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quarta-feira, 17 julho 2019 06:38

INExplicável

Sem apelo e nem agravo, o INE disse da sua justiça e fê-lo com aberta humildade, mantendo todas as portas e janelas para que o CNE/STAE esgrima dos seus argumentos e faça jus dos "apriorismos gazenses".

 

Apriorismo!Tomo de empréstimo o jargão tornado célebre por aqui, pelos ecos dum dos debates recentemente veiculados na STV. À partida, no caso vertente, não havia nenhum apriorismo, no sentido de projecção de pré-concepções com potencial de limitar a compreensão da complexidade de pressupostos que poderiam contribuir para um melhor fundamentado entendimento da questão. O mote da discussão era relativamente claro: o que se passava com os dados do censo eleitoral divulgados pela CNE, com particular enfoque para a província de Gaza.

 

A projecção apriorística foi enunciada pelo emitente da expressão, ao insinuar que o interlocutor pensava que Gaza era bastião da Frelimo. Não era o caso. Uma postura apriorística é isso. Trazer de casa suas próprias convicções e projectá-las como fio condutor do debate, com atribuições ilegítimas do "lugar da fala".

 

Mas não é sobre esse apriorismo que aqui aporto, senão pelas subjacentes implicações e significações do pomo da discórida. Independentemente da (im)plausibilidade dos dados avançados pela CNE, o agora anedótico apriorismo gazense, encerra uma complexa amalgama de questões estruturantes, inerentes ao "processo democrático moçambicano" enquanto constructo dinâmico, epitomizado na regularidade de eventos eleitorais.

 

Subjacente às pipocas numéricos de gaza, existe toda uma longa história de desvirtuamento da significância do investimento eleitoral, caracterizado por reportes amplamente documentados do escamoteamento e usurpação do valor e lisura dos actos pré, eleitorais e pós eleitorais, que concorrem para um ceticismo sobre a idoneidade processual e consequente descrédito dos resultados daí decorrentes, com negativas implicações na forma como muitos cidadãos vêm, percebem e/ou lidam com as estruturas institucionais coroadas, pela força do Conselho Constitucional e pela aguerrida prontidão com que o aparato repressivo formal, e obscuro, vigiam e reprimem as contestações.

 

Habituados a ver as artimanhas eleitorais romperem pelas costuras no auge das campanhas e no momento do escrutínio em si, a revelação de que potencial viciação das eleições esteja a decorrer muito à prior, potencia esta onda de indignação pelo permanente desvanecer da esperança e aspiração por processos eleitorais relativamente isentos e credíveis.

 

Os últimos episódios de Marromeu, em que, à luz do dia indivíduos em conflito de interesse posicionaram-se como escrutinadores e membros de mesa, o escabroso saque de urnas eleitorais por janelas e posterior retorno por indivíduos trasvestidos na nobre indumentaria das corporações do Estado, exacerbam a percepção de que os concorrentes dos partidos não dominantes encontram-se em situação de desvantagem acrescida, não apenas pelo uso e abuso de meios de Estado para a materialização das campanhas, como pelo facto de terem que conformar-se perante evidentes usurpações de resultados, geralmente a favor do partidão.

 

Historicamente, a limitada capacidade de interposição tempestiva de recursos em situações de reportes de fraudes, por parte dos partidos que subsistem, a duras penas, à margem do poder, tem sido capitalizados por um sistema político eleitoral descomprometido com as "verdades eleitorais" e que não raras vezes agem como escudo de proteção e salvaguarda, voluntariosa e/ou mandatada, empenhada em impedir que partido tal ou qual ascenda ao poder em qualquer um dos níveis de governação que seja objecto de escrutínio.

 

O pseudo-apriorismo que se pretendia interpor para acalentar o tempo e espaço de legitimação de desvios matemáticos e lógicos, não se cinge na discussão quantitativa da plausibilidade dos dados populacionais avançados e nas incongruências contrastivas associadas aos dados oficializados pela CNE, verus INE.

