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segunda-feira, 18 abril 2022 08:56

Os "ratos da town"

FotoOmarnova

Não sei donde vinham. Mas estavam em tudo que era canto da town. Nas residências locais, as famílias tinham que pôr cerca de três pares de peúgas para dormir, luvas de boxe e goro na cabeça para não ser vacinado! Não era em vão. É que os animais eram muito agressivos – roíam tudo que lhes viesse pela frente. As casas locais, feitas de material de baixo custo e maticadas, estavam infestadas de buracos. A situação era sinistra e tenebrosa. A town que "anima", Quelimane, era um universo dos roedores, até parecia que os humanos é que haviam invadido o espaço deles, mas não, existiam razões administrativas e de gestão municipal espinhosas!

 

Consultores foram contratados. Munícipes influentes auscultados. A assembleia municipal reuniu-se e chegou-se à conclusão de que a melhor solução era que cada munícipe caçasse quantos ratos pudesse e vendesse à edilidade. A informação correu à velocidade da luz. Nos comícios, o edil anunciava a medida como a única forma de resolver o caótico problema – tinha que se exterminar os ratos que não deixavam as pessoas em paz! 

 

Em certos bairros, os ratos chegavam a mergulhar em panelas de feijoada preparada para um almoço familiar, em pleno domingo – era um autêntico caos!

 

Com a medida em curso. Determinou-se que cada rato custaria 1 Metical. Nos bairros foram criadas equipas de extermínio dos ratos. A ideia era encher sacos para poder ter mais dinheiro. Nas noites, a caçada era agressiva. Nos mercados, o negócio do ratex explodiu e a ratoeira (armadilha) vendia-se por tudo que era canto da cidade. Confesso que foi um dos momentos da história da cidade de Quelimane em que as pessoas se uniram para combater um inimigo comum – a praga dos roedores!

 

Ninguém sabia para onde o município levava os ratos. Alguns diziam que eram queimados! Os políticos justificavam o atraso ou a não execução dos projectos de desenvolvimento da autarquia com aquela situação. Nada se fazia e culpava-se a situação de higiene e saneamento de meio deficitário que a urbe enfrentava. Na altura, os relatórios das autoridades municipais eram tão extensos e com único tópico, a campanha de combate aos ratos! 

 

A guerra contra os roedores levou seu tempo, deixando os citadinos traumatizados com o que viviam e os desempregados, por sua vez, rezavam para que aquilo nunca acabasse, uma vez que, através do dinheiro da venda, conseguiam alimentar o seu apetite pelo alambique e a cabanga de pólvora da vendendeira do mercado FAE e na famosa "Ilha" no bairro Brandão. 

 

- Foi um momento calamitoso na cidade de Quelimane. Uma situação que viria a criar problemas psicológicos a alguns responsáveis governamentais, tendo inclusive abandonado o poder e deixado como recordação para os munícipes "o sinistro negócio de compra de ratos pela edilidade". Na banda, as velhas diziam que os ratos eram de alguém e, como retaliação pelo seu extermínio, mandaram uma matshinga (feitiço) para o edil, deixando-o fora de si e, por consequência, abandonando o posto!   

 

– Naquele momento, o nosso activismo ambiental não tinha figuras carismáticas e abnegadas como o Professor Carlos Serra Jr., a incansável ambientalista Regina Charumar ou mesmo o persistente Vasco Achá, para proporem outras saídas sustentáveis para aquela situação cinematográfica! 

 

- O que os munícipes e os poucos entendidos na matéria da urbe sabiam fazer era envenenar a comida com ratex para conseguir encher o saco e ir vender. Naquele tempo, alguns chegavam a conseguir levar ao Conselho Municipal dez sacos de 100 quilos de ratos mortos para vender, carregados numa bicicleta de marca "Hero". Estava-se diante de novos empreendedores e na town ninguém ficava sem um tostão no bolso, uma vez que todas as casas estavam infestadas por ratos!

 

Entretanto, nunca se chegou a explicar a origem do dinheiro com que se pagava aos vendedores dos roedores, pelo menos a nível público. Ninguém chegou a questionar se havia sido criado um fundo para tal ou se uma organização filantrópica, daquelas que tudo apoiam, havia doado alguma verba para o efeito. Nem mesmo se o dinheiro era retirado do bolso do edil. O facto é que havia sempre moedas para pagar e, com o tempo, surgiram sucursais, porque o cheiro nauseabundo dos roedores no quintal do edifício da autarquia já irritava os chefes que vinham gravatados para atender vendedores de ratos!

 

O tempo passou e parece que se venceu o problema com entrada de novos actores políticos na urbe! Campanhas de limpeza foram organizadas. Drenagens construídas. Estradas esquecidas pela então administração municipal e central foram reabilitadas e a consciência ambiental dos munícipes cresceu! Isso fez com que os donos da town acreditassem que o problema era mesmo sinistro e com contornos espirituais, coisas da martirizada Zambézia, no estilo da "cidade subterrânea", perfeitamente escrita, descrita e reflectida pelo psicólogo e escritor Élio Martins Mudender!

 

Diante deste episódio nebuloso da "cidade que anima", espero que não deixem que os novos comandantes do reino dos roedores venham retaliar! Aquela "guerra civil" foi muito violenta e ainda paira na mente dos que supostamente perdoaram, mas nunca chegaram a esquecer o passado. Não quero imaginar a cidade de Quelimane infestada de roedores – protejam a town deles!

quinta-feira, 14 abril 2022 08:01

Não sujem o nome do "boss" desse jeito!

FotoOmarnova

Virou moda nos últimos tempos na Pérola do Índico que qualquer "Django" que pratique um determinado crime aponte o boss como sendo alguém que sabe ou o terá encomendado o mesmo. A situação está a ganhar contornos preocupantes, uma vez que o nome do boss devia ser imaculado. Devia ser como um pano branco que uma simples nodoa acaba alterando a beleza daquele tecido!

 

Aliado à situação, está o silêncio dos homens do boss que deixam que as narrativas do género ganhem razão. Se os tais homens citassem o nome do boss para coisas louváveis, mas não, citam-no em assuntos cabeludos. Num país com a CSI (Crime Sob Investigação) ou FBI já teriam pegado no cangote do boss e levado para aquelas sessões de psicologia criminal e social para de facto apurarem se o homem tem ou não participação nestas todas macacadas que lhe têm apontado!

