Director: Marcelo Mosse

Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

BCI
Alex Dau

Alex Dau

terça-feira, 16 junho 2020 07:54

O Substituto doméstico

Cofiou copiosamente toda a extensão do seu bigode que nas extremidades seguia em forma de espiral enquanto olhava taciturno para o céu luzidio de quinta-feira.

 

Meditabundo matava o tempo que lhe parecia inanimado principalmente agora longe do azafama do quotidiano de outrora, tudo por conta do inimigo invisível.

 

Sim, tinha saudades do tempo que laborava e no seu emprego dirigia uma turma de colegas que reconheciam a sua competência e autoridade.

 

Agora vivia a reclusão domiciliária por conta das autoridades governativas e carimbada pelo seu superior hierárquico que decidira que ele deveria ficar remetido no seu recanto para não ser atingido pela pandemia.

 

- Januário, Januário!  - chamava-o a mulher a partir da sala contígua.

 

Ele absorto na sua viagem não escutava, procurava se comunicar além galáxia, para não sucumbir ao convívio familiar forçado. Agora estava sob a direcção de sua esposa.

 

Leonor, quando percebeu que o marido não a escutava decidiu incumbir o filho mais novo de o chamar.

 

- Sim, sim! – atendeu Januário ao insistente chamamento do filho.

 

Apresentou-se perante a sua esposa que se deleitava confortavelmente na poltrona segurando o remoto controlo de televisão.

 

- Chamaste? – inquiriu olhando para Leonor que meio distraída trocava de canal optando agora por um de ginástica aeróbica.

 

- Tens que ir deitar o lixo – conferiu com autoridade passiva.

 

A empregada domestica, havia sido dispensada unilateralmente pela patroa pois representada um potencial risco de contrair o vírus por recorrer ao “chapa” nas suas deslocações.

 

Quando o conteúdo televisivo que assistia perdeu o interesse ela percebeu que o seu marido ainda não tinha saído para cumprir com a missão.

 

Voltou a gritar pelo seu nome, mas este continuou silencioso. Depois de uma demora prolongada Januário reapareceu.

 

- Já vou! - disse

 

Ela ainda com fitos no televisor não deu pela presença do marido, mas depois espreitou pelo canto do olho e encontrou-o prestes a partir.

 

- Chii vais aonde assim mesmo! – disse ela estupefacta com o visual do marido.

 

- Deitar lixo como mandaste! – conferiu convicto.

 

Januário trajava um terno azul  devidamente engomado e uma gravata vermelha, era a indumentária que mais confiava e o usava quando tinha as reuniões de alto gabarito.  Recuperou o seu traje favorito depois de mais de quarenta e cinco dias de internamente a propósito da nova ordem social, agora que o usava sentia-se outra vez dono de si.

 

Quando alcançou a principal rua que dava acesso ao destino uma brisa fina sacudiu seu rosto e ele despertou para lembranças de outrora, dos bons tempos. Atirou o saco e toda a sua depressão voou com os resíduos domésticos e aterrou no interior da lixeira.

 

Alisou as lapelas do seu paletó e reiniciou a marcha para parar logo de seguida, recuperou um charuto inacabado, tesourou a parte superior acendeu-o, deu uma longa chupada e quando a outra extremidade atingiu o rubro, largou e expeliu uma pequena fumaça aromática. 

 

Continuou sua caminhada sem muita pressa de voltar para casa, dava um e outro sorvo no seu charuto e a sensação de liberdade trazia-lhe felicidade. Adentrou para uma pastelaria e pediu um café, enquanto aguardava recuperou a sua liberdade de expressão e decidiu ligar.

 

- Querido como é bom ver-te e ouvir a tua voz depois destes dias todos! – gritou Elisa emocionada. – Estás lindo meu bem.

 

Evoluíram num paleio erótico protagonizado por Januário e a medida que a sua eloquência se adensava ela descobria as suas partes intimas seduzindo-o. 

 

Quando a vídeo reunião terminou sentiu-se um homem novo e cogitou:

 

“ A humanidade, com destaque para os cientistas e curandeiros deviam encontrar uma cura a curo prazo para o desconvidado vindo do ano 2019”

quarta-feira, 03 junho 2020 05:35

Audiência com o Rei

Quando os tamancos se comunicaram com o chão da terminal rodoviária da “junta” na periferia da cidade de Maputo, produziram um estrépito chamativo. O jovem que os calçava não se importou com os olhares folgazes de que era alvo.

 

Foi um dos últimos a desembarcar do autocarro interprovincial proveniente de Chókwè na província de Gaza.

 

Os seus admiradores miravam-no curiosos e deixavam escapar uma risada, o recém-chegado percebeu que criava impacto no seio das pessoas próximas.

 

- Onde apanho um chapa para a baixa? – questionou para um dos utentes da terminal rodoviária

 

Caminhou sereno segurando uma mala velha e pesada, usava um chapéu de palha com abas pequenas, a jaqueta de couro castanho desgastada e ligeiramente pesada descaía no ombro direito, exactamente do lado da mão que segurava a mala. A camisa de capulana com as cores amarelo e vermelho era suplantado pelo casaco, as calças eram de caqui verde-escuro.

 

Não demorou para embarcar no chapa, os passageiros abriram alas para deixa-lo passar admirando suas vestes, uma moça vagou o lugar e o ofereceu.

 

- Obrigado! - proferiu com um sorriso alegre no rosto.

 

O chapa marchava velozmente ultrapassando os outros carros, este malabarismo perigoso agradava a Carlos Wena que vinha pela primeira vez a cidade de Maputo com a mente repleta de sonhos que pretendia realizar. Vinha animado depois de receber o convite do seu primo que triunfara na grande metrópole.

 

O desembarque na baixa da cidade deixou-o atónito, olhava para cada canto da cidade intimidado pelos monstros de cimento que se erguiam por todo lado, os carros que circulavam velozmente dum lado para outro deixavam-no desorientado. Ficou parado por um tempo, estudando o ambiente que morava ao seu redor, temia dar um passo em falso que podia comprometer a sua chegada a grande cidade.

 

Posicionou a sua mala no chão, sentou sobre ela e procurou organizar as ideias, já passavam das 15h00.

 

Uma turba de petizes em gozo de férias escolares deu com o alegórico personagem de Carlos, pararam e olharam-no maravilhados, riam e trocavam conversa.

 

Já descansado pegou na sua maleta e iniciou a caminhada seguida de perto pelos meninos que multiplicaram as suas risadas agora que o viam em movimento.

 

A sua derradeira jornada seria até a casa do primo no bairro suburbano da polana caniço nos arredores da cidade.

 

Os meninos depois de consumirem momentos de alegria gratuita partiram para outras brincadeiras.

 

A vitrina com letras garrafais do nome do estabelecimento avivaram sua mente e recuperou uma imagem que guardava num canto especial da sua mente.

 

O jovem forasteiro entrou para o estabelecimento comercial, abeirou-se do balcão, descansou a sua mala no chão.

 

- Sim, se faz favor? Investiu o balconista.

 

Ainda distraído, o recém-chegado apreciou o ambiente que por ali morava durante um tempo e cabisbaixo falou para o balconista.

 

- Quero falar com o rei – disse convicto.

 

O balconista vigiou demoradamente o estranho cliente, e ainda perplexo perguntou:

 

- Como disse?

 

- Quero falar com o rei -  repetiu o forasteiro seguro do que buscava.

 

Pela indumentária e o gesto meio aparvalhado, o atendedor ajuizou que o homenzinho devia estar desprovido de sanidade mental. Então decidiu embarcar na brincadeira.

 

- Meu senhor, somos um estado semipresidencialista, isto para dizer que temos um presidente que por coincidência foi reeleito a bem pouco tempo. – gabou-se o balconista dos seus dotes políticos.

