamental de que a soberania reside no povo, conforme sua célebre proclamação musical “Povo no Poder” entanto que lema que visa democratizar e libertar a consciência do cidadão para não ser injustamente explorado e de qualquer forma oprimido.

 

As músicas de intervenção política e social de Azagaia constituem uma verdadeira e excepcional escola de democracia e de exercício da cidadania para a realização da justiça, respeito ao próximo, tolerância e boa gestão do bem público. Por isso, há necessidade de perpetuar a sua visão e activismo através de um processo bem estruturado e institucionalizado de ensino e aprendizagem para a actual e futura geração. Contudo, só os amigos do Azagaia e o povo que o venera e que o declarou seu herói podem e devem concretizar a instituição Azagaia.  O poder público tem a oportunidade de humildemente render-se ao legado do Azagaia para a prossecução do interesse público, apanágio do Estado.

 

O trabalho do Azagaia problematiza o tradicional e convencional estabelecimento da heroicidade em Moçambique e sobre onde efectivamente devem jazer os heróis do povo. Pelo seu activismo corajoso, sobretudo, a bem da justiça social e, particularmente, por conseguir dar esperança ao povo de um Moçambique melhor e de inclusão face aos abusos dos três poderes do Estado – Judicial, Executivo e Legislativo, incluindo os abusos perpetrados pelos Municípios - Azagaia foi declarado herói do povo pelo próprio povo.

 

Nesse contexto, ressaltam actualmente questões como: Será que é imperioso ser declarado herói por decreto ou lei para ser considerado como tal, num contexto em que o povo pacificamente e por consenso assim considera? Será que é obrigatório que o herói jaze na cripta da Praça dos Heróis para que fique chancelada essa qualidade quando o povo que reconhece essa heroicidade não tem acesso à Praça dos Heróis?

 

Trata-se, pois, de um debate interessante que nos permite reflectir sobre o tratamento a dar a um herói escolhido pelo povo por consenso com evidências claras de actos de coragem e abnegação no activismo pela justiça dos moçambicanos de forma honesta, consistente, coerente e pública. No mesmo sentido, embora seja um debate antigo, permite reflectir sobre a utilidade da Praça dos Heróis, considerando que em termos práticos está fechada a uma elite partidária tanto para os que lá jazem como para os que visitam aquele local que devia ser histórico cultural normalmente aberto ao público.

 

Ora, desde que Azagaia pereceu fisicamente a sua estátua está a ser erguida em todas as praças públicas de Moçambique e em alguma praça pública internacional com destaque para os países da lusofonia, onde se tornou ícone do hip hop. Não há, pois, como negar a implementação da escola Azagaia no sistema de ensino nacional e nas artes e cultura em especial, uma vez que a sua grandeza transcende as cores partidárias e exalta a moçambicanidade nas várias dimensões: política, social e cultural.

 

Portanto, com o seu nacionalismo e exercício da cidadania suis generis, Azagaia conseguiu sobrevir a sua própria morte e com a sua alma continuar a conscientizar os moçambicanos sobre o que combinaram após a sua morte: Povo Poder!

 

PS: Texto baseado numa conversa de facebook com Emerson Chiloveque sobre a grandeza do Azagaia e a atribuição de título honorífico de herói da República de Moçambique.

 

Por: João Nhampossa

 

Human Rights Lawyer

 

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

JoaoNhampossanovaa220322

Contextualização

 

O Conselho de Ministros elaborou e aprovou a proposta de lei das organizações sem fins lucrativos (Proposta de Lei das OSFL) tendo submetido à apreciação da Assembleia da República no dia 27 de Outubro de 2022.

 

Essa Proposta de lei das OSFL é, fundamentalmente, concebida pelo Conselho de Ministros como um acto ou processo de revisão da Lei n.º 8/91, de 18 de Julho (Lei das Associações) e do Decreto n.º 55/98, de 13 de Outubro, que cria o quadro legal que define os critérios da autorização, objectivos a atingir e os mecanismos de actuação das Organizações não Governamentais Estrangeiras em Moçambique (ONGs Estrangeiras).

 

Desde que a mesma Proposta de Lei das OSFL foi dada a conhecer ao público em geral e as organizações da sociedade civil em particular tem sido objecto de acesos debates públicos na perspectiva de contestação da mesma, principalmente, pelos principais visados que são as organizações sociais de advocacia.

 

O processo de revisão legal obedece, regra geral, aos preceitos da Constituição da República de Moçambique e a determinados critérios que justificam a razoabilidade e importância desse exercício para a resolução de um problema fundamental que é de difícil resolução, seja por existência de um vazio legal na matéria em causa, seja porque a legislação em vigor não está adequada para responder aos desafios da actualidade de diferente natureza que se pretende regular.