 

O nome do homem aparece em tudo que é problema. Até em brigas de crianças no bairro – o boss é que disse para fazer isso! – Quando o meu vizinho Emakwa dá sova na mulher em plena madrugada, também cita o nome do boss na discussão – será que este boss é tão mau assim? Ele mexe em tudo deste jeito?

 

- Falam que o boss tem alguns amigos traficantes com passaportes diplomáticos e que sempre que chegam hospedam-se nas suas fazendas – sabe, eu tento não acreditar nestas historietas, mas já é demais. E como diz um adágio popular: "não há fumo, sem fogo!" Mas mesmo assim, questiono-me, porque fazem isso com ele? O que o boss tem feito de mau para vocês?

 

- O nome do boss é referenciado nos grandes e pequenos negócios. Nos bons e maus investimentos – até há quem cite o boss em conspirações de abate de indivíduos cadastrados e que vivem na linha do tiro à espera de um culpado – não façam isso com o boss, pensem que ele tem família e concubinas que o vêem como um representante divino na terra – deixem o boss respirar aquele ar puro de Mossuril e do Gúruè!

 

Se é ele, como dizem no Sistema Central Decisório (SCD) porque não procuram um pseudónimo, pelo menos para nos fintarem e não ficaremos a saber, porque há quem ama o boss – há quem acredita secamente e entraria no fogo para defender o boss -   Não sujem o nome do "boss" desse jeito!

quarta-feira, 13 abril 2022 10:45

Minhas mãos perderam o tacto

É muito provável que tenha chegado ao fim da estrada, porque se assim não fosse, sentiria pelo entusiasmo que me tem faltado nos últimos tempos, ao ponto de sair de casa com a camisa amarrotada. Já abdiquei das minhas próprias mãos, que deixaram de me convocar ao encontro do corpo da minha mulher que também ficou insensível de mim, se me sentisse havia de perceber pelo olhar ora com gotas ardentes de amor. Tenho a sensação de ter despejado toda a areia da minha báscula, e nem a pouca poeira que resta consegue levantar ao sopro do vento que igualmente perdeu o impulso.

 

Está a acontecer algo desesperado no meu ecossistema emocional, a minha mulher já não me acorda com as maõs leves nas manhãs para dizer bom dia. Então todo esse choque quer dizer que estou na mó de baixo, meu coração está frio como o mármore.  Nem que a vontade de articular  palavras ao acaso me invada, sinto que sou incapaz e o melhor que devo fazer é manter-me no mutismo, sob risco de sair desta penumbra que ainda me mantém com alguma luz, e cair definitivamente para o lado do escuro.

 

Mas as nuvens do meu espaço estão cada vez mais densas, nunca senti tanto medo. O pior é que cada vez que vou à cama, a minha solidão fica mais pesada. A mulher que está ao meu lado vergasta-me com o silêncio das costas flácidas, eu também tenho as mãos flácidas, incapazes de despertar o pólen. Tremo no centro de mim ao pensar que nesta casa onde tudo gravitava a à minha volta e da minha mulher, quem vibra agora são as vespas espalhadas em todos os cantos, incluindo nas minhas mãos que perderam o tacto.

 

Fiz anos ontem e a minha mulher nem sequer se lembrou de me oferecer uma flor, como sempre. Eu disse-lhe assim, amor, hoje é dia do meu aniversário, ela nem sequer olhou para mim. Continuou sentada na varanda olhando para o vácuo, com a mão tremendo por sobre o braço da cadeira de madeira que  trouxe de São Tomé. Ignorou-me absolutamente, e, naquelas condições, senti-me desdenhado. Voltei à sala onde nunca gostei de estar por me sentir enclausurado.

 

Seja como for, ainda acredito no indulto, como os condenados que ficam longos anos no corredor da morte à espera da execução, eu também estou à espera da execução, com essa esperança de que um dia poderá abrir-se uma nova luz e ser chamado outra vez para a liberdade. Porém, enquanto esse dia não chega, continuarei aqui a ser incentivado ao castigo,  pelas esporas do tempo. Sinto com dor o tilintar dos copos e das grandes canecas de cerveja nos bares que frequetava,  e não posso sair daqui, as minhas pernas vacilam.

 

Estou à caminho dos noventa e pensava que o meu beco tivesse saída. Sim, tem saída! Para o aterro onde estou prestes a ir sem nada nas mãos, a não ser as memórias. As lembranças dos amigos. As saudades da liberdade. As músicas. E os agradecimentos todos à minha mulher, que deixou de falar comigo como se não me conhecesse. Recusa que as minhas mãos a toquem para despertar as melodias como noutros tempos em que éramos dois passarinhos desejosos de amor. Então, é essa a azagaia que levarei espetada no peito, por alguém que me acolheu durante toda a vida no coração, e que agora não me sente mais.

quarta-feira, 13 abril 2022 09:30

A Josina que as suas irmãs fingem conhecer

“Quem exagera o argumento prejudica a causa.” (Friedrich Hegel, 1770-1831, Filósofo Alemão, considerado um dos mais influentes da História)

 

QUATRO ANOS MAIS TARDE…

 

Era 07 de Abril de 2021, uma aclarada e movimentada Quarta-feira que fluía como as moléculas nos vasos sanguíneos de gente activa. Nas bermas das estradas da Cidade das Acácias, viam-se milhares de mulheres, as irmãs da Josina. Grande parte delas fingia conhecê-la e reclamava por coloridas peças de capulana para celebrar aquela memorável data!

 

Olhando para as filas de vozes femininas espalhadas na baixa da Cidade, as quais procuravam por peças de capulana para celebrar o 07 de Abril, alusivo à Josina Machel, o Jota, Jornalista-Estagiário no Mídia Lab (ML), entre 2017 e 2018, que se fazia acompanhar pelos seus dois amigos e uma amiga, ambos de qualidade, membros honorários do Sistema Nervoso Central[1], que eles fundaram enquanto estagiários no ML, questionou:

 

― Afinal de contas, o que realmente as irmãs da Josina, pintadas de peças de capulana, celebram no dia 07 de Abril?

 

Imediatamente, sem exercer muito esforço hermenêutico, o Omardine, jovem arrojado, soltou a sua voz e respondeu:

 

― Jota, a Josina Machel, que hoje elas celebram, iniciou, aos 7 anos, os seus estudos, a 1.ª Classe, em Mocímboa da Praia, local onde se ouviram os primeiros tiros dos insurgentes, a 05 de Outubro de 2017. Lá, naquele Cabo do Norte da nossa Pérola queimada, hoje, crianças, jovens, mulheres e homens clamam por socorro, mesmo assim, as irmãs da Josina estão aqui, todas emocionadas, à procura de peças de capulana para celebrar.