 

- Mas eu quero falar com o rei! – insistiu sereno, o estranho cliente.

 

- Meu jovem, nós, a República de Moçambique não é uma monarquia. – frisou o balconista cada vez mais convicto dos seus saberes.

 

- Meu senhor, saiu na televisão a dizer que o rei chegou, até falam em inglês “the king is here” – assegurou Carlos sereno de que a sua explicação poderia elucidar o balconista.

 

Já meio irritado com a insistência parva do cliente, o atendedor procurou ignorar a investida do recém-chegado e deu atenção a um outro cliente.

 

Um curioso que destrinçava o diálogo entre o balconista e o pomposo cliente, processou a pretensão de Carlos, levantou-se e o abordou.

 

Depois de uma breve intersecção verbal, o curioso pousou teatralmente uma garrafa no balcão, Carlos abriu os olhos e largou um sorriso rasgado, segurou a garrafa que o ofereciam e agradeceu imensamente aquele anjo que soubera interpretar as suas aspirações.

 

- Eu sabia que o rei estava aqui! Afirmou felicíssimo – Muito obrigado mano.

 

E então bebeu, bebeu prazerosamente a cerveja.

quinta-feira, 28 maio 2020 05:49

Intruso Voador

A debilidade luminosa era por conta do crepúsculo vespertino por isso muitos aldeãos regressavam de seus afazeres quando repentinamente, dos céus, um zumbido alterou a constância sonora habitual e um piscar intermitente de cor vermelha capturava toda a atenção dos autóctones da aldeia do posto administrativo de Muene, província da Zambézia.

 

Despoletou-se um tumulto na aldeia com os habitantes seguindo o voo do objecto voador não identificado.

 

Múltiplos juízos eram emanados da boca dos populares ante o estranho voador que ocupava o céu da sua terra.

 

O maioral da aldeia foi comunicado da presença do intruso aéreo que sobrevoava a cabeça dos seus súbditos criando pânico entre estes. Expediu a devida ordem e o monitoramento foi seguido pelos seus ajudantes de campo.

 

Não demoraram para convocar o maior atirador para seguir o trajecto do estranho objecto, este embarcou na perseguição armado de seu instrumento de caça.

 

O sonido da diminuta aeronave fazia-se sentir com maior intensidade e a luz descontínua riscava o céu azul do território.

 

Um dos ajudantes do campo apresentou-se ante o régulo e reportou o que testemunhavam no terreno.

 

- Derrubem imediatamente esse engenho voador!  - asseverou convicto Carlos Mabassa, o líder.  O assessor, dali emitiu um assovio comunicando os que seguiam na vanguarda das ordens dadas pelo régulo.

 

Descodificado a ordem pelo segundo ajudante de campo que seguia na dianteira da  perseguição, este passou a autorização para o fisgador.

 

Processada a ordem, o caçador interrompeu a correria e parou, fincou o pé esquerdo descalço no solo e o direito ligeiramente um pouco atrás, empunhou a sua arma de arremesso já com a bala no receptáculo, aldeãos ladearam-no, o atirador esticou o seu instrumento de caça até perder toda a elasticidade, mirou o obejcto a ser abatido e disparou, a bala percorreu em movimento rectilíneo uniforme a uma velocidade de vinte cinco metros por segundo atingindo uma das hélices da pequena aeronave, esta perdeu momentaneamente a estabilidade aerodinâmica, o piloto tentou equilibra-la ao mesmo tempo que o segundo tiro alcançava a segunda hélice, toda a estabilidade foi pelos ares e o obejcto voador iniciou o seu processo de despenhamento.

 

Um hurra colectivo enalteceu a pontaria do caçador de Muene e a celebração atingiu o auge quando os populares alcançaram o local com os destroços do objecto abatido.

 

O ajudante mor recolheu os destroços com ajuda de seus conterrâneos e todos foram ao encontro do régulo.

 

O operador do veiculo voador perdeu o controlo remoto quando este desapareceu da tela, eram precisamente 16h45, registou as coordenadas do último contacto estabelecido com a pequena aeronave e de seguida reportou ao seu superior. O chefe prontamente autorizou as buscas que se efectuaram juntamente com as autoridades administrativas da região.

 

O operador de voo e seu colega juntaram-se ao chefe do posto e mostraram para este no mapa o local onde o aparelho tinha desaparecido.

 

Logo que o chefe do posto reconheceu o local da queda embarcaram em duas motas todo terreno e dirigiram-se a aldeia de Muene.   

 

Batuques mesclados com a vozearia popular davam ritmo as averiguações feitas pelo régulo e seus conselheiros. Os destroços da aeronave eram circundados pelos aldeãos que não arredavam pé.

 

Um homem ligeiramente mais baixo no segundo círculo, espreitou por cima do ombro do outro e então pode ver distintamente o estranho obejcto.

 

- É isso que chupa nosso sangue! – gritou convicto o homem e não demorou para ganhar um coro concordante.

 

- Chupa sangue, chupa sangue. – gritavam eufóricos os aldeãos.

 

Ficou activado uma vontade popular de vingança contra todos os militantes daquela actividade maligna.

 

O som das motorizadas foi entibiado pelo brado dos aldeãos e não demoraram para alcançar o cerne das contestações.

 

O chefe do posto de Muene abordou o régulo e apresentou os seus acompanhantes.

 

- Estes são do INGC – introduziu-os ao régulo.

 

- Este é o nosso drone. -  reconheceu prontamente Anselmo o operador.

 

- Então são estes que nos chupam sangue. – vociferou um dos aldeãos.

 

Despoletou-se instantaneamente um tumulto com os aldeãos segurando Anselmo pelos colarinhos enquanto outros efectuavam o devido julgamento, a autoridade do régulo e do seu conselho não se fazia sentir.

 

O colega de Anselmo quando se apercebeu do pandemónio saltou para a garupa da sua motorizada e partiu de rompante do local deixando o seu colega entregue a sua própria sorte. 

 

O chefe do posto intercedia junto do régulo para libertar o funcionário do INGC que afinal apuravam os melhores locais para o reassentamento dos aldeãos de Muene que muitas vezes eram vítimas das cheias.

 

Mas estas alegações não serviram para conseguir libertar o homem que era severamente punido pelos aldeãos que ora esbofeteavam, ora esmurravam-no.

 

Quando o chefe do posto percebeu que as suas autoridades não salvariam o funcionário do INGC, decidiu chamar pelo comandante da polícia de Muene.

 

Tiros foram disparados para dispersar a população e libertar Anselmo do severo castigo que sofria.

terça-feira, 04 fevereiro 2020 06:18

A Noiva de Imbuho

A pequena vila de Mueda na província de Cabo Delgado, no norte de Moçambique, símbolo de resistência dos moçambicanos contra o colonialismo português na década de 60 do seculo XX, não faz transparecer a tensão política militar que ali se vive nesta segunda década do seculo XXI, tudo por conta da acalmia que se vive durante o dia. Mas, mal o sol se põe procede-se a uma retirada estratégica dos seus habitantes revelando assim o recolher obrigatório tácito que reina na pequena urbe.

 

A paródia que me ofereço quando estou fora de casa, livre da reclusão doméstica e controlada pela minha parceira fica comprometida por conta deste mal-estar social.

 

Mas mesmo assim arriscamos a ficar fora da estalagem depois das 19h00, habitamos um bar de terceira categoria, consumindo o que nos aprazia vigiados pela secreta a paisana e mal disfarçada.

 

Eramos três, eu, António Nangole e Paulino Atale provenientes de Maputo, estávamos em Mueda por conta de uma pesquisa sobre a dança mais representativa dos macondes, o Mapiko. O único natural de Cabo Delgado era António. 