 

É, pois, por isso que deve haver estudos feitos para sustentar essa revisão, bem como identificação da metodologia que a revisão legal vai obedecer, a apresentação da sua fundamentação e a exposição dos principais objectivos que se pretende alcançar com a mesma revisão legal. São estes os elementos que o presente artigo traz à reflexão no que respeita à Proposta de Lei das OSFL que é percebida pelo seu proponente como um processo de revisão da Lei das Associações e do Decreto n.º 55/98, de 13 de Outubro que regula as ONGs Estrangeiras em Moçambique.

 

A Problemática

 

A proposta de Lei das OSFL trata essencialmente de liberdade fundamental de associação, o que significa que em primeira linha a mesma proposta deve respeitar as garantias constitucionais sobre os direitos e liberdades fundamentais, bem assim os princípios e objectivos fundamentais do Estado que norteiam a Constituição. Qualquer modificação da legislação ordinária que regula a liberdade de associação tem de ter como finalidade adequá-la à realidade constitucional e às dinâmicas da protecção dos direitos humanos.

 

No entanto, não se percebe qual a metodologia adoptada para a elaboração da Proposta de Lei das OSFL, tanto é que não são apresentados os estudos metodológicos que serviram de base para a elaboração da mesma proposta. Na fundamentação, resulta que a Lei das Associações em vigor se mostra desajustada da realidade, sendo necessária a sua revisão. No entanto, não é demonstrada a investigação levada a cabo para se chegar a essa conclusão, nem se demonstra em que medida a Proposta de Lei das OSFL resolve o alegado problema de desajustamento da realidade por parte da Lei das Associações em vigor.

 

Estranha e curiosamente, da fundamentação da Proposta de Lei das OSFL resulta ainda que: “A revisão antecedeu a um vasto processo que iniciou em Agosto de 2008, abrangendo todo o território nacional, chegando a ser depositada na Assembleia da República em 2017, onde não foi apreciada, justificando-se a sua urgente aprovação pela necessidade de adequar o regime das Organizações Sem Fins Lucrativos à actual conjuntura política, económica e social do País.”

 

Porém, infelizmente, esta asserção não constitui verdade, uma vez que a Proposta de Lei das OSFL foi elaborada e aprovada pelo Governo até à efectiva submissão à apreciação da Assembleia da República, sem qualquer participação pública relevante das organizações da sociedade civil, principalmente das organizações sociais de advocacia, para além de que não é resultado do processo de revisão que iniciou em 2008 com término em 2017. Aliás, um dos maiores défices desta Proposta de Lei das OSFL é a falta de participação pública que reflecte indubitavelmente violação do princípio do Estado de Direito Democrático constitucionalmente consagrado.

 

No mesmo sentido, é deficitário o acesso à informação em torno da lógica deste processo de revisão sobre a legislação que regula o funcionamento das associações. Pelo que fica comprometida a credibilidade e legitimidade desta proposta de lei por apresentação de fundamentação com sérios sinais de falsidade e por dificultar o acesso à informação sobre as razões da revisão.

 

Mais do que isso, é que da fundamentação da proposta de lei das OSFL fica inequívoca a principal necessidade da revisão da Lei das Associações em vigor ao se referir que: “Na essência, pretende-se que os mecanismos e os procedimentos da actuação das ONGs previnam o branqueamento de capitais e o financiamento ao terrorismo, sendo necessário descortinar as fontes e origem de financiamento, mecanismos de coordenação, monitoria e avaliação, regime fiscal e aduaneiro, primazia de mão-de-obra local, formação e transferência de tecnologia a favor das comunidades beneficiárias dos projectos ou programas destas organizações.” A base da revisão da Lei das Associações através desta Proposta de Lei das OSFL é, pois, o branqueamento de capitais e o financiamento ao terrorismo, sem que tivesse sido feito um estudo e avaliação de risco das associações visadas sobre o envolvimento nesta matéria.

 

Concluindo

 

A fundamentação da Proposta de Lei das OSFL é de tal forma atabalhoada e problemática que deixa a entender que a mesma ainda carece de fundamentação no quadro do Estado de Direito Democrático para que seja legítima, razoável e idónea.

 

O branqueamento de capitais e o financiamento ao terrorismo é que constituem o pretexto da revisão do regime jurídico das associações sociais com vista a marginalizá-las e limitar arbitrariamente a liberdade de associação e o exercício da cidadania.