 

Comovido com a colocação do Omardine, na sequência, o Cornélio, que também era um Jornalista-Estagiário altamente informado e com qualidades firmes e autenticadas, sustentou:

 

― A Josina, que hoje elas celebram, juntou-se ao Núcleo dos Estudantes Africanos Secundários de Moçambique (NESAM)[2], onde desenvolveu a sua consciência político-cultural para lutar por Moçambique e libertar o País do jugo colonial português. Foi essa entrega que a fez abandonar os prazeres de vestir peças de capulana coloridas e rumar para as terras de Julius Nyerere, onde se treinou para defender a Pátria Amada. E hoje, lá, onde a Josina teve a sua primeira educação formal, sofre ataques violentos de estranhos e, por isso, muitas irmãs e suas filhas têm sido atacadas e abertamente vitimadas. Porém, estas irmãs, em vez de juntarem as suas vozes e lutarem para libertar as suas irmãs queimadas no Cabo do Norte sangrento, batalham por meras capulanas. Que cenário triste!

 

― Olha, aos 18 anos, a Josina abandou o solo pátrio para Tanzânia e Zâmbia. Pelo caminho, foi presa, e, em seguida, malandramente deportada; ainda jovem, ela era espionada por Polícias Coloniais, por causa das suas aventuras político-culturais movidas pela então Frelimo de todos contra a opressão portuguesa. ― Afirmou a Cátia Mangue, outra Jornalista-Estagiária brilhante, que se mostrava visivelmente revoltada. Ela sentia, na epiderme da sua iluminada pele, a dor das suas irmãs de Cabo Delgado, violenta e barbaramente maltratadas.

 

Minutos depois, aproximou-se o Sérgio Nhambi, outro Jornalista-Estagiário, excelente comunicador, que se juntou à conversa. De imediato, como que tivesse recebido, profeticamente, uma revelação divina, como alguém que conhecia os pormenores daquela conversação juvenil jornalisticamente bem nutrida, interveio:

 

― Presumo que estejam a falar da mãe das Mulheres Moçambicanas, a nossa Josina Machel. Dava para entender o baloiçar dos vossos lábios. Os ventos segredaram-me a vossa efervescente interacção. É isso, né? ― Interrogou o Nhambi.

 

O Jota, logo a seguir, correspondeu à solicitação do seu amigo de qualidade e disse:

 

― É verdade! Você sabia que Josina Machel, aos 19 anos, abandonou Moçambique e rumou para Suazilândia, onde foi acantonada num centro de refugiados? E pouco tempo depois, com a ajuda de um Pastor Presbiteriano, ela refugiou-se na África do Sul, e depois em Botswana, onde foi considerada visitante indesejada e, pelo governo Britânico, deportada. Sabia, Nhambi?

 

― Como não, meu amigo de qualidade. Graças a Eduardo Mondlane, nosso arquitecto-mor, construtor da Nação e visionário da nossa libertação do jugo colonial português, que convenceu os Britânicos, Josina foi enviada à Zâmbia e, seguidamente, para Tanzânia, o seu centro de formação político-militar, onde se tornou Mulher Moçambicana, mesmo fora de Moçambique… Tudo tendo em vista a nossa total e completa libertação, para ela, na altura, seu escravizado povo. ― Acrescentou o Nhambi, cheio de confiança.

 

― Aos 20 anos, Josina Machel assistiu a Janet Mondlane, esposa de Eduardo Mondlane, no Instituto de Moçambique, para treinar os seus irmãos e as suas irmãs, a fim de lutar e alcançar a Independência Nacional. ― Referiu o Omardine.

 

― Parece que estamos todos em sintonia aqui. Que sincronia! ― Conferenciou a Cátia que, em seguida, acrescentou:

 

― Aos 21 anos, Josina Machel abandonou uma Bolsa de Estudos para Suíça e livremente se juntou ao Destacamento Feminino, onde teve formação político-militar, com vista a melhorar o seu enquadramento na Luta de Libertação Nacional.

 

Em tempos de guerra, Josina Machel cuidava dos feridos, órfãos e de crianças abandonados; ela fazia de tudo para lhes fornecer apoio de natureza médica, moral, educacional e social. As suas mãos estavam treinadas não apenas para pegar na arma e lutar pela libertação do País, mas, também, para cuidar dos filhos das suas irmãs e dos mais desfavorecidos, hoje esquecidos.

 

― Aos 23 anos, a Josina advogava pela inclusão de raparigas e mulheres em todos os aspectos da Luta de Libertação. Nessa altura, ela tornou-se Representante das Relações Internacionais do Destacamento Feminino na então Frelimo de todos. ― Afirmou o Cornélio ― E, virando os seus olhos para as largas e compridas filas de mulheres que lutavam por coloridas peças de capulana, questionou aos seus companheiros:

 

― Afinal, onde aquelas irmãs buscaram tamanha inspiração para celebrar a Josina com peças de capulana?

 

Em seguida, fez-se um silêncio ensurdecedor. Naquele momento, os jovens Jornalistas fizeram viajar as suas mentes em profundas meditações. Pensavam Moçambique! Segundos depois, a conversa continuou. E o Jota, de súbito, adicionou:

 

― Com 24 anos, Josina já viajava para eventos internacionais, onde partilhava a sua experiência e de outras Jovens e Mulheres Moçambicanas e não só, advogando pela igualdade de participação em todos os aspectos de desenvolvimento ao nível local, regional e internacional. Foi com ela que o sonho das Mulheres Moçambicanas teve raízes profundas e sólidas, que, gradualmente, foram brotando até aos nossos dias. Será que aquelas irmãs da Josina sabem disso ou apenas querem celebrá-la, confortavelmente inconscientes?

 

Hummm… Será?! Ainda aos 24 anos, a Josina já liderava o Departamento de Assuntos Sociais, na então Frelimo de todos e trabalhava, extensivamente, para prover cuidados de saúde e educação às crianças no Norte de Moçambique e, naquela altura, instava para a necessidade de formação de raparigas e mulheres. Vê-se, aqui, que ela tinha os olhos fitos no futuro não somente do País como, também, das suas irmãs, muitas das quais viriam a esquecer-se dos seus feitos. Mesmo assim, entregar-se-iam em comemorações nos futuros setes de Abril. ― Asseverou, com um ar carregado de profunda indignação, o valente Omardine.