 

Nas vésperas da partida de regresso à Pemba, António lembram-nos que gostaria de passar da sua terra natal para visitar a sua família. Como o individuo estava levemente embriagado, não levei em consideração a sua solicitação.

 

Como precisávamos descansar para viajar na manhã seguinte, decidimos retirar-nos para a estalagem onde estávamos hospedados. Ainda tivemos um papo animado no quarto de António por conta da embriagues para depois cada um rumar para o seu.

 

Partimos pela manhã, eram já 9h00 de uma quinta-feira em que o sol já irradiava intenso, fiquei com a vaga sensação que o sol nasce primeiro nesta parcela do país.

 

A caminhada pelo asfalto conferido pelo “suv” ajudava-nos a subtrair a distância para o nosso destino a cidade de Pemba.

 

Enquanto descendíamos do planalto, eu segurando firme o volante e com os olhos fitos na estrada e os meus colegas desfrutavam da bela paisagem que se oferecia.

 

A manifesta volição de António ficou expressa quando afirmou convicto:

 

  “Em Namaua tem um desvio”

 

Eu que havia pensado que ele se esquecera por conta do estado etílico que se encontrava quando apresentou o seu pedido, fiquei meio decepcionado com o juízo que fizera. Tive que fazer inversão de marcha pois já tínhamos passado do desvio que nos levaria para terra natal do meu colega.

 

Quando finalmente alcançamos Namaua, embocamos em direcção ao posto administrativo de Imbuho. Depois de algumas curvas e contracurvas finalmente chegamos ao destino almejado.

 

“Entra daqui” – conferiu António depois de uma pesquisa ocular demorada, já não se lembrava do caminho.

 

Encaminhei a viatura para o caminho indicado, descemos uma pequena ladeira e paramos defronte de uma das três casas contíguas de adobe e cobertas com chapas de zinco.

 

António apeou-se, gingou estiloso pelo chão da terra natal, descobriu seus parentes que demoraram a reconhecê-lo por conta da surpresa.

 

Quando o reconhecimento facial efectuado por uma mulher terminou, esta correu de encontro a António e gritou:

 

“ Mano, você aqui!” – afirmou oferecendo um largo sorriso ao mesmo tempo que o abraçava.

 

Fomos então apresentados, ganhamos uns beijinhos carinhosos. Logo depois ela chamou por alguém que apareceu instantes depois. Era uma anciã, caminhava devagar, focou os estranhos que estavam no seu quintal sem nos reconhecer.

 

“Mama!” – gritou eufórico António.

 

Só quando a velhota se aproximou o suficiente de seu parente dilatou as pupilas ai o reconheceu. Envolvam-se num fraterno amplexo que me deixou emocionado. Não tardou para sermos apresentados.

 

Quando saudei-a, ela ofereceu-me um sorriso que enaltecia o seu rosto tatuado e falou em shimakonde algo que não percebi patavina, mas alegrei-me.

 

Enquanto conversavam alegremente em shimakonde, pondo as notícias em dia, eu e Paulino que não entendíamos nada do que falavam fomos trocando impressões, eu alertando que não podíamos demorar senão teria que conduzir durante a noite e isso não seria agradável. 

 

Uma pequena assembleia familiar teve início, ofereceram-nos cadeiras, aguardamos, eu sempre lembrando que não nos devíamos demorar.

 

Um cacarejo efectuado fez-se ouvir e galinha derrapou perto de nós na fuga que empreendia dos seus verdugos.

 

Logo depois António aproximou-se e segredo-nos que a sua família convidava-nos a almoçar. Franzi a testa sem conseguir disfarçar o meu mal-estar, mas logo me refiz e falei algo para amortecer o meu descontentamento.

 

Capturei-a pelo visor da câmara, ela a anciã, estava sentada no chão e procedia ao preparo do madumbe, quando ela de relance me espiou, o seu olhar sossegava uma paz contaminante e cada vez que cruzávamos os olhares ela voltava a oferecer-me o seu sorriso, premi o gatilho da canon e ela ficou ali registada na memória do dispositivo. Mas o prévio dessa imagem já havia sido processado pelos meus neurónios e arquivada algures no cérebro.

 

Quando tentei escamotear a segunda fotografia, ela detectou e libertou um queixume na sua língua materna, desta vez, o meu colega de viajem natural de Imbuho, traduziu-me “ela pede para esperar”

 

Então ergueu-se e caminhou sem presa e entrou para uma palhota perto dali, não percebi porque ela me pedia para esperar, talvez não tivesse gostado que a fotografasse, magiquei e logo tratei de partir para explorar o local.

 

Decidi observar os lugares que o vilarejo proporcionava, desde a majestosa igreja ao monumento a uma santa até a pequena praça de heróis, ia vagando na minha pequena incursão.

 

Um pequeno alarido vinda do local onde havia estado fez com que interrompesse a investida turística e regressasse apressadamente.

 

Uma pequena turba olhava maravilhado para a eminente figura que desfilava sumptuosa na passarela de areia sem levantar poeira, a vestimenta de cor branca contrastava com o laço vermelho que lhe coroava a cabeça, todos os espectadores miravam atónitos. Ela dona de si alegrava-se com a admiração dos espectadores, largou um sorriso incrementando as rugas do seu rosto e fazendo sobressair a tatuagem que tinha no rosto.

 

Quando reconheci a minha estrela fiquei estupefacto e corri para o carro em busca da câmara fotográfica, posicionei-me defronte dela pronto para ganhar seu retrato.

 

A anciã veio calmamente, chegou perto, segurou-me a mão direita e puxou-me para lhe ladear, e com gestos indicou que o meu colega Paulino nos fotografasse.

 

Os actos I e II protagonizados pela velhota deixaram-me perplexo e ainda hoje, quase um ano depois, o enigma prevalece.

 

Depois sentados na esteira, deleitamos dos manjares, madumbe, água e sal de galinha e xima.

 

Seguidamente, todos animados despedimo-nos; uns em português, outros em shimaconde e partimos, ainda pelo retrovisor e a rectaguarda empoeirada vi acenos até perdê-los de vista.

segunda-feira, 23 dezembro 2019 07:01

O asno e a moça

Imobilizou-se repentinamente na berma do passeio, perscrutou o ambiente que residia na via depois de olhar para esquerda e para a direita, carros, bicicletas e pessoas moviam-se rapidamente de um lado para o outro, numa azáfama que caracterizava a cidade de Quelimane no fim do dia laboral.

 

Ela ensaiava pousar o pé direito na estrada, mas o medo demovia-lhe de tal aventura.

 

Um carro passou rente ao passeio ela deu um pulo para trás, franziu a teste e a sua jovialidade ficou subtraída naquele acto.

 

O seu cabelo oleoso com brilhantina reluzia quando as folhas da acácia deixavam escapar tiras de sol, o seu rosto completamente maquiado era evidenciado pelo batom vermelho pronunciando os lábios e para rematar os seios erectos agregavam os seus dotes femininos. Usava uma saia de caqui castanha que combinava com a sua tez escura e uma blusa branca sem mangas. Calçava umas sandálias pretas que deixavam visíveis as unhas pintadas.

 

Um homenzinho acantonado na esplanada gesticulava ininterruptamente procurando captar a atenção do atarefado servente, ignorado por este o senhor levantou-se e toda a extensão da sua altura mediana ficou exposta. Gesticulou mais umas vezes até ser descoberto.

 

Quando estava para sossegar no seu acento e esperar pelo atendimento eis que descobre a moça na sua tentativa de atravessar a rua. Arregalado não perdia de vista o pequeno espectáculo.