 

Com ou sem ressalvas metodológicas, rearticulação de possíveis factores contribuintes e ou determinantes para tão desproporcional resultado de recenseamento eleitoral, o apriorismo lê-se nas entrelinhas que denunciam manobras visando abocanhar assentos em assembleias e estabelecer uma reserva contabilística, com potencial de (des)equilibrar a balança de resultados cumulativos a nível nacional. Já se viu no pleito das presidenciais passadas que cada província conta, e mais do que isso, cada voto faz diferença, como ficou patente nas recentes eleições autarquicas, com particular exemplo da Autarquia da Matola e dessas outras autarquias, como Alto-Molocué em que, pelo significado de cada voto, não se hesita em recorrer-se a expedientes vis, como quebra de vontade, violação da integridade física e quebra de membros até de indivíduos em exercício de actividades de representativade de Estado.

 

A instrumentalização apriorística de pressupostos, manifesta-se na crença de que as pessoas não se cansam de discussões circulares sobre as ilegitimidades e penumbras de processos eleitorais duvidosos, que se vai instituindo no imaginário social e como cultura política.

 

Ainda que superestimem a nossa ignorância, ao insistirem em enveredar por tão sinuosas trilhas, as nossas instituições de gestão eleitoral, digo, os guardiões de tais instituições, prestam um inimaginável desserviço ao país, ao contribuir na produção e perpetuação de farsas.

 

É tempo de não contarem com o nosso conformismo e muito menos anuências. Parafraseando o "é melhor deixar" do nosso PR, ou "relaxar", com direito a sinónimos, da nossa Presidente de Parlamento, penso que esses tempos estão minguando. Pois, a corrosão do sentido de pertença, o descaso pelas "leis", a reprodução das inequidades e da pobreza que nos assola não se materializa apenas pelas limitações na concepção, articulação e implementação dos nossos projectos de transformação socioeconómica, mas nestes apriorismos que assumem que tem de haver instruções e/ou "ordens superiores" a serem seguidas, rumo às ditas "vitórias retumbantes", a todo o custo.

 

Como se diz na gíria das zangas de momento, políticas e artísticas, este país é também nosso, igualmente nosso. Incluindo os gazenses em idade eleitoral activa e passiva, generosamente contabilizados entre vivos e mortos.

 

"Sem drama e nem trauma", pode ter soado a simples refrão de despedida. É mais do que isso. Um acto de coragem. Um convite ao (re)encontro com a verticalidade de espinha, pela qual muitos se definem.

terça-feira, 16 julho 2019 08:02

A agonia dos pescadores de Atum

O superintendente Namuiri, oficial-dia em serviço no comando distrital da PRM[1] aprecia pela janela do seu gabinete quão forte é a chuva que fustiga a baia de Memba e aumenta o seu estado de tensão sobre as operações de salvação da embarcação da Atusag, SA que ainda balança sobre as águas de Mitemane.

 

Com alguma agitação a mistura deita para boca de uma vez só uma chávena de café duplo a ver se alguma calma abrace o seu espírito. É preciso alguma frieza para salvar este barco – pensou. Não era para menos, pela primeira vez todas as forças policiais preocupavam-se com o naufrágio de uma, dentre as várias embarcações que fazem da caça ao atum, o seu dia-a-dia.

 

Volta a sentar e abre a sua gaveta de onde retira um maço de cigarros e respectivo isqueiro, entretanto, antes que os seus pulmões ingerissem o seu habitual antídoto, o seu telemóvel chama.  Comandando distrital da PRM de Memba, oficial-dia em serviço. Às ordens meu superintendente, apenas para informar que é melhor avançar com as operações em terra, porque o mar não nos facilita. Está bem inspector, por enquanto continuem com o trabalho e façam de tudo para salvar esse barco, porque ele não só leva pescadores de atum, mas pessoas que podem tomar decisões que impactem nossas vidas. E o superintende Namuri desliga o telefone sem esperar uma resposta positiva do inspector do outro lado da linha.

 

- Sargento Nicauane.

 

- Às órdens meu superintendente.

 

- Criem um auto-stop em todas estradas e recolham tudo quanto pode ajudar na logística para salvar o barco da Atusag, SA que como sabes está no meio das águas de Mitemane desde a madrugada.

 

- As ordens meu superintendente – uma resposta que seguiu-se de um movimento de sirenes jamais visto pela vila de Memba.