 

Em meio à guerra, Josina Machel lutou por Moçambique. Após a morte de Eduardo Mondlane, ela juntou-se à Janet Mondlane para a consolar por aquele ataque que, igualmente, era um golpe para Moçambique e todos os Moçambicanos. Aliás, aquele golpe ao patrono da Nação, até hoje, permanece uma incógnita reservada aos deuses da Luta de Libertação Nacional.

 

Naquele instante, algumas vozes, que passavam próximas à Avenida que carregava o nome daquela heroína quase esquecida, Av. Josina Machel, onde começava a fila das mulheres que batalhavam por peças de capulana, interromperam a conversa daqueles jovens Jornalistas. Um jovem ambulante, com o corpo abatido pelas correrias da vida, aproximando-se à Cátia, única mulher naquela conversa juvenil, de viva voz, tentando granjear mais clientes, perguntou:

 

― Moça, não queres esta capulana para celebrar o dia de hoje, 07 de Abril? Viste como ela é bonita e combina contigo? Posso dar-te um bom desconto, se quiseres. Experimenta só esta capulana aqui. Eu juro que vais gostar. Experimenta lá!

 

A Cátia, boquiaberta, olhando para os seus colegas, soltou um sorriso radiante, e respondeu ao jovem ambulante, que atentamente recolhia a atenção de todas as mulheres que desfilavam nos corredores daquele pátio da baixa da Cidade:

 

― Desculpa lá, mano. Eu já estou a celebrar, e muito bem, com os meus colegas. ― E, olhando para os seus amigos, fazendo desabraçar as gêmeas fileiras de dentes alimpados que compõem a sua cavidade bucal, soltando um par de sorriso, ruçou-se.

 

No entanto, o jovem ambulante tentou convencer aquela jovem mulher para adquirir uma peça de roupa colorida que ele e os seus amigos traziam. Todavia, ele não foi capaz de persuadir aquela Jornalista de firmes qualidades.

 

Em seguida, esquecendo-se daquela interrupção, o Jota, ressuscitando a conversa sobre Josina, interveio e disse:

 

― Eu penso que aqueles jovens não sabem que, aos 25 anos, Josina Machel foi diagnosticada cancro do fígado. Mesmo assim, ela continuou a lutar por Moçambique exercendo, incansavelmente, as suas funções na então Frelimo de todos. Ainda que à beira da morte, a sua garra pela libertação do seu povo falava mais alto, por isso tudo fazia para o ver libertado do jugo colonial português.

 

― Nessa época, Josina Machel deixou o seu filho, o Samito – que, já adulto, se viu forçado a abandonar a corrida às Eleições Autárquicas de 2019, como Cabeça-de-Lista de um partido fundado com urgência para desafiar a hegemonia da antiga Frelimo de todos, seu partido de nascimento, e colocá-lo na Presidência do Município da Cidade de Maputo – quando tinha apenas 1 ano de idade, em Tanzânia, e viajou à Niassa para tratar de assuntos sociais e ajudar raparigas e mulheres naquele período de guerra, que matava o sonho de muitos homens e mulheres Moçambicanos. ― Revelou, abertamente, o Omardine.

 

― Ainda aos 25 anos, Josina Machel viajou a Cabo Delgado, onde começou a sua trajectória educacional, para verificar o progresso de programas sociais naquela Província. Naquela altura, ela sofria de graves problemas de saúde, e o cansaço e a perda de peso, gradualmente, tiravam a vida desta mulher lutadora pela causa nacional moçambicana.

 

― Acrescentou o Nhambi, com uma voz cheia de saúde.

 

― Infelizmente, já com a saúde totalmente debilitada, e de regresso à Tanzânia, a Josina foi internada, e no dia 07 de Abril de 1971, deixando para trás o seu sonho de ver Moçambique liberto da opressão colonial crónica, ela morre e os seus restos mortais foram no subsolo das terras do Pan-Africanista Julius Nyerere, entornados. ― Sublinhou o Jota, meneando a cabeça para os lados, enquanto vigiava o seu redor movimentado.

 

Entretanto, as irmãs da Josina Machel, naquele dia em que conversavam, não estavam a pensar em tudo isso. Elas só e tão somente queriam celebrar, com peças de capulana!

 

― Mesmo depois da sua morte, hoje, nós lembramos o sonho de Josina: “Camaradas, já não posso mais continuar a lutar; levem a minha arma e entregam-na ao Comandante Militar para contribuir para a salvação do Povo Moçambicano.” ― Revelou a Cátia.

 

― Foi assim que, um ano após a morte de Josina, a então Frelimo de todos declarou o 07 de Abril como Dia Nacional das Mulheres e, em Março de 1973, estabeleceu-se a Organização da Mulher Moçambicana (OMM), enquanto movimento social e político inspirado nos ideais de emancipação defendidos por Josina Machel, hoje quase todos simbolicamente trocados por simples peças de capulana enroladas em corpos que, igualmente, clamam por total libertação. ― Decretou o Cornélio.

 

― Hoje, a Mocímboa da Praia, que ensinou Josina Machel a ler e escrever, está em chamas. As suas irmãs Palma, Macomia, Muidumbe, Mueda, também, choram lágrimas amargas de guerra e assalto à soberania nacional. Mesmo assim, as irmãs da Josina fingem conhecê-la e reclamam por peças de capulana para a celebrar. Estranho, né! ― Acrescentou o Jota.

 

Os grandes problemas crónicos da pobreza generalizada, as famosas Dívidas Ocultas, os ignorados conflitos armados no Cabo do Norte queimado e a crise humanitária, os casamentos prematuros – hoje uniões prematuras –, as violações dos Direitos Humanos, o abuso de menores e a violência doméstica, as grávidas de Matalane e as negociações promíscuas de Ndlavela, os assaltos aos produtos das mamanas[3] nos mercados, protagonizados por Polícias Municipais, entre tantos outros problemas que assolam a nossa extensa Pátria Amada, as irmãs da Josina Machel que fingem conhecê-la, desconhecem-nos, e, contudo, reclamam por coloridas peças de capulana para celebrar a mesma Josina Machel que se entregou pela libertação do Povo Moçambicano.

 

― Afinal, o que realmente as irmãs da Josina Machel celebram a cada dia 07 de Abril que passa? ― Questionou, preocupada, a jovem Cátia.

 

Em seguida, respondendo a uma chamada telefónica, com qualidades de urgência, a Cátia desapareceu do meio daqueles jovens Jornalistas. E, por conseguinte, os quatro jovens separaram-se e continuaram com as suas agendas editoriais e de trabalho da semana.