 

- Sim faz favor – abordou o servente, distraindo-o

 

- Um café – disse sem tirar os olhos da moça

 

Quando o café prontamente chegou, absorveu num trago pediu a conta e retirou-se energizado ao encontro da moça.

 

Quando a alcançou abordou-a:

 

- O que se passa moça? perguntou solícito.

 

- Tenho medo.

 

- Vamos – convidou ele.

 

Um pico da sua pulsação cardíaca sacudiu o seu peito quando ela segurou a sua mão esquerda, caminharam calados pelo passeio até ao semáforo, ele esperou que o vermelho brilhasse e então iniciaram a travessia pela passadeira. Este conctato físico fez com que ele libertasse gotículas de suor que sulcaram pela testa apesar da frescura vespertina.

 

Quando finalmente alcançaram a outra margem da via, ele quis se libertar da mão dela apesar de estar a gostar do calor que ela transmitia, mas a rapariga continuou segurando firme.

 

- Tenho medo de atravessar as estradas ajuda-me a chegar a paragem de chapa? – solicitou timidamente.

 

O homenzinho demorou a responder, apreciando a beleza que ela emanava.

 

- Sim, sim – disse sem pensar completamente enfeitiçado pela sua beldade.

 

Taxistas de bicicletas pedalavam em fila indiana conversando animados com os seus respectivos passageiros.

 

Continuaram caminhando de mãos dadas como um casal de namorados atravessando as vias a caminho da paragem.

 

Quando alcançaram a terminal de transportes semi-colectivos o último chapa acabava de partir superlotado, bufando pela via em direcção a Nicoadala.

 

Eles entreolharam-se calados, já passavam das 18h aquela hora era improvável que conseguisse um carro que a levasse para o seu destino.

 

- Como te chamas? – perguntou-lhe repentinamente o senhor preocupado.

 

- Zainabe – respondeu - não sei como faço vivo em Nicoadala, não sei onde vou passar a noite – desabafou ela entristecida.

 

Arrojado no espírito solidário o senhor avançou com uma proposta:

 

- Podes passar a noite no hotel onde estou hospedado e de manhã segues para o teu destino.

 

Ela anichada na oferta que acabava de receber, ficou divagando digerindo a boa nova.

 

- Obrigado senhor – titubeou ela.

 

- Trata-me por Juventino – afirmou ele afável. 

 

Uma dupla timidez conferia a caminhada um ambiente tenso, até que ele recebeu um zéfiro no coruto descabelado e então lembrou de perguntar.

 

- O que fazes?

 

- Perdi a matrícula escolar e agora faço pequenos negócios.

 

Um bando de marriés partiu num voo rasante e foi ganhando altitude gradualmente em busca dos seus ninhos.

 

Os candeeiros das vias já brilhavam para minimizar a escuridão que chegava com a noite, eles caminhavam lado a lado sem pressa de chegar.

 

- O que fazes cá? – perguntou ela envolta na sua timidez suburbana

 

- Estou de passagem venho de Maputo e amanhã parto para Mocuba em missão de serviço – replicou à vontade.

 

Antes de se embrenharem no hotel pararam num restaurante e tomaram uma leve refeição.

 

Encontraram a recepcionista embrenhada no seu telemóvel, Juventino pigarrou para não a assustar.

 

- Chave 14

 

Sentaram-se no sofá da recepção, ela ofereceu-lhe um olhar benevolente pelo acolhimento oferecido. Ele replicou o gesto com um sorriso terno antes de lhe falar.

 

- Podemos dormir no mesmo quarto pois, possui duas camas – alertou para evitar qualquer mal-entendido.

 

Ela ponderou demoradamente antes de proferir qualquer resposta, como se buscasse na sua mente a afirmação mais acertada.

 

- Sim podemos – sussurrou ela meio acanhada.

 

Seguiram pelo corredor em direcção ao quarto sob o olhar inspectivo da recepcionista.

 

Cavaquearam durante horas enquanto o sono não chegava, falavam disto e daquilo, como velhos amigos. Primeiro foi ela que bocejou e logo Juventino ficou contaminado.

 

- Boa noite! – sussurrou ensonado.

 

Um elemento calorifico conferiu um aumento substancial da temperatura corporal, ele despertou não demorou muito para encontrar Zainabe ali na sua cama completamente nua.

 

O impulso animal catapultou-o para cima dela, não demorou muito para o gemido unilateral expelido por ela catapultasse mais a sua apetência carnal.

 

Evoluíam no coito libertando duplo gemido sonoro que confiscava o silêncio da noite, copulavam selvaticamente como verdadeiros animais indistintos de qualquer norma ética que aprisiona os humanos. Ela animada pelo vigor do seu parceiro derrubou e trepou-o, assumindo agora a liderança movia-se devagarinho sentindo cada centímetro da penetração nos seus múltiplos nervos genitais. Gozava e gozava mais ainda quando via Juventino rendido a sua grandeza de governante do prazer.

 

Suavam e esse odor tornava-se num perfume afrodisíaco que excitava mais o ritual sexual.  

 

O domínio dela demorou o tempo suficiente dele se revigorar, saiu debaixo e posicionou-se por trás reiniciou a penetração com uma das mãos segurava um dos seios e com outro a omoplata, movia-se rapidamente fazendo com que ela deixasse escapar pequenos grunhidos. O acto demorou pouco mais de vinte minutos até que a sua euforia masculina encheu o balão que lhe revestia o órgão genital, ela sentiu aquela volúpia sensacional deixando os músculos afrouxarem completamente relaxados. Ele libertou um suspiro e capturou todo o oxigénio que pode para refrescar o seu ser agora também mais descontraído.

 

Deixaram-se cair na cama, respirando fundo, descobrindo o teto escuro, cada um pensou em nada ainda apreendidos pelo prazer que haviam sentido. Encontraram espaço na pequena cama e adormeceram.

 

A manhã encontrou-os ainda dormitando estafados pelo exercício nocturno, o pio dos pássaros, o som dos motores, misturada com a vozearia popular compunham um alarme madrugador.

 

Descobriram-se mutuamente com a luminosidade fosca que entrava pelas cortinas.

 

Ela desembarcou da cama que lhe acolhera completamente despida, caminhou pelo soalho em direcção ao quarto de banho, deixando bem evidente cada parte do seu formoso corpo na passada lenta que executava, não era a mesma menina que temia atravessar a estrada, era outra, toda poderosa, ele todo babado limpou os olhos remelados com as mãos para capturar cada quadro daquele movimento soberbo.

 

Mil projecções eróticas chegaram a sua mente quando a perdeu de vista, não sabia o que fazer estava agora vigiado pela luz diurna.

 

Quando ela reapareceu a tela voltou a ganhar vida Juventino pulou da cama completamente nu o seu membro viril erecto desafiava a força de gravidade e pulsava ao ritmo cardíaco. Arrebatou-lhe de encontro a parede levantou-lhe a perna direita descobriu o manto de pelos púbicos com o seu falo e entrou, o movimento de vaivém foi ganhando cadência, as suas matunas iam serpenteando seu membro viril, ela soltou um vagido e logo ele beijou-a. A sua boca ora a beijava ora sugava os seios, ela o abraçava e arranhava nesse momento de êxtase sublime. Quando finalmente derramou o fluido seminal libertou um suspiro e a largou. Ela caminhou para se preparar e ele dirigiu-se ao quarto de banho.

 

Juventino encontrou-a se maquiando e foi-se preparando para deixarem o hotel.

 

– São dez mil meticais – disse ela estreando as palavras nessa manhã de quinta-feira

 

Ele percebeu que ela emitira um som, mas não foi capaz de descodificar.

 

– Não ouviste eu disse que são dez mil! – voltou a proferir alto e serena.

