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Actualizado de Segunda a Sexta

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Alexandre Chaúque

Alexandre Chaúque

sexta-feira, 08 dezembro 2023 09:46

Um panegírico ao Daniel Cuambe

Escrever várias histórias sobre o mesmo homem, jamais será redundante, e as mesmas histórias podem ser contadas de formas diferentes até que não se atinja a exaustão. É como ir ao rio e ver na ilusão do sentimento e da óptica, as mesmas águas que nos vão banhar o corpo e deixarem-nos frescos. Todos os dias. Então, Daniel Cuambe era isso, como o rio permanente. Que nunca seca, nem que venham as estiagens mais devastadoras.

 

Na Redacção do jornal Notícias onde o conheci melhor, o mano Dany, como era tratado pelos colegas e pessoas mais próximas, destacava-se pela predisposição de articular a palavra sem fim, suportada por um sentido de humor contagiante. Era homem de olhar discreto, mas muito atento. E esse detalhe avisava-nos da presença de um ser inteligente, preparado para todos os momentos e todas adversidades.

 

Mano Dany nunca escondeu a sua paixão pelo jornalismo. Era nesse campo onde a sua vida encontrava suporte e fazia sentido, actuando como um grande jogador de reagueby, sempre a correr com a bola nas mãos ao encontro da luz. O futuro para ele não tinha importância, era preciso viver como o tecelão das redes de emalhar, que trabalha com entusiamo todos os dias sem cansar. É por isso que a euforia do mano Dany não acabava.

 

Há momentos, muitos momentos em que o mano Dany dispensava as palavras, que adorava libertá-las como aos pássaros, para deixar que seja a gargalhada sonora a troar, impregnando o ambiente com alegria inefável. Era um actor seguro. Sabia que as pessoas esperam sempre dele algum gesto, talvez uma frase improvisada, porém suficientemente temperada, e ele sabia disso. Mas nunca teve medo que alguém o aguardasse, pois confiava na sua espontaneidade, na sua capacidade de estar em todos os lugares, em qualquer circunstância.

 

Vestia-se com simplicidade, a camisa e as calças estão sempre bem engomadas. Barba infalivelmente feita e cabelo aparado rente, e também não vai faltar na sua companhia, uma garrafa de água de 1,5 litros que vai bebendo a gargalo nos intervalos do tempo, em particular quando está na Redacção produzindo as prosas que vão marcar a sua vida.

 

E um homem destes, promovido a personagem, ficará sempre na memória pela forma como encarou a vida, tal como ela é, sem acrescentar absolutamente nada. Mano Dany via graça em tudo à sua volta. Trazia a alegria onde estivesse com os amigos,  destacando-se pela gargalhada descomprometida e pelas lembranças que partilhava, muitas delas que nos faziam recordavam a máxima: quem conta um conto, aumenta um ponto. Era assim, o mano Dany: tudo para ele tinha mais um ponto, e isso é próprio de actores livres de tabus.

segunda-feira, 27 novembro 2023 09:10

Izidine Malache: um “velho lobo” ao pôr do sol

Apesar de estar a viver numa cidade por demais pacata como Inhambane, Izidine Malache passa despercebido, como a lua numa grande metrópole onde quem reina é o néon. Naturalmente que já não vai aos campos de futebol submeter-se aos intensos delírios das massas, com a grande responsabilidade de ajuizar os lances, indicando com o estridente apito os sinais dos jogos, mas ele anda por aqui, mantendo a postura física de quem viveu segundo as regras de um desportista disciplinado.

 

Izidine Malache pertence a uma tribo de árbitros da primeira água, que brilhavam e mantinham ordem nos relvados e nos pelados nas décadas de 80 e 90, quando o futebol que se praticava era de topo, então, eles também – os árbitros – não podiam estar à baixo dessa bitola. Era à volta da sua órbita que gravitava toda a classe suprema dos jogadores. E Malache destacava-se na elite da arbitragem moçambiana.

 

Passou a vida inteira em Maputo, a partir de onde viajava por todo o território nacional a arbitrar jogos dos inolvidáveis campeonatos nacionais, por tudo que nos ofereciam, tendo como actores principais, futebolistas muitos deles injustiçados por lhes ter sido vedado o caminho da glória, por políticos que jamais vão perceber que o desporto ergue a nossa bandeira. E nesse fervor que acontecia do Rovuma ao Maputo, Izidine Malache destacava-se pela competência e serenidade e humildade.