 

Até ao presente momento não se percebe as razões da revisão, bem como os objectivos da mesma à luz da salvaguarda da liberdade de associação nos termos constitucionalmente previstos. Da fundamentação da Proposta de Lei das OSFL não é possível vislumbrar as incongruências que o regime jurídico em vigor sobre associações apresenta para justificar uma revisão nos termos ora propostos pelo Governo de Moçambique.

 

Por: João Nhampossa

Human Rights Lawyer

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

JoaoNhampossanovaa220322

A Política de Terras aprovada pelo Conselho de Ministros através da Resolução n.º 45/2022, de 28 de Novembro, tem como objectivo geral “assegurar e garantir o acesso, uso e aproveitamento e posse da terra pelas comunidades locais, cidadãos nacionais e estrangeiros, na sua capacidade de utilizadores e investidores, bem como promover o seu uso racional e sustentável, contribuindo para o desenvolvimento sócio-económico, criação de bem-estar para as actuais e futuras gerações de moçambicanos.” Este objectivo encontra suporte no n.º 3 do artigo 109 da Constituição da República de Moçambique (CRM) que estabelece o seguinte: “Como meio universal de criação da riqueza e do bem-estar social, o uso e aproveitamento da terra é direito de todo o povo moçambicano.”

 

Nos últimos anos, tem havido vários conflitos de terra como resultado de processos de  atribuição de direito de uso e aproveitamento de terra (DUAT) extremamente problemáticos por transacções ou cedências de enormes extensões de terras às grandes empresas, incluindo as multinacionais, cuja actividade de exploração de recursos naturais e outros investimentos em agronegócios tem dado lugar, vezes sem conta, à perda injusta do DUAT das comunidades locais que residem nas zonas alvo de exploração dos recursos,  particularmente pelas corporações.

 

Em bom rigor, importa aqui lembrar que os direitos sobre a terra das comunidades locais são transmitidos às empresas e outras pessoas financeira ou economicamente poderosas sem qualquer intervenção e possibilidade de negociação por parte das mesmas comunidades que, recorrentemente, não beneficiam, em termos práticos, de qualquer percentagem na negociação celebrada entre o Governo e as empresas sobre o DUAT de que são titulares. Ademais, nesses casos, o processo de extinção de DUAT tem se manifestado ilegal, constituindo um indubitável acto de usurpação de terras das comunidades locais.

 

Ora, tendo em conta a realidade supra referida, a nova Política de Terras, de forma ousada, criou a possibilidade de negociação directa do DUAT entre os seus legítimos detentores e os novos interessados com vista à protecção dos direitos pré-existentes e benefícios directos por meio de intervenção autónoma das famílias na gestão dos seus direitos sobre a terra em causa, o que constitui uma clara abertura para a outorga legal de poderes às comunidades locais para negociarem os seus direitos sobre a terra no contexto da exploração dos recursos naturais e outros investimentos, senão vejamos:

 

O parágrafo 85 do pilar 7 da nova Política Nacional de Terras referente ao Reconhecimento, Titulação e Garantias de Direitos Pré-Existentes determina o seguinte: “A presente Política de Terras considera que a implantação de projectos económicos em áreas onde haja direitos pré-existentes não implica, necessariamente, a extinção destes direitos e nem dá lugar à expropriação de terras, devendo-se assegurar os procedimentos legais adequados em sede de negociação entre os novos interessados e os actuais ocupantes. Importa ainda a previsão de critérios claros que assegurem benefícios directos para a população local em virtude de investimentos privados sobre a terra e outros recursos naturais locais.”

 

Decorre do supracitado preceito da Política de Terras que o processo de reforma legal da legislação sobre a terra deve prever normas claras que estabelecem os critérios de negociação dos direitos sobre a terra por parte das comunidades locais, sem, no entanto, pôr em causa o princípio geral previsto nos nºs 1 e 2 do artigo 109 da CM de que: “A terra é propriedade do Estado e não deve ser vendida, ou por qualquer outra forma alienada, nem hipotecada ou penhorada.” Aliás, não pretende a nova Política de Terras abrir espaço para a venda da terra, senão a possibilidade de se conferir poder de negociação do DUAT pelos legítimos titulares em caso de implantação de projectos económicos, sobretudo, em matéria de exploração dos recursos naturais, dando, assim, oportunidade das comunidades locais beneficiarem directamente da riqueza existente nas terras sobre os quais detêm o DUAT nos termos previstos na CRM.