 

Será que é um novo casamento da mama Habiba Nikhuke? Não sei. Mas por onde ela anda? Trabalhava em Nacaroa e acabou de regressar. Mas ainda não tem enquadramento. Mama Habiba é muito forte, lembras do seu casamento? Sim lembro, teve uma festa jamais vista na vila. Tens mesmo razão, se não fosse o processo no tribunal. Processo? Sim. Ela tem um processo no tribunal, dizem que levou dinheiro da Capitania na altura que ela era a chefe dos pescadores e usou de forma indevida. Será que o dinheiro foi para o casamento? Não sei.

 

O espectro de especulações não conseguia parar as operações em terra. Os agentes da polícia estavam tão empenhados que chegaram a criarar um Auto-Stop na zona do Mitequereque, sendo que qualquer carro que por ali passasse era multado. Queria-se a todo custo angariar donativos que pudessem ajudar na logistica de salvamento do barco da Atusag, SA ora náufrago.

 

No meio de operações tanto no mar como em terra, uma calmia se faz notar na baía. As tempestades reduziram e o sol de forma envergonhada tentava mostrar-se. Por via disso, os agentes da policia estavam satisfeitos porque haviam já começado a resgatar o navio.

 

- Vamos, façam força rapazes

 

- Sim, estamos a conseguir

 

De repetenete um som de trovoada se faz ouvir para o susto de todos. O que se passa? A corda rebentou e o mau tempo está regressar. Uma mensagem que deixou os agentes da polícia lacustre e fluvial preoucupados. Afinal, dava para imaginar a angonia dos pescadores de atum cuja embarcação flutuava nas águas de Mitemane.  

 

[1] PRM – Polícia da República de Moçambique

 

terça-feira, 16 julho 2019 07:18

Sumbi Mahenhane: a nonagenária do futuro

Tudo o que ela diz parece uma renovação, pela maneira como dá sentido às palavras. Vibra em todo o ser quando diz, por exemplo, que a linha férrea passava por aqui. Aqui perto da minha casa. É como se ela própria fosse o comboio à vapor puxando em tempos de história e cumplicidades e amizades desinteressadas, longas carruagens repletas de gente em feliz algazarra. Rebusca passados esquecidos e transforma-os em fonte de água nos dias de canícula. Desdenha as muletas e o andarilho, mesmo sabendo que aquelas pernas precisam de ajuda.

 

Sumbi Mahenhane é a lembrança das frenéticas execuções de zorre, em noites vertiginosas nos subúrbios da cidade de Inhambane. Era a raínha sobre quem tudo gravitava, incluindo o batuque tocado por Mafanele, o “King”. Sumbi puxava os instrumentistas para o ritmo do seu corpo, desenhado pela Mão do próprio Deus para enlouquecer. E quando ela não estivesse nesse dia, as estrelas do Céu recusavam-se a brilhar. A lua também.

 

Hoje ficaram as palavras que lhe ressurgem da boca e do espírito. São elas – as palavras – que dançam debaixo do rufar imaginário dos tambores que outrora eram os fundamentos da vida desta mulher. Só a dança lhe dá o sentido de existência. O sonho só pode prevalecer com o som do ritmo. Nada é mais importante, senão a dança. E o amor. É por isso que continua a dançar, agora com as palavras. Retumbantes.

 

O que mais impressiona em Sumbi Mahenhane é a inabalável vontade de viver. Ela fala com esperança, como se o corpo esperasse  nova oportunidade de pisar os palcos e balançar em  liberdade. Espanta a memória deste pássaro. Ela lembra-se de todas as noites em que a luz era o seu corpo. E na verdade, Sumbi era o encanto da própria vida. Ou seja, o óleo derramado em Abraão, desde a ponta dos cabelos até à ponta dos pés, foi inoculado também sobre esta mulher que brilhava em todo o corpo e em toda alma. E agora reluz  em toda a alma que ainda mora neste corpo em derrocada.

 

O que move Sumbi Mahenhane  não é o presente. Mas o passado de glória. Passado do qual nunca recebeu medalhas. Nada! Ela nem sabe o que é isso. Bastam-lhe os ecos da alegria que dava ao povo. As galardões são as pessoas do vulgo, algumas das quais ainda demandam a sua casa para falar desse passado. Com a mesma verve com que o corpo se entregava à dança. É essa presença humana que a faz  acreditar no futuro.

 

Completou noventa anos no dia 15 de Junho passado. Festejou com a família e amigos, num ambiente em que não faltaram batucadas leves,  para celebrar o passado de alguém que continua a falar com alegria. Com esperança.

