Director: Marcelo Mosse

Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

BCI
quinta-feira, 12 dezembro 2019 06:37

Dois Copos

Escrito por

O diâmetro da base opaca do copo era menor que a do topo, o copo estava assente numa mesa rectangular de pinho, o conteúdo interior borbulhava até desaguar na superfície espumante, a frescura do líquido dourado transpirava deixando a parte externa deste completamente ensopada.

 

O proprietário do recipiente olhava meditabundo sem se importar com o barulho produzido por outros clientes que conviviam procurando fazer-se ouvir ante a música ensurdecedora expelida por potentes colunas.

 

Momentos de regressão inolvidável assaltaram a sua mente, um sorriso inocente errou-lhe pelos lábios ainda sequiosos.

 

Segurou o copo, sentiu o frescor fluir corpo adentro animando o seu estado de espírito; era a primeira vez em um ano que tinha o privilégio de usufruir de um momento especial, não demorou, deu um gole.  

 

- Ahh! – estalou a língua.

 

Depois num trago prazeroso eliminou o que ainda restava da cerveja.

 

Buscou a servente, submersa num mar de gente segurando acrobaticamente uma bandeja com inúmeros copos.

 

Quando a capturou com o olhar, levantou a mão direita com o dedo indicador erecto, a moça voltou a perder-se para retornar instantes depois com outro copo.

 

Enquanto aguardava ansiosamente que outro copo chegasse desequilibrou-se devido a estrutura deficiente do banco onde se encontrava sentado, movimentou-se para esquerda com o propósito de equilibrar-se, este movimento fez com que o guarda que se posicionava no limiar do bar o fuzilasse com um olhar inquiridor, mas quando percebeu que o seu vigiado não constituía ameaça manteve-se na posição de o controlar a partir da porta.

 

A servente pousou o copo na mesa, ele não demorou a segurar e a levar para a boca, tragou sofrivelmente, limpou a barba de espuma, a animação que morava no seu ser redobrou.

 

Depois levantou-se e caminhou calmamente em direcção à porta onde estava o guarda, estendeu ambas as mãos e este algemou-o, depois cobriu as mãos com uma camisola.

 

Iniciaram a caminhada de regresso a penitenciária localizada num dos bairros da cidade. Enquanto caminhavam, a movimentação popular fazia-se sentir com os citadinos aglomerados nas paragens, muitos dos que aguardavam o seu momento de embarcar, estavam submersos nos seus telemóveis. Invejo-os pela liberdade que usufruíam, mas estava grato pelo momento de liberdade prematura que lhe permitiu beber dois copos.

 

“ Museu vazio” – gritou um cobrador de chapa.

 

Não demoravam para chegar, quando adentraram para o recinto prisional, o recluso verteu lágrimas de saudades dos breves momentos em que foi um homem livre. O guarda prisional acompanhou-o até a sua cela e libertou-o das algemas.

 

António Murrada cumpria a sua pena de prisão de dois anos devido a posse ilegal de “soruma”.

 

Dias antes da liberdade provisória, António era hostilizado pelo seu verdugo que de forma implacável infligia pesado castigo, mas Murrada procurava a todo custo cumprir com as normas da cadeia para não sofrer a punição que o seu carrasco prazerosamente impunha.

 

Mas o guarda penitenciário Rafael Salgado, apossado por um agente maligno encontrava sempre motivos para castiga-lo. Havia dias de cacetadas injustificadas e outros de serviço pesado.

 

Num desses dias Salgado apresentou-se imponente em frente à cela de Murrada e pediu que o acompanhasse, o prisioneiro resmungou, seu carrasco alvejou-o com olhar incisivo fazendo com que o recluso obedecesse.

 

Quando chegaram ao destino, o guarda penitenciário indicou-lhe o trabalho que deveria efectuar.

 

- Desculpa chefe, mas eu limpei as latrinas ontem, hoje é dia de outro – bradou serenamente.

 

- Preso cento e vinte – cumpra ordens!.

 

Olhou furioso para Salgado, todo o seu nervosismo ficou condensada nos olhos injectados de sangue. Depois de cumprir a nefasta tarefa regressou para o seu domicílio prisional acompanhado do seu fiel verdugo.

 

Num dia pela manhã, quando António Murrada tomava o seu banho de sol no quintal da prisão era vigiado severamente pelo guarda Salgado que o fitava sem desarmar.

 

De repente uma queda aparatosa do guarda Rafael Salgado levantou um reboliço no quintal prisional, ninguém se aproximava da vítima estatelada que esperneava e esbracejava, os seus colegas que estavam longe demoravam a chegar.

 

Quando todos chegaram, guardas e reclusos ninguém se prontificou a socorrer a vítima pois estavam reféns das suas superstições.

 

Quando Murrada percebeu do que acontecia correu para socorrer a seu implacável verdugo que sofrera um ataque epilético, o socorrista introduziu um pedaço de pano entre os dentes para evitar que este mordesse a língua e colocou a cabeça da vítima na lateral porque este se babava.

 

Quando as autoridades médicas chegaram, o primeiro socorro já tinha sido acautelado, recolherem o enfermo, colocaram numa maca e procederam a retida do recinto prisional em direcção ao hospital central de Maputo.

 

Comentaristas não remuneráveis entre reclusos e guardas debatiam a pronta intervenção de Murrada que apesar de massacrado socorrera o seu mais directo inimigo.   

 

No dia seguinte o pequeno herói da penitenciária foi chamado a presença do director.

 

- Caro senhor António, estou imensamente grato pela atitude e préstimos oferecido ao nosso colega – afirmou o director. – Graças a sua intervenção o nosso colega escapou.

 

Murrada manteve-se firme e calado.

 

- Gostaríamos de recompensa-lo, diga-me o que deseja?

 

Não demorou para que o recluso levantasse a mão direita e esticasse dois dedos, indicador e o mediano.

 

- O que significa esses dois dedos, recluso Murrada?

 

- Dois copos - respondeu por fim – e logo acrescentou. – De cerveja.

 

- Muito bem, irei pedir a um dos guardas que comprem uma garrafa – afirmou o director.

 

- Desculpe senhor director, mas o meu pedido não está completo.

 

- Diga.

 

- Gostaria de beber os dois copos como um homem livre.

Sir Motors

Ler 2630 vezes