 

Entretanto, para que esse desiderato da nova Política de Terra seja eficaz e concretizado, é necessário que esteja prevista na Lei de Terra e no respectivo regulamento, incluindo a previsão legal da obrigatoriedade da intervenção do Provedor de Justiça, da Comissão Nacional dos Direitos Humanos, da Ordem dos Advogados de Moçambique e da representação da sociedade civil interessada na matéria, através de emissão de pareceres e recomendações, atendendo às atribuições e competências dessas instituições em matéria da garantia e defesa dos direitos humanos, dos direitos e liberdades dos cidadãos, da legalidade e, em última instância, da justiça, particularmente dos grupos vulneráveis como o são as comunidades locais.

 

Vale aqui insistir na ideia da obrigatoriedade de intervenção das supra referidas instituições de justiça, considerando que a realidade mostra que,  em Moçambique, existe uma tendência em alimentar a discriminação na questão dos direitos sobre terra, na medida em que se privilegia determinadas pessoas com status de natureza social, económica/financeira, político ou as elites em detrimento do grosso da população que é pobre, vulnerável e que não compreende os seus direitos relativos à terra do ponto de vista do direito positivo.

 

Portanto, não obstante os questionamentos que possam advir sobre os critérios, formas ou procedimentos da negociação em questão, dúvidas não restam de que a visão política para o estabelecimento legal de um poder de negociação dos direitos sobre a terra por parte das comunidades locais à luz do estabelecido no parágrafo 85 do pilar 7 da nova Política de Terras,  lido conjuntamente com alguns dos princípios previstos na mesma, como são os casos dos que constam dos pontos (ii) e (iii) do parágrafo 40, respectivamente, princípio do reconhecimento do acesso, uso e aproveitamento e posse da terra como direito humano básico, garantido pela Constituição e do qual ninguém pode ser privado ou retirado, salvo nos casos previstos e justificados nos termos da lei e princípio do respeito pelos direitos das comunidades locais, das famílias e outros titulares de direitos, adquiridos por ocupação, segundo o sistema consuetudinário e por boa-fé; revela uma clara vontade do Estado em garantir que determinadas pessoas não tenham benefícios sobre a terra à custa da violação dos direitos fundamentais dos legítimos titulares do DUAT e a consequente marginalização de determinadas comunidades locais e outras pessoas e benefícios das empresas conforme se verifica há muito até ao presente momento.

 

Por: João Nhampossa

 

Human Rights Lawyer

 

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

A imprensa nacional e internacional, incluindo a media social, as chamadas redes sociais, informam ao público em geral que a Procuradoria da República da Cidade de Chimoio, na Província de Manica, decidiu instaurar um processo-crime contra a produção de um vídeo infantil de natureza pedagógica e de manifestação crítica contra a actuação corrupta da Polícia de Trânsito que se pressupõe tratar-se da Polícia da República de Moçambique (PRM). Esta manifestação crítica foi feita através de produção de um vídeo artístico teatral, cujas personagens são três crianças ainda em tenra idade (6 anos de idade). A Procuradoria da República da Cidade de Chimoio, através de uma alegada nota de esclarecimento, no seu entender, confirmou a existência do referido processo-crime, com trâmites no Tribunal Judicial da Cidade de Chimoio, procurando, erroneamente, dar a entender que instaurou o mesmo em protecção dos petizes envolvidos na cena do vídeo artístico.

 

O vídeo em questão é, indubitavelmente, revelador de um exercício de cidadania de elevada qualidade, no qual se exalta não só a liberdade de manifestação, mas, sobretudo, a liberdade de criação cultural e a liberdade de expressão que estão constitucionalmente consagrados. Atenção que nos termos do n.º 2 do artigo 47 da Constituição da República de Moçambique (CRM), as crianças têm a prerrogativa de exprimir livremente a sua opinião, o que é também consolidado com o direito à liberdade de expressão que todos os cidadãos têm em conformidade com o artigo 48 da CRM.

 

Nos termos do n.º 1 do artigo 94 da CRM “Todos os cidadãos têm direito à liberdade de criação científica, técnica, literária e artística.” Por sua vez, o n.º 2 do mesmo artigo refere expressa e inequivocamente que o Estado promove a prática e a difusão das artes.

 

No entanto, a instauração de processo-crime pela Procuradoria de Chimoio contra a produção e divulgação do vídeo em questão, alegadamente por se tratar de crime de exposição de menor e contra o Estado, constitui acto de ameaça, intimidação e limitação infundada do livre exercício da cidadania e das liberdades fundamentais de manifestação, de expressão e de criação cultural. No mesmo sentido, a conduta da Procuradoria da Cidade de Chimoio contraria o comando constitucional que obriga o Estado a promover a prática e a difusão das artes conforme previsto no supra referido n.º 2 do artigo 94 da CRM. O efectivo julgamento de presente caso “Valter Danone” pelo Tribunal Judicial da Cidade de Chimoio é também assustador e preocupante para um Estado de Direito Democrático e de Justiça Social, conforme é, constitucionalmente, Moçambique.