 

Autor: Janato I. Janato

 

Texto extraído do livro “Contratado para ser Presidente do Município” (2022), págs. 53-61.

 

[1] Sistema Nervoso Central (SNC) é o nome atribuído pelo Jota ao grupo composto por 7 Jornalistas-Estagiários que faziam parte da Edição do Jornal semanal produzido pelos Estagiários. Os membros do SNC eram responsáveis por filmar e editar as peças jornalísticas, montar o jornal principal, rever e assistir ao jornal, anotar os possíveis erros e corrigi-los. Todas as Sextas-feiras, após as verificações, o líder do SNC deveria levar o jornal, num flash ou HD, e submetê-lo à STV para ser veiculado às 11h30 do dia seguinte. Às vezes, os membros deste grupo saiam da redacção às 23h ou mesmo à meia-noite.

[2] O Núcleo dos Estudantes Secundários de Moçambique (NESAM) foi uma associação estudantil moçambicana nacionalista, estabelecido nos princípios de 1949, na então Lourenço Marques, actual Cidade de Maputo, com cerca de 20 membros, que funcionava no Centro Associativo dos Negros da Colónia de Moçambique (CANCM). O NESAM tinha como objectivo fomentar a unidade e camaradagem entre os jovens africanos, através do desenvolvimento da sua capacidade intelectual, espiritual e física, para melhor servir a sociedade. Nos primeiros anos da sua existência, as autoridades coloniais portuguesas consideravam-no uma organização nacionalista embrionária, pelo que os seus membros eram considerados inimigos ao regime português, sendo, por isso, perseguidos pelas tropas coloniais.

[3] Mães – Forma popular de dizer.

quarta-feira, 13 abril 2022 08:19

Abril, Mês da Desintoxicação das Mentes

7 de Abril é o dia da mulher moçambicana. Por isso, escolhi defender a ideia segundo a qual, o mês Abril simboliza, na nossa historicidade moçambicana, o início da luta contra mentes ensombradas pelo machismo (ou masculinidade) e feminismo (ou feminidade) tóxicos. Mas, por razões óbvias e em respeito à data, vou limitar-me ao que este mês representa a luta contra uma masculinidade tóxica.

 

Nascido numa família onde maioritariamente são mulheres, aprendi logo cedo neste meio cultural e tradicional, que nós, irmãos, e homens no geral, temos como missão proteger e cuidar as nossas irmãs, mães, tias e de qualquer mulher. Não é por acaso que, na perspectiva ubuntu, todas as mulheres mais velhas, e em alguns casos as mais novas da família e aldeia, sobrinhas ou netas como exemplos, são chamadas “mãe”. Digo “são” com a consciência de que alguns intelectuais distraídos do meu tempo preferem usar o passado “eram” quando falam do seu meio cultural de origem, esquecendo que passado não é o mesmo que ultrapassado.

 

O que depois, pela sociologia, veio a ser chamado “bastidores”, e, pela ciência política “espaço subalterno” ocupado pelas mulheres nas culturas africanas, era para mim apenas valores tradicionais: respeito e cuidado pelo “sexo fraco”. Esta era uma masculinidade básica, por outra culturalmente originária e não toxicada. Trata-se da masculinidade segundo a qual qualquer “mãe” da aldeia tem por missão educar a todos os filhos. Não sei quem terá dito que uma aldeia africana é composta por dois tipos de pessoas: mulheres e seus filhos e filhas, incluindo em ambos grupos os “ainda-vivos” e “morto-vivos” se falarmos com filósofo queniano John Mbiti.

 

Mas, à medida que eu crescia, ia tropeçando perante um outro tipo de masculinidade. Já no contexto mais amplo da sociedade colonial capitalista, a masculinidade já não aparece sob a mesma forma original e tradicional que aprendi, senão forma “tóxica” – como classifica a filósofa brasileira Djamila Ribeiro. Isto é, segundo esta filósofa, ligada ao músculo, à violência e ao machismo. Enquanto culturalmente original a masculinidade se apresenta em forma de uma educação para assumir o papel social de responsabilidade, protecção e segurança da mulher e família, como sustentava o sage Viegas, a masculinidade tóxica, por seu lado, tomada de uma narrativa da cultura patriarcal-colonial capitalista, empurrava-nos, a assumir comportamentos socialmente sexistas, discriminatórios baseados no género e mesmo violentos. Estes resultavam nocivas para o próprio homem e com consequências graves para a sociedade moçambicana, por esta, durante muito tempo, privar-se do uso da força, inteligência e estética da “capulana”, como afirma a intelectual moçambicana Dulce Passades.

 

Por isso, o 7 de Abril representa o dia em que as mulheres moçambicanas decidiram dizer basta e lutar pela desintoxicação das mentes machistas dos tempos da luta armada pela libertação e, mais tarde, nas estruturas culturais, políticas, sociais e económicas da sociedade.

 

Quais são, então, as armas que as mulheres, representadas e simbolizadas pelo então Destacamento Feminino da Frente de Libertação de Moçambique, teriam usado na sua longa marcha pela desintoxicação das mentes machistas, escondidas sob capa de masculinidade? Elas foram três: a força física, a inteligência (adicionalmente a emocional) e a estética simbolizada na capulana.

 

O primeiro grupo de mulheres que aceitou receber treinos militares para a frente de combate, incluía a Marina Pachinuapa, cuja retórica sucinta e profunda me deixa sempre admirado quando disserta sobre esta data e momentos da nossa história recente. Elas, naquelas circunstâncias, ao aceitarem o que até então se considerava tarefa dos homens, desafiaram a ideia, segundo a qual, pertenciam ao “sexo fraco”, com a qual todos nós, africanos e europeus, crescemos com sendo o “normal”. Aquelas meninas demonstraram que o dito sexo fraco possuía, na verdade, a mesma força física que o companheiro e o camarada detinha, dependendo apenas da capacidade e vontade política de educação e adequado treino.

 

Como poderíamos continuar a chamar fraca à uma mulher que carregava material e alimentos à cabeça e nas suas costas por longas distâncias? A propósito, mesmo hoje, quando se trata de deslocar-se das zonas afectadas pelas guerras no Centro e no Norte, para zonas mais seguras devido aos desastres naturais, a mulher demonstra a mesma força. Esta teoria de sexo fraco, demonstraram as mulheres do Destacamento na prática, era, de facto, uma grande aberração, uma grande narrativa enganosa. Na verdade foi criada no quadro de uma sociedade patriarcal tóxica machista – refiro-me à sociedade colonial – e projectada às tradições africanas como se fosse um comportamento natural, não desviante para o dito negro.