 

Parabéns, Sumbi Mahenhane!

segunda-feira, 15 julho 2019 06:26

Um possível legado de um mandato atípico

É sabido que Samora Machel trouxe a independência. Joaquim Chissano a paz. Armando Guebuza o caminho para a conquista da riqueza. Infelizmente, o que os três antigos presidentes trouxeram, não deixaram “tal&qual” para o actual inquilino da Ponta Vermelha, a residência oficial do Presidente da República (PR), Filipe Nyusi. Às costas – do mandato (2015-2019) – de Nyusi o peso dos quarenta e poucos anos de Moçambique e de contas por saldar: restabelecer a dignidade de um país independente; materializar uma paz permanente; e concretizar as condições para um país rico/desenvolvido.  

 

Suponho que o PR – no seu primeiro dia de governação – tenha perguntado: por onde começar? Do que se viu e pelos primeiros actos – dois encontros com Afonso Dhlakama, líder da Renamo, o partido-armado da oposição e arqui-rival da Frelimo, o partido-governo – a sinalização de que a paz seria o ponto de partida. E, no momento em que o PR se posicionava para definir o passo seguinte, cai o assunto das “dívidas ocultas”. No pacote, seguia um bónus de outras dívidas e por saldar: a transparência, a integridade e a prestação de contas. 

 

Num contexto atípico, um início e decurso de um mandato também atípico e de difícil gestão. Acredito que não tenha sido fácil ao PR deixar – ou tomar – decisões sobre assuntos transitados de outros governos ou sobre os quais os mais entendidos e tarimbados colegas do seu governo e cercanias (partido, assessores, entre outros) tivessem outro entendimento. Mário Soares, falecido estadista português, contava – a propósito de discussões nas sessões do governo a que presidia (e em tempos de grandes dificuldades) – que tinha perdido a conta de noites de insónias cada vez que os ministros, alguns deles, segundo Soares, muito mais inteligentes e experientes, esperassem que ele tomasse a decisão. 

 

O mandato de Nyusi – prestes a findar – herdou problemas (e outros nasceram) cujas soluções – havendo-as – ainda não geraram efeitos positivos no dia-a-dia do grosso dos cidadãos. E mesmo assim – para o espanto de alguns – o país não despencou. E abono que tenha o valioso contributo do PR para que o país não despencasse. Porventura, o melhor – que ele esperava – carecesse de outras condições que os seus antecessores não providenciaram, tanto é que o quarto andar do edifício que lhe competia dar continuidade não se encontrava à superfície: era o quarto piso dos andares do estacionamento ainda no subsolo. Outra provável razão do país não ter despencado. 

 

E por horas de fecho do mandato antevejo que o PR, no seu último dia de governação, pergunte: por onde sair? Espero que uma voz por perto diga: por onde entrou, Senhor Presidente! Neste caso pelo discurso da cerimónia de tomada de posse proferido no dia 15 de Janeiro de 2015. Uma nova leitura em jeito de balanço - à NAÇÃO - é recomendável. Vamos recordar alguns trechos: 

 

“Iniciamos hoje uma importante etapa do nosso percurso histórico como Povo e como Nação que levará Moçambique a um novo patamar de Harmonia e Desenvolvimento.”

 

“Como disse na minha campanha: o povo é o meu patrão. O meu compromisso é de servir o povo moçambicano como meu único e exclusivo patrão. O meu compromisso é o de respeitar e fazer respeitar a Constituição e as Leis de Moçambique. E eu estou pronto!”

 

“Lutarei para que os moçambicanos sejam os donos e a razão de ser da economia, assegurando uma crescente integração do conteúdo local e a participação efectiva dos moçambicanos nos projectos de Investimento, em especial na exploração de recursos naturais…” 

 

“Promoverei uma governação participativa fundada numa cada vez maior confiança e num efectivo espírito de inclusão. Este espírito de inclusão só se conquista por via de um permanente e verdadeiro diálogo. Necessitamos de construir consensos, necessitamos de partilhar, sem receio, informação sobre as grandes decisões a serem tomadas pelo meu Governo.” 

 

“Dentro de dias anunciarei a equipe governamental que a mim se irá juntar (…). Dois critérios básicos nortearão os órgãos da administração pública e da justiça: o mérito e o profissionalismo.” 