 

Em bom rigor, a liberdade cultural na sua vertente artística, é um meio adequado e legal para o exercício da liberdade de expressão e do direito à liberdade de manifestação no contexto do exercício da cidadania que permite a crítica à actuação da Administração Pública, de quaisquer entidades públicas ou privadas, incluindo a PRM, com vista a maior credibilização do Estado aos olhos dos cidadãos.

 

Através do vídeo em causa, que é de natureza artística com cunho constitucional, se efectivou a liberdade de informação e de comunicação para a sociedade em geral sobre o comportamento da Polícia de Trânsito, e da PRM no geral, cuja função constitucional é garantir a lei e ordem, a salvaguarda da segurança de pessoas e bens, a tranquilidade pública, o respeito pelo Estado de Direito Democrático e a observância estrita dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, conforme estabelece o n.º 1 do artigo 253 da CRM.

 

Ora, há mais de 10 anos que a conduta corrupta da PRM, expressa no vídeo didáctico em apreço das “flores que nunca murcham”, tem ocupado lugar de relevo na informação anual do Procurador-Geral da República à Assembleia da República sobre o estado geral do controlo da legalidade no País. Não é segredo para ninguém, tanto é que está em documentos oficiais do Estado e que são de domínio público. Pelo que, o vídeo em questão apenas está a traduzir em linguagem e forma mais simples o conteúdo dos informes da Procuradoria-Geral da República (PGR) sobre a conduta corrupta da PRM.

 

Outrossim, o criminalizado vídeo está a traduzir a mensagem do Comandante-Geral da PRM que vezes sem conta veio a público denunciar actos de corrupção da Polícia de Trânsito, incluindo na Província de Manica, chegando mesmo a mostrar preocupação pela imagem de vergonha que a Polícia de Trânsito transmite aos cidadãos dos Países vizinhos de Moçambique, vítimas de extorsão pela PRM. Aliás, neste contexto, o Comandante-Geral da RM chegou a mandar significativos grupos de Polícia de Trânsito para a reciclagem.

 

Daí que, se o vídeo em causa é pejorativo para a PRM e representa crime contra o Estado, também devem ser os informes da PGR e do Comandante-Geral da Polícia que revelam exacerbada corrupção no seio da PRM, com destaque para a Polícia de Trânsito.

 

Da interpretação do disposto no n.º 2 do artigo 56 da CRM, é fácil perceber que a liberdade de criação cultural pode ser limitada em razão da salvaguarda de outros direitos ou interesses protegidos pela Constituição, como é o caso da salvaguarda da ordem e tranquilidade públicas, respeito pela soberania e pelos órgãos do Estado, o que não se verifica no caso “Valter Danone.”

 

Como é fácil de notar, o vídeo cultural em causa não constitui qualquer ameaça ou desrespeito pela soberania do Estado, nem desprezo à PRM, até porque a prática da liberdade cultural é feita na boa-fé e com o intuito de chamar à reflexão sobre a má actuação da Polícia de Trânsito a bem da boa administração Pública ou da boa governação e realização da justiça e dos direitos humanos.

 

A instauração de processo-crime no caso em apreço pela Procuradoria da República da Cidade de Chimoio e a efectiva realização do julgamento pelo Tribunal Judicial da mesma cidade são evidências inequívocas da podridão de um sistema de justiça fantoche que está ao serviço da ditadura e das práticas de abuso de poder e de direitos, num contexto de institucionalização da intimidação e desprezo pelos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos. Urge, portanto, chamar à colação os preceitos legais relevantes para a responsabilização por instauração de processo-crime baseado na má-fé e abuso de autoridade contra a Procuradoria da República da Cidade de Chimoio.

 

João Nhampossa

Human Rights Lawyer

Advogado e defensor de direitos humanos

JoaoNhampossanovaa220322

Recentemente, a Autoridade Tributária e a Polícia da República de Moçambique (PRM) levaram a cabo a apreensão de várias quantidades de bebidas alcoólicas, alegadamente, por serem objecto de fuga ao fisco ou de comercialização sem respeitar o processo de tributação e selagem a que as mesmas estão sujeitas para o efeito.