 

Há 25 anos que está em Inhambane, um lugar que entra em consonância com o caracter de um homem feito para não empurrar as pessoas. Investe o seu tempo numa escola de condução onde é gestor, e é admirável a manutenção da sua condição física que parece de um jovem de 20 anos. Ele caminha a pé nas ruas da cidade, e já me disse uma vez, “andar de carro numa cidade tão pequena para quê!”.

 

Pois é! Izidine Malache não reivindica galhardetes. Nunca falou disso nos momentos em que nos encontramos e nos saudamos como velhos conhecidos e falamos de pequenas coisas, mas na despedida nunca vai faltar a lembrança de uma memória dos grandes tempos em que pressão do público era avassaladora. O árbitro precisava de “nervos de aço” para aguentar aquilo, e Malache sempre teve os “badalos” no lugar, até hoje, que não se atrapalha com os desconhecidos, mesmo que estes se aproximem dele prescrutando-o com o olhar, sem dizer nada.

 

Mas se calhar a cidade de Inhambane, composta maioritariamente por jovens, que não acompanharam os tempos áureos do nosso futebol, ainda não percebeu que tem no seu seio um “velho lobo” que anda pelas ruas livremente sem chatear a ninguém. E esse “velho lobo” chama-se Izidine Malache, cujo nome está nos escaparates de ouro da arbitragem moçambicana. O resto ficará por conta da história.

terça-feira, 14 novembro 2023 10:36

De que vale o nosso turismo?

Daqui a pouco, por causa das festas de Natal e fim-do-ano, será o ram-ram numa cidade vocacionada ao tédio e falta de crença no futuro. Nem o turismo, que seria a gazua, a transforma, talvez porque os interesses dos que detêm os cordelinhos sejam outros. Não há nada por aqui, quase absolutamente nada, que seja resultado da economia do turismo e que benefecie as populações. Propala-se demais, promovem-se seminários, gastam-se nesses encontros, dinheiros que nem sequer provêem da área, e os resultados serão escassos.

 

Vem sendo assim desde que se implantaram as instituições que lidam com o turismo. Fala-se e discute-se nos papeis e nas salas montadas a propósito. Bebe-se muito café e no fim promovem-se jantaradas abastadas com camarões e lagostas e peixe da primeira, tudo isso regado com bom vinho, mas a cidade continuará na mesma. Sem colher os frutos de uma sementeira falsa.

 

É falácia vir cá fora dizer que o turismo cria empregos, não só na cidade, como em toda a extensão da província de Inhambane. Se calhar pode ser verdade. E ainda dizem mais, “com esses empregos os jovens conseguem colocar pão à mesa das suas famílias”. E eu pergunto, que pão! Quanto é que recebem esses jovens? Com que dignidade são tratados como empregados e como pessoas! Quantas horas trabalham por dia?

 

Esta será a parte mais dolorosa e condenável que devia preocupar as estruturas competentes, como o Ministério do Trabalho e o Ministério da Cultura e Turismo, se efectivamente houvesse interesse em que o Turismo trouxesse benefícios aos moçambicanos. Mas são eles, os investidores, que ganham, explorando os moçambicanos. E não escondem a sua actuação, provavelmente porque têm protecção de alguém que está pouco se lixando com o tratamento dado aos seus compatriotas. Então eles podem fazer as coisas a seu bel prazer.

 

Na orla marítima, desde Zavala até Inhassoro, estendem-se lodges sem fim, muitos deles explorados por estrangeiros. Ganham dinheiro, sobretudo em tempos de pico. Abrem espaço aos que podem desfrutar desses lugares de lazer, independentemente de ser ou não daqui, e nem é sobre isso que estamos aqui a falar. A questão é, quanto é que eles pagam de impostos para desenvolverem o seu trabalho? Para onde vai esse dinheiro que pagam? E não há sinais de que haverá amanhã outra direcção de desenvolvimento com base no turismo.

 

De que vale termos um turismo que não nos beneficia? De que vale termos um Ministério vocacionado, se o crescimento que se regista não traz valor concrecto às populações?  De que valem os discursos oficiais do tipo “Temos vários investidores que estão a trabalhar no nosso país e dão emprego aos jovens”, se a cidade de Inhambane em particular e o país no geral ganha quase nada? É claro que Moçambique está aberto aos investimentos, e eles vêm em catadupa, sabem que não vão pagar quase nada de impostos. Fala-se muito de incentivos fiscais que vão atrasando o nosso país em benefício de poucos, para a manutenção da nossa desgraça.