 

O facto de as mulheres se terem mostrado mais fortes no carregamento do n´tolo à cabeça (os homens, por natureza, usam mais os braços) serve-me de uma ponte simbólica para a segunda “arma” de luta feminina contra a masculinidade tóxica – e inteligência. Também nos foi imputada a ideia que ela é a menos inteligente que o homem. Daí que não se lhe tenham sido desde reservado papéis de liderança na família e na direcção política. Numa sociedade que se organiza de forma de luta e competição, e não por cooperação, para a conquista de lugares na estrutura do poder, interessava construir uma narrativa de uma mulher menos inteligente. No entanto, a experiência que fomos tendo enquanto sociedade política moçambicana em crescimento – e aqui refiro-me à criação da OMM, das Ligas Femininas dos partidos políticos, dos gabinetes e associações femininas operárias e camponesas, funcionárias públicas, fóruns mulheres parlamentares, grupos de pesquisas sobre o gênero, o seu desempenho na educação, no ensino superior em particular, etc. – a mulher moçambicana tem demonstrado uma dupla vantagem.

 

Pois, ela não apenas demonstra possuir uma inteligência “normal” e igual ao homem em termos de percepção, entendimento, ciência e acção, como sobretudo e adicionalmente, a inteligência emocional. E esta lhe dá vantagens competitivas em relação ao homem em lidar com situações de crises familiares, de guerra, calamidades, deslocamentos forçados, tensões sociais, crises institucionais, etc. O seu amor e carinho naturalizado coloca freios à tendência masculina, também naturalizada, do uso da força e violência brutas. Ela nos convida sempre a um “segundo olhar”, antes do uso da força. Nos recorda sempre ao “o que diria a nossa mãe”, antes de enveredarmos pelo caminho violento. Porém, não devemos naturalizar esta característica emocional feminina. Devemos perceber que ela foi conquistada a partir do seu lugar de resistência contra a masculinidade tóxica tradicional e machista das sociedades tanto europeias como africanas.

 

Durante muito tempo, o mundo e as sociedades, desviados pela masculinidade tóxica, perderam a oportunidade de se deixarem aconselhar por esta inteligência emocional. Até porque o sucesso do que chamamos hoje inteligência artificial, aproveita-se muito da inteligência emocional da mulher. Por isso, podemos dizer que, em certa medida, o mês Abril, simboliza, com a inclusão da inteligência emocional, para além da sua inteligência natural, um grau acrescentado na humanização nas várias frentes do movimento de libertação moçambicano. E também das lutas que ainda travamos para o desenvolvimento, sobretudo pela reconciliação. A não inclusão e consideração da mulher moçambicana em todas estas frentes, seria declarar uma derrota antecipada. O respeitar a “mãe” da aldeia, deve transformar-se em “ouvir” e “seguir” a voz feminina e no feminino. Este aconselhamento naturalizado feminino deve transformar-se num dos elementos fundacionais de uma ética de reconciliação com o Outro, algo muito ausente na nossa (des)convivência política, sobretudo no período das eleições, no parlamento e afins.

 

A terceira “arma” de Abril contra a masculinidade tóxica – a estética – me parece ter sido a mais forte, embora até agora com menos narrativas feministas moçambicanas. A masculinidade tóxica olha para a mulher com sexismo e na perspectiva do sexo belo. A Marina Pachinuapa, numa palestra na Universidade Pedagógica de Maputo, relativamente ao papel do Destacamento Feminino, denunciava o que alguns homens integrantes do movimento de libertação, em particular os progenitores, chamaram por “mulheres desviadas”. Consideravam estes que, indo as jovens participar nos treinos militares ao lado do homem, seriam consideradas “mulheres de má vida”, temendo, sobretudo os pais, elas depois não serem aptas depois para construir um lar “normal”.

 

Ainda recentemente, tenho reparado que, quando uma mulher é nomeada ministra, administradora, ou para um outro cargo público, o sexismo volta à carga. Os camera men, apesar do respeito que tenho por eles, não escapam, muitas vezes a este impulso sexista: mostram a “corpo” inteiro no pequeno ecrã, começando dos pés à cabeça, sugerindo motivos adicionais para a sua nomeação, que não tenham sido a sua formação, capacidade e inteligência. A tal pergunta não falta – por que “outros” motivos ela teria sido nomeada? Teremos que combater esta “mulher boleia” do homem, pela mulher-competência.

 

“Mas não se enganem” – diria o historiador Carlos Machili – “a qualidade vem da quantidade; querendo dizer com isso da inclusão”. Pois, não existe o númeno sem o número.

 

Defendo que, enquanto sociedade moçambicana, encontramo-nos num ponto de inflexão de confundirmos a beleza com o sexismo: as cores, a elegância, a graça, enfim a estética, com a qual as mulheres moçambicanas emprestam a nossa vida pública, cultural, política e institucional não se deve reduzir ao sexo belo. A mulher africana impôs, nas últimas décadas, uma estética própria. E a mulher moçambicana tem somado vitórias nesta luta contra a toxidade machista. A mulher está a conduzir, por via da estética africana simbolizada aqui pela capulana, repetindo Passades, a revolução mais inteligente de todos os tempos na história da humanidade.

 

Para o caso de Moçambique, para mim, Abril simboliza o início formal da luta contra o sexismo e pela desintoxicação da mente machista. Pois, a maior revolução foi normatização desta imagem: uma mulher com um lenço na cabeça e com uma arma nas mãos. Não uma arma para matar, mas para libertar a terra e libertar-se do machismo. O lenço e a capulana, proibidos no tempo colonial e nos primeiros momentos do fervor revolucionário, passaram a hoje a embelezar qualquer espaço público. Uma conquista e vitória feminina sobre o sexismo e masculinidade tóxica despercebida, cuja a “arma” fundamental foi a estética do belo.

 

Não tenho a certeza se aquelas meninas do Destacamento Feminino foram admitidas a levarem os lenços na cabeça para os treinos militares – perguntarei isso à “mamã” Marina Pachinuapa um dia. Todavia, tenho certeza que, quando esta veio falar aos intelectuais da universidade sobre suas lutas, trajava um lenço que condizia com o vestido de capulana. O triunfo da revolução estética feminina – a mais inteligente revolução a que já testemunhei nestes últimos tempos da nossa historicidade. E considerem-se vitoriosas, porque a  juventude moçambicana, sejam rapazes ou raparigas, continua a revolução estética africana hoje, seja por via de penteados afros, seja nos diferentes Mozambique Fashion Weeks, somente para dar alguns exemplos.