 

No entanto, a maneira como as supra referidas autoridades estaduais agiram, conforme demonstram os vídeos e fotos que circulam nas redes sociais, não deixa dúvidas de que se trata de apreensão abusiva dos bens dos vendedores informais, cujo rendimento para o sustento das suas famílias advém desse negócio de venda de bebidas alcoólicas.

 

Aquando da apreensão dos bens em questão, as autoridades estaduais em referência não procederam, no local, ao registo das quantidades das bebidas apreendidas, nem dos legítimos donos de modo a melhor identificar os bens e seus titulares para efeitos do contraditório, reclamação, pagamento dos impostos e multas devidas e recuperação dos bens.

 

A apreensão não obedeceu a critérios legais previstos para o efeito no âmbito da actuação da Administração Pública, a qual deve reger-se pelo princípio da legalidade e da justiça conforme estipula a Constituição da República (CRM), no seu artigo 248 nos seguintes termos:

 

  • A Administração Pública serve o interesse público e na sua actuação respeita os direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos.

 

  • Os órgãos da Administração Pública obedecem à Constituição e à lei e actuam com respeito pelos princípios da igualdade, da imparcialidade, da ética e da justiça.

 

Por sua vez, a Lei n.º 2011, de 10 de Agosto[1], determina nos n.ºs 1 e 2 do seu artigo 4, respectivamente: “A Administração Pública deve actuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites e fins dos poderes que lhe sejam atribuídos por lei.” “Os poderes da Administração Pública não devem ser usados para a prossecução de fins diferentes dos atribuídos por lei.”

 

A Autoridade Tributária e a PRM não deram a conhecer as quantidades e o destino das bebidas apreendidas. No mesmo sentido, não deram a conhecer os critérios de apreensão desses produtos de modo a garantir a transparência e legalidade da apreensão.

 

É verdade que o Estado deve arrecadar receitas com os produtos objecto de comercialização, mas tal não deve ser feito arbitrariamente, senão de forma legal e em respeito à justiça social que o Estado deve prosseguir. Aliás, as autoridades em questão estavam em condições de registar os bens, os respectivos donos e de fixar o necessário prazo para o pagamento dos impostos e multas devidas, sem necessidade de apreender os bens, senão nos casos extremos como a da impossibilidade de identificação dos titulares. Dessa maneira, ia permitir a continuação da venda dos produtos em causa, uma vez que se trata de mercadoria que é simultaneamente o capital e lucro das vítimas da apreensão aqui em discussão.

 

Nestes termos, estaria salvaguardada a justiça social e o princípio da proporcionalidade que foram violados e daria oportunidade para as vítimas terem dinheiro com a venda das bebidas para pagar os impostos e multas devidas.

 

Em bom rigor, é estranho e curioso o facto de num contexto de venda desordenada e irresponsável de bebidas alcoólicas na via pública e nos mercados informais, sobretudo de bebidas espirituosas de duvidoso fabrico, proveniência e qualidade para o consumo, a Autoridade Tributária e a PRM apenas se tenham deslocado, na sua acção de “busca e apreensão”, para locais de venda de bebidas alcoólicas caras e de significativa qualidade sem proceder ao devido registo nos termos da lei.

 

Parece que as autoridades estaduais em causa estavam preocupadas em saquear as referidas bebidas para o benefício próprio ou para fins inconfessáveis que sejam alheios aos interesses do Estado.

 

Sem transparência na apreensão, é difícil saber que destino foi dado às bebidas e faz desconfiar que foi para benefício de um grupo de pessoas que usaram ilegalmente a força do Estado para o efeito.

 

Os factos demonstram que a alegada apreensão afinal se tratou de roubo para empobrecer os cidadãos vítimas da referida apreensão arbitrária dos seus produtos. São ilustrativos disso as imagens e vídeos desse saque que se propalam nas redes socias. Será que o Estado está numa campanha de consumo abusivo de bebidas alcoólicas dos vendedores informais, com recurso arbitrário dos instrumentos do poder de autoridade? Dá que desconfiar e é o que a voz popular diz: “Estão a levar nossas bebidas para eles mesmos a custo zero.”

 

Ora, embora seja legítima a arrecadação de receitas através dos impostos pela comercialização de produtos de diversa índole, incluindo as bebidas alcoólicas, a sanção ou método de apreensão dos bens em causa mostra-se injusta, irrazoável e não proporcional , para além de que viola parte dos objectivos fundamentais do Estado moçambicano, quais sejam: “a edificação de uma sociedade de justiça social e a criação do bem-estar material, espiritual e de qualidade de vida dos cidadãos; a defesa e a promoção dos direitos humanos e da igualdade dos cidadãos perante a lei”; consagrados nas alíneas c) e e) do artigo 11 da CRM, respectivamente.

