Director: Marcelo Mosse

Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

BCI
sexta-feira, 31 março 2023 05:49

Breve reflexão sobre as primeiras eleições distritais e a integridade da Constituição da República de Moçambique

Escrito por

JoaoNhampossanovaa220322

“As primeiras eleições distritais, nos termos previstos na Constituição da República, têm lugar no ano de 2024.” É o que estabelece o n.º 3 da Constituição da República de Moçambique (CRM). Trata-se, pois, de uma consagração constitucional resultante da revisão da Constituição havida no ano de 2018, através da Lei n.º 1/2018 de 12 de Junho, a qual introduziu o polémico pacote de descentralização, incluindo a figura do Secretário do Estado na Província.

 

Ora, dúvidas não restam de que se operou uma alteração profunda da Constituição de 2004, na medida em que foi modificado o direito de sufrágio universal e de participação política no que as autarquias locais diz respeito, bem como da organização do poder político, para além de ter posto em causa a salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias fundamentais relativos à democracia ou ao processo da democratização do País à luz do princípio do Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 3 da CRM. Isto significa que as alterações dessas matérias constituições não deviam ter lugar sem a realização de referendo, o que foi completamente ignorando em violação do n.º 2 do artigo 300 da CRM que determina os limites matérias de revisão constitucional.

 

Em boa verdade, é preciso reconhecer que a revisão da Constituição de 2004 através da Lei n.º 1/2018 de 12 de Junho foi resultado da vontade e acordo de duas pessoas, nomeadamente Presidente da República, Filipe Jacinto Nyusi e o então Presidente da RENAMO, Afonso Dlhakama, sem qualquer participação pública relevante nos termos da lei para o efeito e em clara violação as regras previstas para a revisão constitucional daquela envergadura. Foi uma revisão constitucional alegadamente sustentada na urgência do problemático acordo de paz assinado entre Nyusi e Dlhakama, atendendo as eleições autárquicas e gerais realizadas em 2018 e 2019, respectivamente. Tratou-se, em bom rigor, de uma revisão constitucional completamente refém da vontade e ambição política e que de entre outros aspectos para o referido acordo de paz e de partilha de poder político previu a introdução de eleições distritais para o ano de 2024.

 

Correntemente, ouve-se, recorrentemente, a voz do comando presidencial que se opõe fortemente contra a realização das eleições distritais constitucionalmente previstas para o ano de 2024, no sentido de adiá-las para um outro período, alegadamente por falta de condições, sobretudo, materiais e financeiros, assim como falta de ambiente político e social favorável.

 

No entanto, não são apresentados estudos e evidências inequívocas ao público em geral que alimentam essa posição contra a materialização das eleições distritais em 2024. Curiosamente, para a efectivação dessa posição e vontade presidencial, há que se proceder com a revisão pontual da Constituição da República o que, do ponto de vista temporal, se  mostra possível, apesar de revelar fragilidade da Constituição no que diz respeito a maneira como é revista e a forma irresponsável como é usada para firmar compromissos políticos dúbios e amainar os ânimos das forças políticas como parece estar a acontecer com o processo de constitucionalização de eleições distritais e a pretensão da anulação da sua funcionalidade e operacionalização no período constitucionalmente previsto.

 

Ainda que aparentemente possam estar preenchidos os requisitos para uma revisão pontual da Constituição da República de modo que esteja adiada a realização das eleições distritais, tal não deixa de representar uma grande traição à integridade constitucional para satisfazer a “líbido” política, considerando que há violação das expectativas criadas no seio do povo relativamente a governação descentralizada a nível do distrito, bem como violação da coerência e segurança jurídica no que os preceitos constitucionais dizem respeito, para além de se estar a desvalorizar e banalizar a CRM.

 

Mais preocupante ainda, é o facto de haver no sistema jurídico moçambicano deficiente mecanismo de protecção da integridade da CRM que é, vezes sem conta, pontapeada para alimentar interesses políticos, num contexto de quase ausência de debate público franco e profundo sobre a salvaguarda da Constituição mesmo a nível da academia e das principais instituições de justiça, incluindo o judiciário, com destaque para o Conselho Constitucional que é por definição o órgão de soberania, ao qual compete especialmente administrar a justiça, em matérias de natureza jurídico-constitucional, conforme resulta do disposto no n.º 1 do artigo 240 da CRM. Em bom rigor jurídico, o Conselho Constitucional mostra-se de mãos atadas para proteger a Constituição de tal modo que as suas atribuições e competências para esse efeito são, na verdade, cosméticas. Pior ainda, é o facto de não haver ousadia bastante, no estrito respeito pela lei e ética científica, para contrariar a vontade ou posição do Presidente da República, mesmo que essa posição esteja a pôr em causa a integridade da CRM.

 

Portanto, há necessidade urgente de adoptação de mecanismos mais claros de protecção da Constituição da República e garantir que a mesma não seja usada para expedientes políticos não sérios e que a sua revisão seja razoável, respeitosa dos requisitos definidos para tal e que seja feita mediante uma participação pública transparente. No mesmo sentido, urge melhor justificação para o adiamento das eleições distritais agendadas para 2024 com evidências inequívocas e objectivas. Mais do que isso, é preciso explicar a sociedade a real razão de se ter estabelecido constitucionalmente a realização das primeiras eleições distritais para o ano de 2024.

 

Por: João Nhampossa

 

Human Rights Lawyer

 

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

Sir Motors

Ler 1393 vezes