 

Urge mudar urgentemente de paradigma. É preciso colocar o turismo na catapulta do desenvolvimento como se faz noutros países, e Moçambique tem potencial soberbo para fazer girar a roda. Mas enquanto as palavras e os pomposos discursos prevalecerem, continuaremos assim: na pindaíba!

terça-feira, 07 novembro 2023 12:28

O silêncio é um sismo

É um dos indicativos da sabedoria. Significa que o silêncio dá-te a prerrogativa de ouvir os outros sem que os respondas. Necessariamente. Mas os próprios juízes, imbutidos nas togas, tremem perante o silêncio dos réus que  vão enfrentar as câmaras de cianeto sem vocalizar. Deixando nas mãos do tempo e da razão, os infalíveis e verdadeiros julgamentos.

 

O silêncio pode ser a báscula inesperada, que vai libertar da terra os terramotos do fim do mundo e deixar tudo por conta da correnteza que já existia antes de todas as paisagens. É por isso que mesmo os maiores rios do mundo não têm ondas, porém residem neles os largatos aquáticos mais tenebrosos, que vão matar os leões na toca das profundezas.

 

Nelson Mandela já dizia: “cuidado com o tigre das massas populares!” E essas palavras serão o sino que reboa em toda a amplitude. Então, depois desse sábio aviso, virão as verrumas incubadas pelo silêncio durante este tempo todo em que as feridas doíam  para dentro e mantinham-se vivas.

 

O silêncio não tem pressa, mas é alagado de demora, e quando já não aguenta mais, move para baixo os montes e as montanhas de pedra, e tira todas as lanças  e lança-as no espaço onde os gritos e os gemidos dos diabos, serão ouvidos na mesa dos faustosos banquetes. Regados de sangue.

 

Foi num dia de silêncio que a Voz do próprio Jehová dos Exércitos, vibrou na sarsa e disse a Moisés, “Vai ao Egipto libertar os meus filhos, das masmorras de Faraó!” E Moisés foi, mesmo tremendo com o cajado na mão.

 

O tigre das massas populares será fecundo. Virá das comportas do silêncio doloroso de anos e anos em que o sol teimava em não sair do esconderijo das nuvens. Mas tudo isso é mentira, “por mais longa que seja a noite, a verdade é que vai amanhecer!”.

 

O silêncio é metamorfo. Depois do sofrimento, ele transforma-se em canções de revolta que vão ecoar nas ruas pejadas de armas e balas e cães, e quando isso acontecer, significa que já ninguém vai parar este sismo que começará no crepúsculo da liberdade, com jovens entregando o peito aos fuzis e gritanto: Liberdade! Liberdade!

 

Cuidado com o tigre das massas populares! A longa espera já terminou, e agora é tempo de rebentar as grilhetas, lutando sem pólvora, mas com as azagaias contidas nas estrofes da paz que o povo canta nas ruas e nos subúrbios sombrios onde a fome e a nudez, serão a poesia da povo.

 

E os jovens erguem-se da catapulta ora amordaçada ao longo dos anos, e com eles nasce um novo amanhecer para que todos desfrutem do maná inesgotável, pronto a colocar mesa posta em todos os lares.

 

O silêncio é um sismo. “Cuidado com o tigre das massas populares!”

segunda-feira, 23 outubro 2023 09:30

Gimo Remane

De longe tenho acompanhado – sempre que posso - a vida musical de Gimo Remane, rebatizado Gimo Mendes. Rejubilo mesmo sentindo que é pouco o que me chega por via das redes siciais, é como se eu estivesse a assistir a um espectáculo encostado num canto distante sem poder divisar claramente os actores que vibram no palco, contentando-me apenas com o som e as imagens transmitidas  nas telas gigantes. Mesmo assim não não deixo de aplaudir.

 

Há pouco tempo esteve em Moçambique o Gimo, e não era a primeira vez que o fazia, depois de ter partido para as longíquas terras dinamarquesas onde continua a ser um importante candelabro, com a mesma intensidade luminosa de como era no Eyuphuru, uma das maiores bandas que já tivemos no nosso país, Gimo Remane terá sido o esteio inegável.