 

Naturalmente que haverá assuntos menos vitoriosos nestas narrativas de lutas feministas moçambicanas. É o caso, por exemplo, a inclusão do papel das diversas “ligas femininas” e de outras mulheres revolucionárias do “outro lado”, como o caso da Joana Simeão, por exemplo. Estas deveriam sair das notas-de-roda-pé a que se encontram destinados na nossa narrativa oficializada, para o texto principal da nossa historicidade colectiva. Mas fico, por hoje, pela celebração do símbolo da desintoxicação.

 

Viva Abril, mês em que, para nós moçambicanas moçambicanos, iniciou a revolução feminina contra a masculinidade tóxica. E ainda bem que há cada vez mais homens que embarcam nesta batalha, “ao lado”, como tratou de frisar Mariza Mendonça no dia 7 de Abril.

Por Jorge Ferrão e José P. Castiano

 

Talento é quando um atirador atinge um alvo que os outros não conseguem. Génio é quando um atirador atinge um alvo que os outros não vêem. Nyerere pode não ter sido nem um génio, nem uma pessoa extraordinária, porém, foi uma notável figura da África pós-colonial e um sábio, no sentido ancestral da sociedade africana.

 

Existe um fascínio exacerbado quando retractamos líderes africanos que marcaram o continente, na década 60. E nesse sentido, Julius Nyerere converte-se em referência obrigatória e consensual. Nyerere será, continuamente, recordado como um homem de grande sabedoria, que evitou o derramamento de sangue e confrontos violentos, no seu período político mais activo. Isto foi graças a essa sabedoria e ao seu alto sentido de humor, onde colocava a sua luta pela independência, sem guerrilha, e com uma apologia permanente sobre a paz.

 

Nyerere, conhecido pelo seu nome suaíli, Mwalimu, que significa professor, tinha uma paixão incessante por uma África unida que contrapunha, até a Nkrumah, do Gana. Ele traduziu William Shakespeare para suaíli e assumiu a sua política Ujamaa, que nem por isso foi bem-sucedida na mudança do panorama económico da Tanzânia. Ujamaa revelava a sua experiência como filho de uma grande família e toda a sua imersão no pensamento socialista da sociedade.

 

Apesar dos erros, que esta política económica representou, dois factores fundamentais marcaram o perfil de Nyerere enquanto dirigente da Tanzânia. Em primeiro lugar, o seu não alinhamento, expresso no seu bem elaborado discurso, de Outubro de 1967, na conferência da União Nacional Africana do Tanganica (TANU), onde afirmou que ele jamais seria anti-ocidental e, muito menos, anti-leste. O segundo factor esta relacionado à sua capacidade de articular as negociações; procurar privilegiar os valores africanos e assumir os valores do humanismo e do africanismo. O facto de nunca ter constituído uma fortuna pessoal e de se ter retirado do poder, em 1985, por livre vontade, fizeram dele um líder diferente cuja preocupação centrava-se apenas no seu povo.

 

No dia 13 de Abril celebraremos 100 anos de Julius Kambarage Nyerere, se ele estivesse ainda vivo. Nascido em Butiana, este homem marcou e atravessou todo um século libertário da África, com o seu pensamento e acção, e viria a morrer, ironicamente, em hospitais de Londres, a 14 de Outubro de 1999.

 

Presidente, escritor, sábio e intelectual, Nyerere usou a política para difundir os seus ideais. Poucos, que o viveram como Presidente da República da Tanzânia, sabem que ele foi um prolífico escritor do seu pensamento político[1], mas, sobretudo, um homem de acção política, de uma visão estratégica que ia para além do seu tempo. O Mwalimu dizia o que pensava e pensava, profundamente, no que dizia; também agia segundo o seu pensamento e pensava, profundamente, também nas suas posições e acções políticas.

 

No centro do seu pensamento esteve sempre a busca da Paz e não-violência, mesmo que admitisse uma fase de “violência organizada”, na luta pela liberdade. Por isso, recebeu, ainda em vida, condecorações e prémios tanto do Ocidente (Canadá, Suécia, etc.), como do Leste (Prémio Lenin da Paz, Prémio Gandhi da Paz).

 

Para Moçambique, a mais marcante acção de Nyerere foi o seu apoio à Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) (também apoiou as lutas da África do Sul, Uganda, Angola, Guiné-Bissau e Namíbia), permitindo que o seu país albergasse bases militares. E este apoio à violência armada organizada aos países vizinhos, não foi sem conflitos morais que precisavam de ser reflectidos: Como um pacifista, que sem dúvidas ele era, pôde apoiar grupos armados de libertadores, tanto mais que, na altura, eram conotados com o terrorismo.

 

Numa palestra sob o tema Stability and Change in Africa, em 1969, na Universidade de Toronto, convidado para a recepção de um doutoramento honorário, Nyerere reflecte sobre o sentido e significado da liberdade para os povos africanos, em particular na África Austral. Primeiro, preocupava-lhe a questão sobre como alcançar a liberdade (by peace or violence?) e, segundo, preocupava-lhe estabelecer uma clareza teórica sobre a dialéctica entre liberdade e desenvolvimento. De uma forma mais pronunciada, o livro Uhuru na Maendeleo (Liberdade e Desenvolvimento, 1974) é uma confrontação teórica sobre ambos dilemas.

 

Reflectindo sobre se a liberdade deveria ser alcançada por meios pacíficos ou violentos, Nyerere deixa claro, numa argumentação ímpar, a seguinte posição: primeiro, a batalha de todos os africanos é de alcançarem a Independência (que tinha o sentido na sua profunda convicção, da liberdade colectiva dos povos em decidirem por si mesmo o modelo de desenvolvimento a seguir).

 

É neste contexto que ele cria a teoria das portas para o diálogo. “Há muitas pessoas” – dizia ele – “que parecem acreditar que há uma virtude (heróica) na violência e que somente se a luta pela liberdade for conduzida em forma de uma Guerra e derrame de sangue pode conduzir à uma (verdadeira) liberdade”.

 

E acrescentava Nyerere, logo de seguida: “Eu não sou uma dessas pessoas” que pautam pela violência, porque nutria um respeito profundo pelas formas pacíficas de transferência de poderes, daí se explique o Prémio da Paz Gandhi.