 

– Dez mil de quê? – perguntou ele estupefacto.

 

– Pelos serviços da noite passada e desta manhã – conferiu ela e toda a meiguice de moça inocente ficaram dissipadas.

 

– Menina você não esta boa, quem te mandou vir para minha cama nua? – disse ele com a voz tremula deixando transparecer algum nervosismo.

 

– Senhor eu não sei quero meu dinheiro. – gritava ela.

 

– Você é puta? – questionou visivelmente fora de si. 

 

– O que eu sou não interessa, quero o meu dinheiro senhor.

 

Ele não quis divagar em busca de qualquer interpretação ainda sentia nas suas entranhas o gozo do sexo que tivera.

 

– Vamos embora, preciso de viajar - disse ele.

 

Já na rua uma baforada de ar fresco renovou-lhe o ânimo caminhava meio apressado e ela logo ali no seu encalço. Eram nove horas, não tinha tomado o pequeno almoço, estava sem apetite, precisava mesmo de apanhar o carro para Mocuba. Ela interrompeu a sua caminhada prostrando-se a sua frente.

 

Uma passageira montada na garupa de um táxi bicicleta pede o condutor para parar quer presenciar o pequeno espetáculo onde um grupo de jovens uniformizados que estavam a caminho da escola já fazem parte dos espectadores.

 

– Estou a pedir pagar-me senhor! - diz muita convicta.

 

Ele fuzila-lhe com um olhar vítreo afasta-lhe de seu caminho e continua o seu percurso apressando o passo. Ela alcança-o logo de seguida e pega-lhe pelo cinto. 

 

O pequeno público liberta murmúrios animados ainda lhes seguem até perderem interesse.

 

Quando Juventino percebeu que ela não desarmava das suas intenções convidou-lhe a irem a um posto policial.

 

– Não vou a lado nenhum até você dar o meu dinheiro – agora ela gritou.

 

Já tinha alcançado a terminal de autocarros para os distritos da província. 

 

Um a um ia chegando curiosos desocupados para se entreter com o pequeno espectáculo que ela investia.

 

Juventino começava a sentir-se acossado com a determinação da moça segurou-lhe pela mão e mudaram de posição para fugir os mirones.

 

– Não tenho esse dinheiro.

 

– Paga-me.

 

O homem desesperado puxou da carteira tirou o dinheiro que tinha e antes de conferir ela confiscou-o.

 

Ele olhou pasmada para ela sem sabe o que fazer e dizer.

 

Eram sete mil e quinhentos meticais, ela ainda tirou quinhentos e ofereceu-lhe para que ela apanhasse o chapa para Mocuba. Depois largou um sorriso trocista.

 

– Estás arrependido nem!

quinta-feira, 12 dezembro 2019 06:37

Dois Copos

O diâmetro da base opaca do copo era menor que a do topo, o copo estava assente numa mesa rectangular de pinho, o conteúdo interior borbulhava até desaguar na superfície espumante, a frescura do líquido dourado transpirava deixando a parte externa deste completamente ensopada.

 

O proprietário do recipiente olhava meditabundo sem se importar com o barulho produzido por outros clientes que conviviam procurando fazer-se ouvir ante a música ensurdecedora expelida por potentes colunas.

 

Momentos de regressão inolvidável assaltaram a sua mente, um sorriso inocente errou-lhe pelos lábios ainda sequiosos.

 

Segurou o copo, sentiu o frescor fluir corpo adentro animando o seu estado de espírito; era a primeira vez em um ano que tinha o privilégio de usufruir de um momento especial, não demorou, deu um gole.  

 

- Ahh! – estalou a língua.

 

Depois num trago prazeroso eliminou o que ainda restava da cerveja.

 

Buscou a servente, submersa num mar de gente segurando acrobaticamente uma bandeja com inúmeros copos.

 

Quando a capturou com o olhar, levantou a mão direita com o dedo indicador erecto, a moça voltou a perder-se para retornar instantes depois com outro copo.

 

Enquanto aguardava ansiosamente que outro copo chegasse desequilibrou-se devido a estrutura deficiente do banco onde se encontrava sentado, movimentou-se para esquerda com o propósito de equilibrar-se, este movimento fez com que o guarda que se posicionava no limiar do bar o fuzilasse com um olhar inquiridor, mas quando percebeu que o seu vigiado não constituía ameaça manteve-se na posição de o controlar a partir da porta.

 

A servente pousou o copo na mesa, ele não demorou a segurar e a levar para a boca, tragou sofrivelmente, limpou a barba de espuma, a animação que morava no seu ser redobrou.

 

Depois levantou-se e caminhou calmamente em direcção à porta onde estava o guarda, estendeu ambas as mãos e este algemou-o, depois cobriu as mãos com uma camisola.

 

Iniciaram a caminhada de regresso a penitenciária localizada num dos bairros da cidade. Enquanto caminhavam, a movimentação popular fazia-se sentir com os citadinos aglomerados nas paragens, muitos dos que aguardavam o seu momento de embarcar, estavam submersos nos seus telemóveis. Invejo-os pela liberdade que usufruíam, mas estava grato pelo momento de liberdade prematura que lhe permitiu beber dois copos.

 

“ Museu vazio” – gritou um cobrador de chapa.

 

Não demoravam para chegar, quando adentraram para o recinto prisional, o recluso verteu lágrimas de saudades dos breves momentos em que foi um homem livre. O guarda prisional acompanhou-o até a sua cela e libertou-o das algemas.

 

António Murrada cumpria a sua pena de prisão de dois anos devido a posse ilegal de “soruma”.

 

Dias antes da liberdade provisória, António era hostilizado pelo seu verdugo que de forma implacável infligia pesado castigo, mas Murrada procurava a todo custo cumprir com as normas da cadeia para não sofrer a punição que o seu carrasco prazerosamente impunha.

 

Mas o guarda penitenciário Rafael Salgado, apossado por um agente maligno encontrava sempre motivos para castiga-lo. Havia dias de cacetadas injustificadas e outros de serviço pesado.

 

Num desses dias Salgado apresentou-se imponente em frente à cela de Murrada e pediu que o acompanhasse, o prisioneiro resmungou, seu carrasco alvejou-o com olhar incisivo fazendo com que o recluso obedecesse.

 

Quando chegaram ao destino, o guarda penitenciário indicou-lhe o trabalho que deveria efectuar.

 

- Desculpa chefe, mas eu limpei as latrinas ontem, hoje é dia de outro – bradou serenamente.

 

- Preso cento e vinte – cumpra ordens!.

 

Olhou furioso para Salgado, todo o seu nervosismo ficou condensada nos olhos injectados de sangue. Depois de cumprir a nefasta tarefa regressou para o seu domicílio prisional acompanhado do seu fiel verdugo.

 

Num dia pela manhã, quando António Murrada tomava o seu banho de sol no quintal da prisão era vigiado severamente pelo guarda Salgado que o fitava sem desarmar.

 

De repente uma queda aparatosa do guarda Rafael Salgado levantou um reboliço no quintal prisional, ninguém se aproximava da vítima estatelada que esperneava e esbracejava, os seus colegas que estavam longe demoravam a chegar.

 

Quando todos chegaram, guardas e reclusos ninguém se prontificou a socorrer a vítima pois estavam reféns das suas superstições.

 

Quando Murrada percebeu do que acontecia correu para socorrer a seu implacável verdugo que sofrera um ataque epilético, o socorrista introduziu um pedaço de pano entre os dentes para evitar que este mordesse a língua e colocou a cabeça da vítima na lateral porque este se babava.

 

Quando as autoridades médicas chegaram, o primeiro socorro já tinha sido acautelado, recolherem o enfermo, colocaram numa maca e procederam a retida do recinto prisional em direcção ao hospital central de Maputo.