 

Sempre que vem ou que volta, há um ressurgir de memórias gravadas no tempo e nos discos e nos palcos, Eyuphuru era mais que um remoínho. Aliás a escolha que fizeram, de avançar com instrumentos acústicos e percussionistas rústicos livres de preconceitos, fazia deles uma catarata. Foi assim que abriram alas, e em pouco tempo tornaram-se conhecidos e desejados e ovacionados por onde passavam.

 

Mas há situações que acontecem de forma inesperada na vida musical que você não percebe, Gimo Remane deixou de pertencer a banda que ajudou a firmar, e seguiu outros ventos: os ventos do amor! E amor molda a quem quer que seja, e ninguém vai contrariar essa verdade.

 

Hoje, Gimo não parece o mesmo. Aquele cujos temas que compunha e tocava, eram um derrame num grupo insuperável e tinham cheiro profundo à emakwa, à África. Escolheu outra forma de fazer música para nos mostrar que na exploração da escala diatónica jamais se chega ao fim e nada é linear nessa área. Mas o importante é que esse emakwa ainda está vivo, com a mesma voz e os mesmos dedos percorrendo as cordas da guitarra.

 

E porque o belo atrai o belo, é gratificante ver o agora Gimo Mendes rodeado de crianças e adultos dinamarqueses, aprendendo música com um moçambicano que não terá vestido propriamente outras asas, mas se calhar fortificou-as com novas escolas que lhe darão certamente outras perspectivas e conhecimentos.

 

E Gimo jamais será retirado dos escaparates onde jazem os nomes mais expressivos da melhor música moçambicana e africana, pela elevada qualidade dos seus trabalhos esxaltados no Eyuphuru, e que o tornarão assim, um artista de fina estirpe. E ainda bem que está mostrando a todos, que os seus limites não terminam em Nampula.

segunda-feira, 09 outubro 2023 12:52

Textáfrica: o mito de Chimoio

O desmoronamento do Textáfrica de Chimoio jamais será um caso isolado, está inserido num contexto em que todo o futebol moçambicano perdeu o entusiasmo dos tempos. Ou seja, nos primórdios da independência nacional, o nosso país era um imenso alfobre futebolístico, com tendência a inesgotável, mas é reduntante dizer isso. Era um transbordante estendal com jogadores de topo, talhados naturalmente para grandes exibições em qualquer parte do mundo, e eles mostravam esse talento nos campos sempre abarrotados, e assim, todos nós acreditávamos que na senda de Eusébio, Coluna, Matateu, Vicente, Matine e outros tantos, seriam estes a embarcar em outros voos. Enganamo-nos!

 

Jogadores como Orlando Conde, Ângelo Jerónimo, Chababe, Luís Siquice, Terezo, Chinguia, Guiló, Cifrónio, Babarriba, Lóngwè, Marcos I, Marcos II, para citar apenas alguns exemplos dentro de um manancial vibrante sem fim que Moçambique já teve, terão sido injustiçados pela história, impedidos de brilhar noutras galáxias. Fecharam-lhes as portas da luz, então não tiveram outra saída que não fosse a resignação, mesmo assim sem perder a dignidade. Levantaram, em ocasiões infinitas, o Estádio da Machava e muitos outros campos espalhados pelo país, até que as pernas sossobraram. Deixando para trás o seu labor indelével, que será recordado para sempre.

 

Porém, o que nós não sabíamos e nem esperávamos, era que esses “craques”  seriam a última carrada, pois, depois deles os dias de sol começaram a fenecer, até hoje que não temos certeza do futuro, a não ser que Reinildo Mandava reacenda a chama da nossa esperança e fazer-nos acreditar, novamente, que Moçambique é um país de grandes jogadores de futebol.

 

Nesse tempo de ouro nem sequer precisávamos de televisão, não tinhamos. Bastavam-nos os relatos de João de Sousa, Anuar Mussagy,  Saíde Omar e o Domingos Naene para que, na impossibilidade de estar no terreno, acompanhassemos tudo em grupos de amigos, gritando em delírio como se também estivéssemos lá. Eram tempos de glória, corporizados por finas coqueluches. Conheciámos a todos pelos nomes e acreditávamos nas suas capacidades de tornar as partidas em poesia que será declamada do Rovuma ao Maputo. Para gáudio do próprio futebol.