 

“Asseguraremos que as instituições estatais e públicas sejam o espelho da integridade e transparência na gestão da coisa pública, de modo a inspirar maior confiança no cidadão. Queremos uma cultura de responsabilização e prestação de contas dos dirigentes para que a que conquistem o respeito profundo do seu povo…”

 

“Eu, cidadão Filipe Jacinto Nyusi, sou o Presidente de todos vós! Tudo o que fizer e tudo o que farei será para que cada moçambicano se sinta parte do processo de desenvolvimento nacional. Mais unidos, mais fortes e mais determinados construiremos uma nação que todos celebramos como uma pertença comum. Neste acto solene, reitero a todos vós, moçambicanas e moçambicanos, no país e na diáspora, que dentro do meu coração cabem todos os moçambicanos. Vamos, todos juntos, construir um país à medida dos nossos sonhos.”

 

Um dos sonhos – e bem à medida – é a transformação do discurso oficial de tomada de posse, acrescido do respectivo balanço das promessas feitas, em discurso de despedida do mandato. Deste e de outros mandatos. Tenho a convicção que o PR, na esteira do seu inquestionável compromisso com o povo moçambicano, realizará este sonho, inaugurando um precedente histórico. 

 

Assim, no final do mandato, o PR deixaria o país à entrada do túnel (da transparência, da integridade e da prestação de contas) e com a viva e renovada esperança para uma caminhada conjunta em direcção à luz (independência, paz e riqueza) que se vê, piscando colorido, ao fundo. Em caso de concordância e assim proceder: estaremos no bom caminho, Senhor Presidente!

 

Para a História: um legado excepcional de um mandato atípico. Saravá!

Os meninos de Gaza perderam o estatuto de "crianças" e os mortos, de "falecidos". Aos malogrados diz-se "que Cê-Ene-É os tenha!", não Deus. Enquanto as crianças de Sofala estarão a brincar de casinha e boneca no dia 15 de Outubro, as de Gaza estarão nas filas de votação com um "papel", que nem sabem o seu significado, nas mãos. Aos mortos de Gaza o descanso deixará de ser eterno, pois terá um interregno no dia de votação. 

 

Usar crianças para satisfazer apetites políticos é crime quanto usar crianças para satisfazer prazeres sexuais. É tudo violência contra a criança. O recenseamento precoce é contra os direitos da criança quanto a gravidez precoce. Aqueles que distribuem cartões de eleitor para crianças deviam ser condenados quanto os que as engravidam. Alicerçar vitórias eleitorais sobre os mortos é pecado no Reino de Jeová. A não ser que a Cê-Ene-É prove que está a trabalhar com Alph Lukau,  aquele pastor sul-africano que ressuscitou morto em Fevereiro deste ano. 

 

Ora, mais do que ser um acto vil e desprezível isolado, os números publicados pela Cê-Ene-É/STAE põem em causa os trabalhos dos ministérios do Género, Mulher e Acção Social, da Educação e Desenvolvimento Humano e da Saúde. Por conseguinte, as execelentíssimas Cidália Chauque, Conceita Sortane e Nazira Abdula devem repudiar publicamente esses dados. Estes números podem contrariar as estatísticas sobre crianças assistidas, crianças do ensino primário, crianças vacinadas, crianças órfãs e vulneráveis, mortalidade infantil, etecetera. Um dia os doadores irão reduzir os orçamentos dos vossos ministérios com justa causa. 

 

É que assim fica-se sem saber, por exemplo, se vale a pena investir na construção de mais maternidades, escolas primárias e infantários ou na contratação de mais técnicas de saúde materno-infantil e professores primários numa zona onde já não nascem mais crianças. E fica-se também com a dúvida se, de facto, aqueles livros de distribuição gratuita e aquelas vacinas contra poliomielite têm sido realmente bem contabilizados. Podem-se reduzir os orçamentos destes ministérios a favor da assistência social aos idosos. Afinal, não há tantas crianças para serem vacinadas ou para receberem livros. 

 

Feitas bem as contas, Gaza deve ter por aí umas duzentas crianças. E se os doadores perguntarem a doutora Nazira onde estão as crianças de Gaza que ela disse que vacinou no ano passado o que vai dizer? O que fazem com as vacinas de poliomielite e os livros de distribuição gratuita que têm levado para Gaza? É que se cruzarmos os dados, iremos concluir que Gaza tem mais professores primários e médicos pediatras do que crianças. Deve ser a província mais difícil de vender fraldas e cerelac. 