 

Comentaristas não remuneráveis entre reclusos e guardas debatiam a pronta intervenção de Murrada que apesar de massacrado socorrera o seu mais directo inimigo.   

 

No dia seguinte o pequeno herói da penitenciária foi chamado a presença do director.

 

- Caro senhor António, estou imensamente grato pela atitude e préstimos oferecido ao nosso colega – afirmou o director. – Graças a sua intervenção o nosso colega escapou.

 

Murrada manteve-se firme e calado.

 

- Gostaríamos de recompensa-lo, diga-me o que deseja?

 

Não demorou para que o recluso levantasse a mão direita e esticasse dois dedos, indicador e o mediano.

 

- O que significa esses dois dedos, recluso Murrada?

 

- Dois copos - respondeu por fim – e logo acrescentou. – De cerveja.

 

- Muito bem, irei pedir a um dos guardas que comprem uma garrafa – afirmou o director.

 

- Desculpe senhor director, mas o meu pedido não está completo.

 

- Diga.

 

- Gostaria de beber os dois copos como um homem livre.

terça-feira, 26 novembro 2019 07:16

A última dança

O seu sistema de posicionamento cerebral (SPC) levava-lhe invariavelmente para o mesmo local, todos os dias e ali ficava estabelecendo um acérrimo contacto com a montra que hospedava diverso material de vestuário.

 

Cumpria rigorosamente dez minutos matinais numa fixação perene sem nenhuma distração, nada o desarmava, transeuntes espiavam-no pelo canto do olho temendo despertar qualquer animosidade que morasse naquela mente.

 

Quando terminava a sua missão partia e vagueava pelas ruelas da zona alta da cidade de Maputo, sempre andrajoso e com a sua cabeleira curta completamente despenteada.

 

O seu rosto taciturno deixava transparecer uma introspeção mordaz, não se lhe adivinhava as acções, amiúde recorria a alguns locais onde recolhia algo para comer depois dirigia-se para o local onde repousava, um velho barracão abandonado que partilhava com outros sem abrigo.

 

Já pelo final do dia, passava horas lendo jornais com auxílio da luz emprestada pelo candeeiro que entrava pela janela escancarada.  

 

Distanciava-se suficientemente de outros moradores do barracão e enclausurava-se, num silêncio que deixava os outros prenhes de um certo nervosismo pela atitude antipática deste.

 

Ninguém o conhecia ou reconhecia a origem ou identidade do homenzinho meio tísico e com a barba mista povoando seu queixo.

 

Especulações a respeito do homem surgiam por toda urbe, uns diziam que era um viúvo frustrado, outros que ele fora ministro, os julgamentos populares aumentavam a curiosidade a respeito do homem.

 

Um dia o homenzinho desmarcou-se da sua posição e avançou em direcção a loja, quando atingiu o umbral foi impedido pelo segurança, ele olhou com desdém para o seu obstáculo e efectuou dois passos na rectaguarda, parou, levou a mão directa para o bolso do seu calção roto e sujo; o guarda retirou a arma que trazia a tiracolo e a empunhou.

 

Este acto conferiu um momento de alvoroço na loja e nas imediações, os transeuntes que estavam perto dali pararam e advogaram o indefeso, mas mesmo assim o segurança manteve-se irredutível.

 

O homenzinho sereno mostrou o dinheiro que acabava de sacar do bolso, mas mesmo ante este gesto desarmado o guarda continuou irredutível. Assim ele optou desistir de visitar a loja arrumou seu dinheiro, recolheu a sua vontade e rumou para outro destino.

 

As incursões a sua loja predilecta já durava um mês, ninguém desvendava porque o fazia, mas depois desta tentativa frustrada de aceder muitos depreenderam que o homenzinho deveria querer adquirir alguma vestimenta para si, pois andava completamente esfarrapado.

 

No dia seguinte o homenzinho não se fez presente no seu posto, certo desalento assaltou os peões que se haviam habituado com a comparência dele.

 

A montra tinha o vidro quebrado e o segurança não sabia explicar o que havia sucedido, a polícia e o gerente da loja faziam o balanço dos prejuízos, para além do vidro espatifado desaparecera um vestido azul e o respectivo manequim.

 

Quando o indivíduo apareceu perante os demais moradores do barracão ninguém o reconheceu estava todo asseado, cabelo penteado, barba feita, trajava uma camisa de seda castanha e umas calças jeans, estava descalço. Quando percebeu que todos o viam, desapareceu para reaparecer instantes depois acompanhado de uma mulher com vestido azul, ele cantava animado e os dois evoluíam num passo de dança

 

- Fico feliz por te reencontrar querida Josefa. – disse por fim Albano todo sorridente.

 

Os outros sem abrigo animados aplaudiam eufóricos.

terça-feira, 19 novembro 2019 07:12

A velha frigideira

O chilreio matinal conferia uma musicalidade animadora, por vezes os sons graves impunham-se sobre os agudos e a musicalidade ganhava outra dinâmica.

 

Depois vinha um som específico, o pau de pilão moendo o feijão nhemba no alguidar de barro, uma mulher sentada num antigo ralador movimentava no sentido horário o pau com ambas as mãos pela força proporcionada pelos músculos retesados.

 

Apesar de consumida pelos dias ainda revigorava e continuava a laborar para o sustento da família.

 

Seguidamente sucedia um pequeno interregno na moedura e ela esmagava dentes de alho na massa e continuava com a moedura, nova paragem para introduzir agora folhas de salsa e a massa ia ganhando consistência.

 

- Bom dia, ainda? – questionou um potencial comensal.

 

- Bom dia, daqui a pouco – conferiu a mulher que confecionava o manjar.

 

Quando terminou de preparar a massa, levantou-se e dirigiu-se para o fogão, deu um sopro no carvão e depois de uma fumaça, fagulhas multiplicaram-se e uma brasa nasceu.

 

O número de futuros comensais aumentava e aguardavam expectantes que a fritura se realizasse, a fumaça evolava e mesclava-se com o odor dos seus corpos. Estavam todos de olhos fitos na frigideira onde o alimento mergulhado no óleo rebolava imparável.

 

Depois a senhora capturava os acepipes com uma colher e guardava numa bacia de plástico.

 

Então o primeiro cliente pediu:

 

- Dez badjias e um pão. - sua voz ressoou mansinho, condicionado pela fome matinal que lhe regulava a mente.

 

- Com ou sem piripiri? – questionou a vendedeira.

 

- Com!

 

A requisição foi atendida e o cliente cortou o pão cassete e introduziu as dez badjias, e logo deu uma mordedura precipitada, mastigou o suficiente para degustar as saborosas badjias da dona Ana, depois da segunda mordedura esboçou um sorriso e na terceira o alimento já não existia.

 

- São as melhores badjias de Maputo, aliás de Moçambique, sabem do mundo disse por fim! – E largou um sorriso que lhe encheu a cara.

 

Os muitos clientes que aguardavam a sua vez de serem atendidos não lhe deram atenção, aguardavam a sua vez de calar a fome que cantava nas suas barrigas.

 

Operadoras do mesmo sector tomaram conhecimento da qualidade do produto confecionado pela dona Ana, sentiram-se ameaçadas principalmente pela subtração diária da sua clientela.

 

Os fregueses existiam de todo tipo desde estudantes, trabalhadores, peões e automobilistas que vezes sem conta chegavam em busca de badjias.

 

Um desses dias estacionou um carro com chapa de inscrição do corpo diplomático norte-americano acreditado em Maputo, desembarcam dois indivíduos; o motorista e uma cidadã norte americana, ela se aproximou do posto de venda, os outros fregueses se afastaram com admiração para deixa-la passar, olhavam estupefactos para a mulher loira de cabelos cumpridos que não demorou a alcançar a vendedeira.