 

Não haverá nenhum jogo no Estádio da Machava que não seja precedido de romaria. As pessoas, na falta de transporte, iam a pé, ocupando literalmente as bermas das estradas que vão dar ao vale do Infulene. A festa era exalada antes de o jogo começar, numa postura de pátria nunca vista. A Federação Moçambicana de Futebol tinha os seus “sócios” com “bancada-sol” reservada para que o remoínho ressurgisse. Outros, que não terão acesso ao recinto, vão se pendurar nos postes de electricidade lá fora. Mas esse é o resultado da força que o futebol tinha nesse tempo.

 

Depois, provavelmente a partir dos finais de oitenta e princípios de noventa, a euforia que dava sentido à nossa vida começou a esboroar-se. Fomos ficando sem  a quem seguir como ídolo. Os campos foram perdendo o chamaris. Mesmo com a construção do Estádio Nacional do Zimpeto, não haverá motivo para lá ir, salvo em pouquíssimas ocasiões, mais por aliciamento da publicidade, do que propriamente pela crença de que teremos os nossos jogadores a cintilarem. Não é o “Zimpeto” que joga, são os jogadores. Que entretanto já não nos fazem acreditar no futuro.

quinta-feira, 28 setembro 2023 08:52

Devú: o último lobo

Já dissemos isso mais do que uma vez, na tentativa de não perder de vista a história de uma cidade que se tornou incapaz de preservar os ritos, e os mitos. É isso mesmo: Inhambane está caminhando de degeneração em degeneração em vários ângulos da sua existência, até o silêncio está sob ameaça, com os decibéis a triunfarem em todo o lado sem que as autoridades actuem. Mas, mesmo com essas dores todas, e ainda perante o êxodo e  os fragmentos, há aqueles que permanecem para serem eles a fechar a porta. Um deles é o Devú.

 

Devú parece ser o último símbolo da comunidade hindú na cidade de Inhambane. Hevendo outros, provavelmente terão menor expressão numa situação em que quase todas as lojas destes asiáticos, ou descendentes deles, estão fechadas, sem qualquer sinal de que haverá reabertura das mesmas nos próximos tempos. Muitos indianos daqui zarparam em busca de outros ventos, se calhar porque a sorte lhes virou as costas numa terra omde tinham o domínio total do comércio. Ficavam à porta e o dinheiro ia lá ter.

 

Agora o negócio tem outras mãos e outros donos, de entre eles muitos moçambicanos que constroem lojas e bancas nos bairros residenciais, facilitando as deslocações dos consumidores à cidade. Os próprios alfaiates indianos, que eram a maior recomendação –quase única – levantaram as âncoras e içaram as velas antes que o vento parasse em definitivo de soprar.

 

Mas Devú ficou, como um marinheiro abandonado num barco ora robusto, porém agora navega na costa sem capacidade de ir ao ao alto mar, o casco está por demais fragilizado. Ele também tem as mãos comprometidas, tremem ao se lembrar que os remos caíram na água, matando completamente o sonho de alcançar algum porto próximo ou distante.

 

Seja como for, Devú não deixa de ser uma pessoa amável. Mantem o abraço afável aos seus trabalhadores que estão alí, na loja, por detrás do balcão, com muito pouco para vender, quase nada. Já não é a loja comercial que move um homem que se tornou personagem pelas suas características peculiares, mas a história que essa loja emana. Abandoná-la seria igual a abandonar-se a si próprio  e desvalorizar tudo o que os seus pais fizerm. É por isso que se mantém à espera de um comboio que ele sabe muito bem que não vai chegar.

 

Parece - quando espreita pela porta cá para fora onde os jovens passam ignorando-o –conformado com a negligência da memória de todos nós. E alí mesmo em frente à sua loja, tem a casa de Tsungu Thsoni, e os jovens nem sequer conhecem esse nome, nunca ouviram falar de Tsungu Thsoni, nem de Devú, e Devú faz parte da nossa história, mesmo que ele não reivindique nada.

