Recentemente, a Autoridade Tributária e a Polícia da República de Moçambique (PRM) levaram a cabo a apreensão de várias quantidades de bebidas alcoólicas, alegadamente, por serem objecto de fuga ao fisco ou de comercialização sem respeitar o processo de tributação e selagem a que as mesmas estão sujeitas para o efeito.
No entanto, a maneira como as supra referidas autoridades estaduais agiram, conforme demonstram os vídeos e fotos que circulam nas redes sociais, não deixa dúvidas de que se trata de apreensão abusiva dos bens dos vendedores informais, cujo rendimento para o sustento das suas famílias advém desse negócio de venda de bebidas alcoólicas.
Aquando da apreensão dos bens em questão, as autoridades estaduais em referência não procederam, no local, ao registo das quantidades das bebidas apreendidas, nem dos legítimos donos de modo a melhor identificar os bens e seus titulares para efeitos do contraditório, reclamação, pagamento dos impostos e multas devidas e recuperação dos bens.
A apreensão não obedeceu a critérios legais previstos para o efeito no âmbito da actuação da Administração Pública, a qual deve reger-se pelo princípio da legalidade e da justiça conforme estipula a Constituição da República (CRM), no seu artigo 248 nos seguintes termos:
- A Administração Pública serve o interesse público e na sua actuação respeita os direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos.
- Os órgãos da Administração Pública obedecem à Constituição e à lei e actuam com respeito pelos princípios da igualdade, da imparcialidade, da ética e da justiça.
Por sua vez, a Lei n.º 2011, de 10 de Agosto[1], determina nos n.ºs 1 e 2 do seu artigo 4, respectivamente: “A Administração Pública deve actuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites e fins dos poderes que lhe sejam atribuídos por lei.” “Os poderes da Administração Pública não devem ser usados para a prossecução de fins diferentes dos atribuídos por lei.”
A Autoridade Tributária e a PRM não deram a conhecer as quantidades e o destino das bebidas apreendidas. No mesmo sentido, não deram a conhecer os critérios de apreensão desses produtos de modo a garantir a transparência e legalidade da apreensão.
É verdade que o Estado deve arrecadar receitas com os produtos objecto de comercialização, mas tal não deve ser feito arbitrariamente, senão de forma legal e em respeito à justiça social que o Estado deve prosseguir. Aliás, as autoridades em questão estavam em condições de registar os bens, os respectivos donos e de fixar o necessário prazo para o pagamento dos impostos e multas devidas, sem necessidade de apreender os bens, senão nos casos extremos como a da impossibilidade de identificação dos titulares. Dessa maneira, ia permitir a continuação da venda dos produtos em causa, uma vez que se trata de mercadoria que é simultaneamente o capital e lucro das vítimas da apreensão aqui em discussão.
Nestes termos, estaria salvaguardada a justiça social e o princípio da proporcionalidade que foram violados e daria oportunidade para as vítimas terem dinheiro com a venda das bebidas para pagar os impostos e multas devidas.
Em bom rigor, é estranho e curioso o facto de num contexto de venda desordenada e irresponsável de bebidas alcoólicas na via pública e nos mercados informais, sobretudo de bebidas espirituosas de duvidoso fabrico, proveniência e qualidade para o consumo, a Autoridade Tributária e a PRM apenas se tenham deslocado, na sua acção de “busca e apreensão”, para locais de venda de bebidas alcoólicas caras e de significativa qualidade sem proceder ao devido registo nos termos da lei.
Parece que as autoridades estaduais em causa estavam preocupadas em saquear as referidas bebidas para o benefício próprio ou para fins inconfessáveis que sejam alheios aos interesses do Estado.
Sem transparência na apreensão, é difícil saber que destino foi dado às bebidas e faz desconfiar que foi para benefício de um grupo de pessoas que usaram ilegalmente a força do Estado para o efeito.
Os factos demonstram que a alegada apreensão afinal se tratou de roubo para empobrecer os cidadãos vítimas da referida apreensão arbitrária dos seus produtos. São ilustrativos disso as imagens e vídeos desse saque que se propalam nas redes socias. Será que o Estado está numa campanha de consumo abusivo de bebidas alcoólicas dos vendedores informais, com recurso arbitrário dos instrumentos do poder de autoridade? Dá que desconfiar e é o que a voz popular diz: “Estão a levar nossas bebidas para eles mesmos a custo zero.”
Ora, embora seja legítima a arrecadação de receitas através dos impostos pela comercialização de produtos de diversa índole, incluindo as bebidas alcoólicas, a sanção ou método de apreensão dos bens em causa mostra-se injusta, irrazoável e não proporcional , para além de que viola parte dos objectivos fundamentais do Estado moçambicano, quais sejam: “a edificação de uma sociedade de justiça social e a criação do bem-estar material, espiritual e de qualidade de vida dos cidadãos; a defesa e a promoção dos direitos humanos e da igualdade dos cidadãos perante a lei”; consagrados nas alíneas c) e e) do artigo 11 da CRM, respectivamente.
Portanto, não é compreensível, nem aceitável, num Estado de Direito Democrático conforme é Moçambique, que a Administração Pública enverede por mecanismos obscuros e dúbios no uso da força pública. A acção do Estado, mais do que legal e transparente, deve acima de tudo ser pedagógica e justa.
1Esta Lei regula a formação da vontade da Administração Pública, estabelece as normas de defesa dos direitos e interesses dos particulares.
Por: João Nhampossa
Human Rights Lawyer
Advogado e Defensor dos Direitos Humanos