 

Fez a sua solicitação de badjias, os demais clientes ficaram orgulhosos do produto de dona Ana consumidas até por cidadãos estrangeiros. Esta procura internacional carimbou a fama dos serviços da senhora. A aquisição dos acepipes da dona Ana pela americana catapultou as vendas e conflito com as outras vendedeiras de badjias da zona.

 

Produzia e vendia todos os dias expecto aos domingos com qualidade invariável, os clientes sempre fieis visitavam o seu local de venda que funcionava no quintal de sua casa.

 

Um mês de concorrência fez com que as outras fornecedoras de badjias decidissem convocar uma assembleia para debater a nova ameaça que representava dona Ana. Dentre várias decisões ficou unanime que todas deviam provar o pastel para assim ficarem a saber porque que os clientes preferiam as badjias de dona Ana e prescindiam as delas.

 

Quando se reencontraram todas as cinco vendedeiras da oposição afirmaram convictas que realmente as badjias eram muito, mas muito apetitosas. Mais uma vez uma estratégia foi traçada pela enfrentar a concorrência das badjias de dona Ana.

 

O aumento da procura fazia com que dona Ana não respondesse atempadamente as solicitações, alguns clientes já reclamavam pela demora na resposta. Não demorou muito para ela encontrar uma solução, foi quando contratou uma moça para ajuda-la.

 

Chamava-se Zulmira e era muito dedicada, o tempo de resposta diminui, pois as tarefas ficaram divididas.

 

Infelizmente a moça que a coadjuvava só laborou durante uma semana e desapareceu e ai senhora teve que recobrar seus esforços para satisfazer a procura. Trabalhava em três turnos, logo pela manhã, ao meio dia e no princípio da tarde.

 

A terceira assembleia geral da oposição foi convocada para uma tarde de sexta-feira. Logo depois de aberta a sessão a presidente da mesa solicitou a presença de alguém.

 

- Conte-nos Zulmira como ela prepara as badjias?

 

A moça abriu um bloco de notas e passou a relatar os passos seguidos pela dona Ana para o preparo do gostoso acepipe. Todas as mulheres iam atentamente tomando nota.

 

Na manhã seguinte as donas do grémio da oposição passaram a seguir a receita de dona Ana, mas mesmo assim nos dias que se seguiram os clientes continuavam fiéis as badjias de dona Ana.

 

O prejuízo que muitas acarretavam fez com que algumas senhoras mudassem de zona para perpetuar o seu negócio.  Mas as mais intransigentes continuaram em busca de solução para competir.

 

Durante o terceiro turno a procura minguava, aparecia um e outro cliente, dona Ana aproveitava esse tempo para efectuar as tarefas domésticas, ficava dividida entre o negócio e os cuidados caseiros. Assim ela afastou-se minimamente do local onde fritava o último lote de badjias da tarde para cuidar da sua neta.

 

Quando regressou olhou para o fogão e simplesmente não viu a frigideira, limpou os olhos com as costas das mãos, reabriu e nada, a velha frigideira não existia. Ela não podia crer que tinham surripiado a sua velha frigideira.

 

Inquiriu tristemente entre um e outro que aparecia, mas simplesmente ninguém sabia da velha frigideira.

segunda-feira, 11 novembro 2019 07:04

A bailarina

Das diversas incursões efectuadas à estação de comboio de Mapai com o intuito de adquirir um bilhete de passagem na segunda classe fracassaram. O bilheteiro alegava que não conseguia falar via rádio com os seus colegas em Chicualacuala para saber se existiam vagas.

 

Olhei para o relógio analógico aparafusado numa das paredes, eram 13h30min, o comboio só chegaria às 14h30min segundo o chefe da estação.

 

O princípio da tarde dominical era típico de um povoado do interior de Moçambique, completamente dormente.

 

Voltei para a residencial onde havia passado a noite, e aí fiquei na esplanada a berma da única estrada asfaltada. Perscrutava o lugarejo que por vezes era visitado por um carro que passava velozmente em direcção a Chicualacuala; viajantes caminhavam com as suas trouxas para a estação, das minhas averiguações fiquei a saber que vinham de Massangena, Páfuri e outros lugares.

 

O apito do comboio soou, duas vezes, arrepanhei a minha mochila, chamei pela servente, saldei a minha conta e rumei apressado para a estação.

 

O bilheteiro disse-me que poderia embarcar na carruagem de segunda classe e averiguar com o revisor se havia lugar.

 

A carruagem que buscava não havia parado na plataforma, perscrutei e a vi; apressado alcancei-a, segurei o corrimão, quando balançava para subir, o assistente de bordo, um homem grandalhão, indicou-me a carruagem de 3ª classe, julgando que eu me enganara na escolha.

 

“Não há lugares?”

 

“Há” – respondeu

 

“Então!”

 

Afastou-se da porta da carruagem e embarquei.

 

Pelo julgamento precipitado do assistente de bordo este concluíra, pelo meu aspecto meio desmazelado, que eu não tinha como pagar para usufruir das comodidades da classe.  

 

Esperei no corredor pelo revisor enquanto apreciava a movimentação dos passageiros que corriam para embarcar maioritariamente na 3ª classe, este chegou e indicou-me um compartimento com seis beliches ocupada por três mamanas, atirei a minha trouxa para a beliche de cima e voltei para o corredor.

 

O comboio voltou a apitar e depois um abanão sacudiu a carruagem, as grandes rodas de ferro rolaram na via-férrea, continuei debruçado na janela desfrutando da paisagem que se oferecia. A locomotiva circulava vagarosamente paralela a estrada asfaltada. Depois de dez minutos parou!

 

Desconfiei da demora neste apeadeiro e então apercebi-me que se procedia ao carregamento de estacas no vagão para esse fim.

 

Voltamos a rolar, agora com mais velocidade, ainda debruçado na janela da carruagem sentia a brisa beijar-me o rosto.

 

Decidi explorar a locomotiva, foi então quando escalei a carruagem contígua, “eureka!” celebração introspectiva, acabava de encontrar o melhor lugar no comboio, a carruagem- restaurante e bar.

 

Clientes hospedados nas mesas desfrutavam de suas bebidas, engoli um seco a cada vez que eles enjeriam o precioso líquido, busquei por uma mesa vaga, mas não encontrei, então fui apreciando ora o movimento do restaurante-bar ora a paisagem, esperando uma mesa ficar livre.

 

Uma espevitada senhorita, que eu conhecera aquando da viagem Maputo-Mapai, irrompeu carruagem adentro, saudamo-nos como amigos de longa data, trajava uma saia curta, as pernas grossas lhe ficavam salientes, era baixinha e tinha a carapinha curta que enaltecia a sua tez clara.

 

Vagou uma mesa e sentamo-nos, eu meio carrancudo porque estava desprovido de niqueis para usufruir de uma bebida enquanto ela gaba-se eloquentemente das suas proezas de vendedeira ambulante da rota Chókwè-Chicualacula, continuou armada de sua oratória desarmando seus ouvintes que tentavam expor um e outro facto do seu quotidiano.

 

 Um desconhecido juntou-se-nos na mesa, arrancou uma cerveja que guardava no seu alforge, e prontamente ofereceu-me uma, engoli um seco só de ter a lata na mão.

 

Um processo de mercantilização tácita foi celebrado quando cedo a minha atenção para o desabafo dos seus dissabores e ela faz com que não me falte cerveja, chego mesmo a pensar que ela gasta os lucros do seu negócio para ganhar a minha atenção.