 

E assim a nossa cidade vai-se diluindo na perca de elementos do passado, que serão importantes para escrever sobre os acontecimentos da cidade. Então os nossos livros, sem as páginas como Devú, podem não estar completos. Ou seja, o arco-íris só é arco-iris com todas as cores. 

terça-feira, 19 setembro 2023 19:45

Matangalane Boby: como um felino exausto

AlexandreChauqueNova 1

No último dia que vi Matangalane Boby, personagem de proveniência cabo-verdiana, segundo se dizia por aqui, senti algo que me levou a pensar na iminência do fim de um homem. Parecia um leão exausto pela velhice, incapaz das proezas do tempo em que vibrava na cidade de Inhambane como um verdadeiro felino sem medo de nada, pronto a dormir ao relento nas noites à mercê do frio e dos mosquitos. Poucos podem se gabar de alguma vez o terem ouvido vocalizar seja o que for, e naquelas condições, no fim da jornada, suportando o corpo sobre o braço direito e cabeça pendente, deitado no passeio do lado de trás do mercado central, era mais improvável ainda que o ouvíssemos falar.

 

Matangalane parece um defunto que entretanto não pode ser sepultado porque os olhos ainda são vitais, brilham como nas noites de caçadas em que os animais ficam paralizados no mato perante o foco das gambiarras. Mais do que isso, ele parece sensurar com o silêncio aos que por ali passam precrutando-o de soslaio. A sua altivez mantem-se, mesmo assim, como se ainda pudesse arrastar-se por uma cidade que jamais lhe deu valor, porém Matangalane está no fim, não pode fazer nada a não ser esperar pelo último suspiro.

 

Lembro-me perfeitamente do último dia em que vi uma figura que não será propriamente de um demente, ele estava noutras órbitas. Até porque chegou a engravidar uma mulher que vivia também na rua, e as autoridades da saúde tiveram que interromper a gravidez para prevenir algo imprevisível. Então impediram ao Matangalane o direito de ser pai, o sangue dele pode ter desaparecido para sempre.

 

Mas é o último dia que me vai ficar profundamente na parede da memória. Uma força puxou-me àquele lugar sem saber que seria para me despedir de alguém com quem nunca falara antes, jamais ouvira sua voz. Na verdade durante o escasso tempo que deu para nos olharmos olhos nos olhos, senti uma convulção no espírito, apesar disso tornei-me incapaz de arvorar palavra, dizer algo. Parecia um leão velho. Derrotado pelo tempo.

 

Matangalane Boby ressurge-me na memória em novos tempos de uma cidade completamente descaracterizada, cada vez com menos pessoas de proa, Matangalane esteve sempre na proa sem que se importasse com o lugar que ocupava. Foi sepultado sem flores no túmulo, sem canções da bíblia como se não fosse filho do Altíssimo. Mas  estou aqui hoje para lembrar um homem cuja dignidade foi vituperada pelos humanos. Se calhar serão essas as palavras que lhe quis dizer naquele último encontro e não consegui. Por incompetência.

sexta-feira, 08 setembro 2023 06:13

Este comboio corre perigo

A minha espera pelo comboio está-se tornando longa demais. Cada som que oiço à grande distância parece dessa máquima colossal de aço que arrasta carruagens intermináveis, de passageiros e carga, mas esses mesmos sons que me chegam, são tecidos pela minha imaginação, não são reais. Estou aqui desde que o dia começou a perder o brilho, faz frio e a camisola grossa que visto, mesmo assim, não me dá o conforto necessário para que os ossos não tremeliquem. Isto é um castigo.  

 

Sou o único passageiro neste apeadeiro sem sentido, e já não acredito nos anjos. Houve tempos em que a minha alma tinha asas, então eu também era um anjo, agora não. Vivo com medo dos demónios, esses que se viraram contra mim tirando-me as raquetes das mãos. Aliás, começaram pelo coração, arrancaran-no por inteiro, é por isso que estou esvaindo em sangue e sinto que desta forma, só posso terminar lá em baixo para alimentar a gargalhada dos sabujos.

 

Já me avisaram que o comboio vem cheio, não há lugar para mais nenhum passageiro. Os vagões também, estão abarrotados de carga. Isso significa que não tenho qualquer possibilidade de embarcar, contrariando os meus planos de me disfarçar em mercadoria, pois o que eu quero é sair daqui, quero fugir deste lugar onde o ranger de dentes se intrensifica e, sendo assim, não vou escapar às dentaduras.

 

Não tenho nada na sacola a não ser “As mãos dos pretos”, livro de histórias profundas escritas por vários escritores moçambicanos, compiladas por Nelson Saúte e que não consigo ler por ataque de ansiedade, e algumas roupas velhas que não servirão para nada. É isso que me faz acreditar que ainda estou vivo, e também as lembranças dos tempos de juventude quando tudo florescia à minha volta. O resto perdeu sentido. É como estar no palco a cantar músicas para uma plateia de fantasmas, ou ler um poema antigo para os ratos que esperam nos sarcófagos  para me roer todo.