 

Portanto, não é compreensível, nem aceitável, num Estado de Direito Democrático conforme é Moçambique, que a Administração Pública enverede por mecanismos obscuros e dúbios no uso da força pública. A acção do Estado, mais do que legal e transparente, deve acima de tudo ser pedagógica e justa.

 

1Esta Lei regula a formação da vontade da Administração Pública, estabelece as normas de defesa dos direitos e interesses dos particulares.

 

Por: João Nhampossa

 

Human Rights Lawyer

 

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

 

 

A prática da usurpação da terra, sobretudo das comunidades locais afectadas pelos grandes investimentos, bem como a prática do negócio ilegal de compra e venda da terra constituem parte das barreiras mais frequentes na salvaguarda do Direito de Uso e Aproveitamento da Terra (DUAT) dos seus legítimos titulares, particularmente os pobres, mulheres e demais grupos vulneráveis no acesso à terra.

 

São vários os casos em que as comunidades locais vêem as suas terras usurpadas e vendidas a outras pessoas com considerável poder económico, facto que tem gerado muitos conflitos de terra, com difíceis meios e oportunidades de resolução, devido à complexidade e falta de clareza dos mecanismos de tutela do DUAT, sobretudo quando estão envolvidas as grandes empresas, com destaque para as multinacionais, os quais têm significativa influência sobre as relevantes autoridades na gestão da terra, incluindo o poder político.

 

De alguma forma, alguma legislação que regula o DUAT parece permitir espaço para a prática dissimulada da compra e venda da terra e para usurpação da mesma, senão vejamos;

 

As normas contidas nos n.ºs 4 e 5 do artigo 15 do Regulamento da Lei de Terras, aprovado pelo Decreto nº 66/98, de 08 de Dezembro, determinam o seguinte, respectivamente:

 

  1. A celebração de contratos de cessão de exploração está igualmente sujeita à aprovação prévia da entidade que autorizou o pedido de aquisição ou de reconhecimento de direito de uso e aproveitamento da terra e, no caso das comunidades locais, depende do consentimento dos seus membros.”
  2. Os contratos de cessão de exploração só são válidos quando celebrados por escritura pública.”

 

As normas em referência, do Regulamento da Lei de Terras, não têm qualquer correspondência com o teor de qualquer norma contida na Lei n.º 19/97, de 1 de Outubro (Lei de Terras). Em bom rigor, a Lei de Terras não consagra o mecanismo jurídico que consiste na cessão de exploração do DUAT, embora estipule no n.º 2  do seu artigo 16 que “Os titulares do direito de uso e aproveitamento de terra podem transmitir, entre vivos, as infra-estruturas, construções e benfeitorias nela existentes.” É evidente a desconformidade entre estes dois diplomas legais. Aliás, considerando que o Regulamento da Lei de Terras é hierarquicamente inferior à própria Lei de Terras e sendo esta lei o fundamento daquele Regulamento, é deveras notória a aventura juridicamente incoerente, senão ilegal, deste Decreto em pretender regulamentar matéria não prevista na Lei de Terras.

 

Noutros termos, é, pois, axiomático que o Regulamento da Lei de Terras está em contradição com a própria lei que visa regular, na medida em que procura regular matéria que não está prevista na Lei de Terras sob qualquer forma, o que configura uma flagrante ilegalidade, considerando que os limites e a fonte do Regulamento da Lei de Terras residem na própria Lei de Terras.

 

A mecanismo da cessão de exploração prevista nos n.ºs 4 e  5 do artigo 15 do Regulamento da Lei de Terras pode estar a ser usada ou aplicada para efeitos de celebração de negócios obscuros para aquisição de DUAT ou exploração ilegítima das terras das comunidades locais.

 

No contexto do projecto para a exploração de GNL, na região de Afungi, Distrito de Palma, na Província do Cabo Delgado, sobre terras das comunidades directamente afectadas por este projecto, com destaque para a comunidade de Quitupo, foi emitido um DUAT definitivo emitido no dia 31 de Maio de 2017, sobre uma área de quase 7.000 hectares, através do título nº 004/2017, a favor da empresa Sociedade Rovuma Basing LNG Landa – RBLL.