 

A intromissão repentina de um indivíduo desarmando-a de algo que ela falara deixou-lhe momentaneamente perplexa, até processar o reconhecimento do senhor septuagenário que é mecânico de Chókwè, seu amigo, que também é viajante assíduo do trajecto Chókwè-Mapai-Chókwè. A nova personagem que se juntara a mesa era também cheia de retórica.

 

Discursos instigados pelo álcool animam a viajem, a nossa mesa tornou-se o cerne da atenção da carruagem, ela espevitada expõe seus dotes femininos e quando confisca a atenção masculina, levanta-se pousa a perna direita no banco, puxa a diminuta saia, e numa posse expõe a coxa torneada, não queria deixar seus dotes femininos nas palavras que pronunciara a esse respeito.

 

Uma pequena turba vai-se acercando do pequeno palco onde a nossa actriz vai dando seu espectáculo, contracenando com o velho mecânico de Chókwè que procura contraria-la sempre que ela fala dos seus atractivos femininos.

 

Um toque de emoção leviana assaltou-lhe a mente e ela pula para o banco onde antes pousara as pernas, ginga o rabo para esquerda depois para direita, bate a nádega majestosamente, é ovacionada com ululos e assobios que combinados com o som produzido pela locomotiva dão ritmo a viajem.

 

Buscou-a de relance e percebo que ela procura dissipar o seu sofrimento, depois de tudo que me contara não passa de uma infeliz que encontrou uma oportunidade de afugentar o mal.

 

Olhos masculinos, endiabrados pelo álcool fustigam a dançarina que vai marrabentando ao ritmo da cantiga que ela mesmo entoa, auxiliado pelo coro popular.

 

O afrouxamento seguido de apitadelas dá-nos conta que estamos próximos de um apeadeiro, os ânimos amainam à medida que o comboio vai parando.

 

“Mabalane” – comunica um dos espectadores.

 

Este anúncio desarma a nossa bailarina, um cavalheiro auxilia-a a descer do palco, continuamos a nossa cavaqueira enquanto o público vai-se retirando gradualmente.

 

Ela conta muitas estórias “da árvore magica que expele uma luz” no troço Cungumuni-Mabalane, e o velho mecânico gaba-se também de seus dotes de reparador de motores daquelas bandas, “sou o melhor mecânico de Gaza”.

 

São 19h30 min quando a locomotiva se imobiliza por completo na estação de Mabalane.

 

O papo começa a frear, peço licença e desembarco rumo a estação, a minha amiga dançarina incube-me de adquirir umas cervejas no bar da estação pois garante-nos que são relativamente mais baratas que as da carruagem-bar.

 

Reembarco antes do comboio apitar e apercebo-me que estou meio ébrio, divagamos ainda no papo enquanto terminamos de beber as cervejas, a locomotiva reinicia a marcha.

 

Combalidos pelo cansaço, despedimo-nos depois de trocarmos os números de telefone, convidam-me a vir a Chókwè onde desembarcariam e residem.

 

Cada um ruma para a sua carruagem quando entro na minha, encontro as minhas colegas de viajem dormindo, trepo para a beliche evitando produzir qualquer ruído, então lembro-me que as senhoras são zimbabueanas e se dirigem à Maputo em negócios. Resgatei da mente uma estória que se contava nas grandes cidades sobre os vendedores zimbabueanos que não se importavam de deixar ficar o seu produto mesmo sem o conhecer o domicílio do cliente, prometiam vir buscar o dinheiro no dia prometido. E, assim faziam. As mentes mais férteis garantiam que eles eram fantasmas a serviço do seu senhorio.

 

O embalo da locomotiva e os mililitros de cerveja mesclados combinam um perfeito sonífero. Horas depois acordo assustado pelo efeito da luz do crepúsculo matinal que entra pela janela do compartimento e a vozearia das senhoras que se arrumam. O comboio experimentava um novo afrouxamento, espreito para averiguar em que estação estamos, “Manhiça”. Espreito o relógio de pulso para descobrir as horas, são 5h00 da manhã.

 

Depois de esfregar os olhos com as mãos, redescubro as minhas companheiras de viajem, um alento sossega meu espírito, afinal de fantasmas elas não têm nada. Elas desembarcam sem despedir, pelo menos sei que são antipáticas é única coisa que sei até ao momento.

 

O comboio volta a apitar e as rodas de ferro abraçam a linha, a locomotiva geme, o destino esta próximo, lembro-me da bailarina com saudades.

segunda-feira, 04 novembro 2019 07:40

A Sedutora Belga

A vidraça cristalina permitia descobri-la a partir do lugar onde me encontrava sentado, também alguns subsídios luminosos na ordem de uns tantos luxes faziam com que ela cintilasse.

 

O seu brilho foi o grande chamamento, despertou-me, fui arrebatado pela beleza que ela emanava, venci a timidez que me era característica e pedi para que o servente a chamasse.

 

A vontade de tê-la por perto medrava a medida que ela se aproximava acompanhada pelo servente.

 

Quando chegou olhei-a mumificado, sem saber o que dizer, ela trajava uma saia branca com fundo vermelho e adornos dourados e na parte superior tinha um véu branco que lhe cobria o rosto. Exalava uma beleza peculiar que a distinguia das demais.

 

A apreciação unilateral durou o tempo suficiente de perceber que ela era humilde e este sentimento conferiu-me a ousadia de descobrir-lhe o semblante.

 

Beleza sublime que me convocou para um êxtase sem igual, divaguei perdidamente por um mundo onírico onde ela era a minha princesa.

 

Era de origem belga e estava em Moçambique há pouco tempo e já tinha um grandíssimo grupo de admiradores e pretendentes.

 

A cara dela não me era estranha já a tinha visto amiúde em muitos lugares da cidade de Maputo, sempre impondo seu charme em cada lugar que habitava.

 

Não demorei a confirmar que eu era seu novo apaixonado e que lhe seria eternamente fiel, pisquei-lhe o olho e ela continuou serena.

 

Senti que uma tácita relação de intimidade surgira entre nós, segurei-a com a mão direita senti a frescura do seu corpo serpenteando o meu ser, fiquei domado pela sua sumptuosidade. Prontos ela acabava que me possuir sem dizer uma única palavra.

 

Era a primeira vez que eu me enamorava por uma estrangeira, fora sempre fiel às cá da terra, mas esta forasteira usurpava minha alma.

 

Depois de confirmada à vontade mútua de nos possuirmos, levei-a aos meus lábios e beijei-a profusamente, toda a minha paixão ficou selada naquele acto. A continuidade amorosa ia-se cimentando com beijo atrás de beijo.

 

A música que se fazia ouvir metamorfoseou-se com a minha embriagues e solícito levei-a a pista, evoluímos na dança, sempre a segurando firme com a mão direita por vezes a beijava e experimentava uma nova frescura dos seus lábios, e assim ia sucando a essência áqueo do seu magnifico ser.

 

Voltamos à mesa e as diligências para nos conhecermos melhor aumentava, eu com o meu olhar usurpador e ela ali sempre fresca para mim.

 

Os meus comparsas de paródia que estavam nas proximidades acompanhadas de duas nativas falavam animados. O ruído das suas gargalhadas por vezes roubava o conluio que se operava entre eu e ela.

 

Quando me levantei para ir aos lavabos tropecei e logo os meus companheiros anularam a queda.

 

- Temos que ir embora – conferiram quando se aperceberam da minha embriaguez.

 

- Não, preciso ficar com ela – disse convicto.

 

Quando voltei dos lavabos ziguezagueando eles ficaram convencidos que precisavam de me acompanhar à casa.

 

Ainda vociferei para desencoraja-los, mas eles não se deixaram intimidar, ampararam-me lado a lado e forçaram-me a sair.

 

Mas antes de abandonar o local gritei:

 

- Amo-te Stella.

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