 

É isso: estou na dolorosa espera pelo comboio cujo apito parece ouvir-se ao longe, mas isso é mentira, é uma invenção dos meus pensamentos que vão sossobrando perante os carrascos determinados a espetar-me todas as lanças em brasa, até que do meu corpo não saia mais sangue para humedecer a terra seca.

 

O que me assusta ainda  mais nesta espera solitária, é o borbulhar de vozes raivosas e frustradas que se ouvem noutros apeadeiros que antecedem ao meu. Essas pessoas também estão aguardando a locomotiva que tarda, e ameaçam incendiá-la se não houver lugar para elas. É isso que aumenta o medo enraizado no meu desespero. Afinall são irmãos de sangue dos que estão acomodados nas carruagens de luxo e meus irmãos também, querem entrar por direito e desfrutar das guloseimas que são servidas aos que lá estão. Os quais não querem mais ninguém.

 

Então, desta forma não posso imaginar o que vai acontecer, por isso continuarei na minha longa espera, até que tudo se esclareça, ou até que eu morra. De fome e frio.

segunda-feira, 28 agosto 2023 06:39

A decadência dos bitongas

AlexandreChauqueNova

Toda a plataforma dos bitongas está a diluir-se, não me canso de repetir isso e não tenho muitas dúvidas de que a água mole seja incapaz de furar a pedra. Dói, mas essa é a verdade subjacente no estendal da cidade de Inhambane, onde até o marisco já não nos chega à mesa em abundância como antigamente, quando era o próprio Deus a báscula das bençãos, agora diminuídas provavelmente por ira do Provedor. Até os barcos à vela, elementos essenciais no brilho da baía, já não sulcam as águas do mar com velas cheias de vento, dando regalo à vista e ao espírito. No seu lugar vieram embarcações com motor fora de bordo, roncando contra o silêncio.

 

Já ninguém nos aborda em bitonga por aqui, as vendedeiras do mercado estão alienadas até nos gestos. O pior é que as memórias estão sendo enterradas em valas abertas por pás escavadoras do desinteresse pela preservação, mas isso é incultura. Ninguém busca o alimento do passado, tão importante e necessário, para que a juventude conheça o valor do solo que pisa, não há sede nesta canícula. Não se fala, nas ruas e nos pátios das escolas e nos “chapas” onde somos apinhados como mercadoria, de figuras patrimoniais que se tornaram fundamentos da urbe, como se não tivessemos história.

 

Os bitongas são dominados pelos vathwa e chopis, e a medida que o tempo passa, a situação vai-se tornando irreversível como o vento que devasta e volta a devastar para não sobrar nada. Você pergunta aos alunos da escola se já ouviram falar de zorre ou guibavane, eles meneam a cabeça para dizer que não. Os professores nunca falaram dessas danças nas aulas, eles próprios não as conhecem. Mas a timbila, sim, todos sabem dessa expressão cultural, mas a timbila não é dos bitongas, é dos chopes.

 

Os bitongas sempre foram apreciadores de dzithsota (milho pilado e moído sem atingir a farinação), para acompanhar o caril de coco, mas hoje não se fala de dzithsota. Havia ainda um peixe chamado makhulu, que era arrastado juntamente com o camarão por redes artesanais, e esse peixe já não sai do mar para nos dar a delícia que nos fazia lamber os dedos e os beiços. Quer dizer, esse é um dos sinais de que a nossa essência está em vaporização.

 

A última geração dos bitongas pode ser daqueles  que nasceram até finais da década de cinquenta e princípios de sessenta. Porém, eles também perderam a clareza da luz, apesar de que ainda têm o suporte não só da língua, como dos hábitos e costumes que mesmo assim, estão se sublimando. Depois deles é o que se pode constatar a partir do seio familiar, não falam bitonga com os seus filhos. Eles próprios, os madalas, já não comunicam entre si na sua língua materna, estão absolutamente alienados.

 

Apesar de todo este desmoronamento cultural, há quem ainda acredite no resgate, introduzindo as nossas línguas nas escolas. Mas há ainda outros que não acreditam muito que isso seja viável. Pensam que será um retrocesso, chegamos a um estágio em que se tornará tarde demais tentar empreender a luta que já perdemos.

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