 

Estranha e curiosamente, esse DUAT foi, numa primeira fase, atribuído à Empresa Nacional de Hidrocarbontetos (ENH), em Setembro de 2012, a título provisório, seguidamente, a ENH transferiu o mesmo DUAT a favor da sociedade Rovuma Basis LNG Land, Lda (RBLL), em Dezembro de 2012. Por sua vez, a RBLL cedeu o mesmo DUAT à exploração exclusiva pela Anadarko e a transmissão do DUAT em questão teve por base um contrato de cessão de exploração, cuja transparência e legalidade são desconhecidas. Actualmente, a multinacional Total é que está a explorar as referidas terras no âmbito do projecto de gás em Palma.

 

A gestão da terra cabe ao Estado que tem a obrigação exclusiva de determinar as condições de uso e aproveitamento da mesma, conforme resulta do disposto no nº 1 do artigo 110 da Constituição da República. Aliás, os n.ºs 1 e 2 do artigo 109 da  Constituição da República determinam que a terra é propriedade do Estado e não deve ser vendida, ou por qualquer outra forma alienada, nem hipotecada ou penhorada.

 

A celebração de contrato de cessão de exploração de DUAT das comunidades afectadas pelo projecto de exploração do gás na Bacia do Rovuma apresenta sérios sinais de um processo de venda da terra ou alienação em clara violação da Constituição da República.

 

O Regulamento da Lei de Terras consagra a figura de contrato de cessão de exploração de forma extremamente ambígua e não é claro sobre o objecto da transacção. Mesmo assim, é perceptível que não deve incidir sobre a terra propriamente dita. O Regulamento não se refere em que medida o contrato de cessão de exploração incide sobre o DUAT.

 

Importa aqui referir que a Ordem dos Advogados de Moçambique (OAM), em defesa do Estado de Direito e dos direitos sobre a terra das comunidades afectadas pelo projecto do gás em Palma, interpôs, no ano de 2018, um processo no Tribunal Administrativo, mas este órgão jurisdicional decidiu negar, a todo o custo, conhecer do mérito da causa, no sentido de julgar o fundo da questão que é a ilegalidade ou não do processo de transmissão do referido DUAT das comunidades afectadas pelo projecto de exploração do GNL em Palma, conforme o Acórdão n.º 77/2019, referente ao processo n.º 121/2019-P do Tribunal Administrativo.

 

Chamado o Conselho Constitucional para apreciar a ilegalidade das normas em causa do Regulamento da Lei de Terras, o mesmo órgão de soberania especializado em matérias de natureza jurídico-constitucional decidiu, através do acórdão n.º 22/CC/2019, de 14 de Novembro, nos seguintes moldes: “…não declarar a ilegalidade dos n.ºs 4 e 5 do artigo 15 do Decreto n.º 66/98, de 8 de Dezembro, Regulamento da Lei de Terras, que estabelecem o contrato de cessão de exploração, como uma das formas de transmissão temporária de infra-estruturas, construções e benfeitorias, ao lado do contrato de compra e venda das mesmas, e a sua sujeição à escritura pública e autorização da entidade concedente do DUAT e, no caso das comunidades locais, ao consentimento dos seus membros, como requisito de validade formal do respectivo negócio jurídico.

 

Basicamente, entende o Conselho Constitucional no seu Acórdão n.º 22/CC/2019, de 14 de Novembro, que o contrato de cessão de exploração introduzido pelos n.ºs 4 e 5 do artigo 15 do Regulamento da Lei de Terras incide sobre as infra-estruturas, construções e benfeitorias existentes no terreno sobre o qual o cessionário adquiriu o DUAT, ou seja, que o contrato de cessão de exploração não incide sobre a terra, considerando ainda que este tipo de contrato é, por natureza, um contrato de locação, em conformidade com o artigo 1022.º do Código Civil.

 

Ora, no polémico caso de alegada cessão de exploração no contexto dos direitos sobre a terra das comunidades afectadas pelo projecto de exploração do gás em Palma não se percebe quais as infra-estruturas, construções e benfeitorias implantadas naquelas terras que foram cedidas àquelas empresas, temporariamente, para a fruição das mesmas! Em bom rigor, neste caso, a terra é que foi negociada em nome da figura da cessão de exploração, uma vez que está consagrada de forma atabalhoada no Regulamento da Lei de Terras sem qualquer correspondência com o artigo 16 da Lei de Terras.

 

Apesar de polémica e dúbia a forma de transmissão do DUAT baseada na cessão de exploração nos termos concebidos no Regulamento da Lei de Terras, a revisão da Política Nacional de Terras não trata desta questão para melhores esclarecimentos, directrizes e maior protecção dos direitos sobre a terra das comunidades locais, em especial, considerando que há sinais de que a cessão de exploração que aqui se refere pode ser um mecanismo dissimulado da venda da terra.

 

Por: João Nhampossa

 

Human Rights Lawyer

 

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

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