 

A partir daqui, Nyerere desenvolve a sua teoria de portas abertas e entreabertas para um diálogo pacífico entre o colonizado e o colonialista, ou racista, em torno dos caminhos para a Liberdade. Se a porta para as negociações pacíficas estiver fechada, os movimentos de libertação deveriam, primeiro, no seu entender, fazer esforços para a abrir. Se, em contrapartida, a porta estiver entreaberta, ela deveria ser empurrada de tal modo que fique completamente escancarada. E acrescenta: “Em nenhum dos casos a porta deveria ser explodida à custa dos que estão do lado de dentro[2].

 

Entretanto, Nyerere continuava dizendo que se a porta, em contrapartida, estiver fechada à chave e, ainda, por cima disso, aparafusada (ou gradeada), e os porteiros se recusarem abrir a fechadura e a retirar os parafusos, então, a nossa escolha deve ser clara: ou aceitamos continuar a viver na opressão ou arrebentamos com a porta. Portugal era um desses gate keepers, que não aceitava abrir a porta para um diálogo civilizado[3]. Não restava mais nada à Tanzânia, senão apoiar aos movimentos de libertação que lutavam contra os teimosos colonialistas. Mas, esse apoio da Tanzânia era bem específico e à medida das suas possibilidades: “nenhum tanzaniano vai participar directamente nesta Guerra. Também reconhecemos que não poderemos fornecer armas aos freedom fighters. Mas, nós não podemos chamar atenção (ao Mundo) para a necessidade da libertação na África Austral e ao mesmo tempo negar a assistência (…) sabendo que as portas para as negociações estão fechadas e aparafusadas”.

 

O segundo significado de Liberdade, que Nyerere tratava de sublinhar, denominava-o por Principle of Self-determination and of National Freedom. Cada país faz ou decide fazer o que bem achar com a Liberdade alcançada. Nyerere tratava de sublinhar que, uma vez independente, a escolha do modelo de desenvolvimento é um affair dos povos que habitam os mesmos países, e não de potências ocidentais e de outros países africanos. Pois, escolher se cada país africano independente devia seguir a via socialista, comunista ou capitalista de desenvolvimento não competia aos países europeus, nem americanos, nem asiáticos. Portanto, sublinha-se, aqui, a ideia da Liberdade enquanto opção para o desenvolvimento. (Mais tarde, Amartya Sen e num plano mais teórico, viria a vincar uma tese complementar à de Nyerere, nomeadamente Development as Freedom de 1999).

 

É na sequência desta última ideia que devemos ler o sentido e o significado da luta de Nyerere, no plano internacional, por consolidar a ideia da União Africana e do não-alinhamento. Ele foi muito activo na luta pelas relações comerciais Sul-Sul, membro-fundador da OUA e organizador acérrimo das conferências internacionais dos países não-alinhados.

 

O seu colega e amigo, do movimento pan-africanista, Nkrumah, presidente do Ghana, viria, talvez, resumir melhor este pensamento de Nyerere quando dizia que “em questões de desenvolvimento não nos interessa se a direcção é o Este ou o Oeste: caminhamos para a frente[4]. O “para frente” significava, para Nkrumah, duas frentes de luta: internamente, um investimento massivo na educação e formação, na construção de infra-estruturas e de um Estado nacionalista independente; externamente, entretanto, o “para frente” significava um trabalho alinhado de todos os povos e nações africanas com os objectivos da organização continental, a OUA.

 

Para Nyerere, em contrapartida, a frente imediata, antes da OUA, era, por um lado, mais concentrada na concepção de uma agenda endógena e nacional de desenvolvimento (neste quadro ele desenvolve a teoria e a prática do Ujamaa e education for self-reliance); e, por outro, no plano regional, a consolidação da SADCC, sem com isto querermos dizer que Nyerere era menos pan-africanista do que Nkrumah.

 

Neste ano das celebrações do seu centenário, não seria despropositado celebrar este filho prominente da nossa África no seu pensamento e na sua acção. Como pensador, ele preocupava-se por fundamentar as condições e possibilidades para não se fecharem as portas do Diálogo, da Paz e da Reconciliação; todavia, quando se tratasse de conquistar e defender a Liberdade, ele admitia a “violência organizada”. E, mesmo já nos anos 70, Nyerere alertava para o perigo de Guerras posteriores às independências na região Austral da África devido à acumulação de armas na zona.

 

Se o Ocidente continuasse a fornecer armas a Portugal, África do Sul e Rodésia do Sul, na escalada que fazia, então não haveria outra chance de os Movimentos de Libertação para prosseguirem, senão também pedirem armas à China, União Soviética e outros países do Leste. Dizia Nyerere: Not even the most skilled guerilla movement can fight machine guns with bows and arrows, or dig elephant traps across surfaced roads. Tivemos que recorrer às armas do Bloco do Leste.

 

E assim foi escalando o nível de violência armada na nossa zona. E isto acontece, como diz, e não se cansou de ensinar-nos Nyerere, quando as portas para o diálogo e negociações estão não somente trancadas à chave, se não também gradeadas e aparafusadas.

 

No seu próprio país, em 1977, ele quis dar um exemplo de concórdia e de “portas abertas ao diálogo” que tanto pregava. Por isso unificou os partidos Tanganyika African National Union (TANU) e o Afro-Shirazi Party do Zanzibar para formar o Chama cha Mapinduzi (Partido da Revolução). Pensava, assim, alcançar uma maior harmonia, paz e reconciliação social na República que liderava. 

 

Um homem de paz, sabedoria e acção que foi Mwalimu a quem vale a pena celebrarmos o seu centenário (X).

 

[1]    1968: Freedom and Socialism; 1974: Freedom & Development, Uhuru na Maendeleo; 1977: Ujamaa-Essays on Socialism; 1979: Crusade for Liberation; 1978: Development is for Man, by Man, and of Man.

[2]    In neither case should the door be blown up at the expense of those inside (Cfr. Stability and Change in Africa. In: Nyerere, J. (1973): Freedom and Development/Uhuru na Maendeleo. A Selection from Writings and Speeches 1968-1973. Oxford University Press, Nairobi, London, New York. (pp108-125). Os que estão por dentro e não queriam abrir a porta são, na altura (1969), os regimes racistas da RSA, Rodésia do Sul e o regime colonialista português. Mas, a todos Nyerere chama por racialists.

[3]    No mesmo tom, mais tarde, e durante os Acordos de Lusaka e perante a proposta portuguêsa de se fazer um referendum para aferir a Independência, Samora Machel viria a radicalizar esta tese dizendo que não se pergunta a um escravo se quer ser livre ou não.

[4]   We face neither East nor West; we face Forward.