 

Ou então, estamos a falar de uma província que tem um rácio de 10 parteiras para cada mulher grávida ou 20 professores para cada criança do ensino primário. Uma província extremamente desenvolvida que não está neste Moçambique de malta Chang. Estamos a falar de uma província que tem usado dinheiro da assistência social, educacional e sanitária para crianças que não existem. Ou seja, concluindo, Gaza tem sido usada há anos para desviar dinheiro do erário público. E aí já é caso para a outra senhora agir: a digníssima Beatriz. 

 

- Co'licença!

A intervenção da sociedade civil moçambicana na África do Sul, obrigando à reavaliação judicial do processo de extradição de Manuel Chang, é a demonstração pura de uma cidadania em defesa do interesse público. Quando a política e a justiça se mostraram erráticas, defendendo uma extradição para Moçambique sob o argumento da garantia do confisco de bens (que no caso dos arguidos já acusados da dívida oculta se mostra completamente ineficaz), a sociedade civil não baixou os braços à sua crença de que um julgamento de Chang nos Estados Unidos tem maior probabilidade de não ser manipulado politicamente. Aliás, esta é uma crença generalizada dos moçambicanos, dado o descrédito vergonhoso que envolve todo o aparelho judicial.

 

Na semana passada, era largamente especulada a iminência do envio de Chang para Maputo, gerando os temores recorrentes de que ele vinha para gozar sua impunidade no quadro da protecção política que a Frelimo, seu partido, lhe oferece. E dado que os americanos (não se sabe muito bem a troco de quê) decidiram não recorrer da decisão política de Michael Masutha, a vinda de Chang parecia um dado adquirido.

 

Mas o Fórum de Monitoria do Orçamento (FMO), uma coligação que congrega 19 organizações, e onde se destaca o trabalho abnegado de figuras como Denise Namburete, Paulo Monjane e Edson Cortez, vislumbrou brechas legais para agir dentro do aparato judiciário sul-africano, e conseguiu fazer a vez dos americanos. Sua petição, brilhantemente esgrimida, teve o efeito vulcânico sobre a decisão de Masutha: o processo vai ser analisado no Tribunal Supremo sul-africano, voltando tudo à estaca zero. Ou seja, a possibilidade de Chang seguir viagem para uma prisão em Brooklyn ainda está viva.

 

Este efeito é um marco político digno de realce e mostra como algumas organizações da sociedade civil são de extrema relevância (muito mais relevantes que os partidos políticos) para a defesa dos interesses da maioria.

 

Desde os primórdios dos anos 2000, as organizações da sociedade civil da área de Governação têm aprumado suas intervenções, sofisticando nas análises sobre a gestão pública do Estado, muitas vezes errática e, sobretudo, exigindo de forma assertiva a prestação de contas e a transparência.

 

A pequena grande vitória na África do Sul mostra que a litigação em defesa do bem público, gerido por interesses privados de uma elite política que só pensa em acumular riqueza para si, pode ser instrumental como ferramenta de trabalho das ONGs da Governação. Estamos perante um grande marco, um excelente aprendizado.  

 

E atenção: a classe política moçambicana não se pode queixar. Foi ela própria quem criou as condições para que o caso chegasse a este estágio, ao protelar o levantamento das imunidades do deputado Chang.  A renitência (bem representada por declarações inócuas de Verónica Macamo, a Presidente da AR, garantido que Chang iria ser detido logo que chegasse a Moçambique) acabou não servindo os interesses do próprio deputado. O expediente da manipulação com doses exageradas de improviso e incompetência, a que a Frelimo está habituada, desta vez não vingou, esbarrando na RAS, um Estado onde leis e princípios são respeitados pelas autoridades públicas.

 

Em suma, a sociedade civil moçambicana, num acto de cidadania corajosa, derrotou a classe política local receosa de ver Chang delatando, nos EUA, sobre as entranhas da corrupção em Moçambique.  Tratou-se de um marco tremendo em defesa do bem público, um facto que deve ser registado nos anais mais vistosos da nossa História. (Marcelo Mosse)