Depois das celebrações dos 50 anos do assassinato e desta nova Páscoa de Amílcar Cabral, abraçamos, com a mesma êxtase e fraternidade, o seu centenário natalício. Amílcar Cabral, possivelmente um dos mais celebrados líderes das lutas pela libertação e independência dos países africanos de língua portuguesa, nos convoca, serenos e incertos, em seu centenário, imbuídos desses nobres ideais e do sentimento patriótico de servir o povo, de lutar pela igualdade e por um amanhã melhor, sem ambiguidades. Esse era o cerne de seu pensamento e pelo qual ele dedicou sua vida e derramou seu sangue.
Reverenciado, enaltecido e glorificado como um dos mais carismáticos líderes da sua época, Amílcar Cabral era confesso admirador e amigo de Eduardo Mondlane, nosso herói nacional, muito embora, nem sempre, estivessem de acordo sobre as estratégias de luta e fundamentos da luta. O importante é que, após essa longa jornada, Eduardo Mondlane conseguiu retornar à sua aldeia como um combatente pela libertação e pelo progresso de seu povo, enriquecido pelas experiências muitas vezes perturbadoras do mundo contemporâneo. Ele ofereceu um exemplo frutífero, enfrentando todas as dificuldades, resistindo às tentações e rompendo com os compromissos de alienação cultural e política, ao mesmo tempo em que se reconectou com suas raízes, identificou-se com seu povo e dedicou-se à causa da libertação nacional e social. Eis o que os imperialistas não lhe perdoaram, afirmava.
Amílcar Cabral foi um dos maiores e mais críticos pensadores do século XX, de acordo com muitas correntes de pensamento e escritos. Um pouco por esta razão, ele continua presente nas cátedras, citado em diferente bibliografia e eternizado em telas. O seu pensamento continua subjacente em duas correntes principais, sendo a primeira a que se consubstancia no facto de, através da sua prática e acção revolucionárias ter dado um passo significativo no sentido de renunciar à condição de subalternidade e de dependência a que o colonialismo português o tinha votado, a ele e ao seu povo, enquanto colonizados.
A segunda corrente, eventualmente, a mais estudada pela academia mundial era o seu pensamento crítico, ao não se ter conformado com alguns dos paradigmas do pensamento social vigentes na época, inclusive os das ciências sociais. Estas reflexões de Amílcar, que se distanciaram das lideranças subsequentes, pós-independência, encontram expressão nos dois volumes das suas obras, nomeadamente “A Arma da Teoria”, de 1980, para o primeiro, e “A Pratica Revolucionaria: Unidade E Luta II”, de 1977, para o segundo.
Para alguém que não teve a oportunidade de o conhecer fisicamente, e sem nenhuma aparição em Moçambique, diferente de Julius Nyerere, Agostinho Neto, Keneth Kaunda, todos eles já centenários, não o pode conceber dissociado e distanciado de Eduardo Mondlane, Paulo Freire e tantos outros. Num eloquente discurso na Universidade de Syracuse, nos Estados Unidos da América, onde Mondlane se formou e foi homenageado, Amílcar afirmou “[…] quisemos demonstrar a nossa amizade militante e solidariedade ao povo de Moçambique e ao seu bem-amado chefe, o Dr. Eduardo Mondlane, ao qual estivemos ligados por laços fundamentais na luta comum contra o mais retrógrado dos colonialismos, o colonialismo português. A nossa amizade e a nossa solidariedade são tanto mais sinceras quanto nem sempre estivemos de acordo com o nosso camarada Eduardo Mondlane, cuja morte foi, aliás, uma perda também para o nosso povo […]”
Faz, pois, sentido que os nossos países e, sobretudo, os jovens retomem a estes testemunhos, desse tempo, cujos pensamentos continuam presentes. É fundamental revisitar as personagens que fizeram e fazem nossa história, sociedade e cultura e, principalmente, os cultores que assumiram protagonismo e falaram em nome de tantas gerações.
Defendo, vezes sem conta, que estes tempos exigem que se faça algo contra o esquecimento, contra o vexame do alheamento e, sobretudo, contra a indignidade do desconhecimento e essa amnésia colectiva que aos poucos se apodera de todos nós.
O centenário de Amílcar Cabral representa uma extraordinária oportunidade para revisitarmos seu caminho, explorando seus pensamentos, atitudes, valores, aspirações e inquietações. Desde sua participação na Casa dos Estudantes do Império até a clandestinidade na metrópole, passando pelas associações de estudantes africanos e enfrentando prisões arbitrárias e massacres, devemos reverenciar os jovens que, diante de todos os perigos, expressaram e demonstraram com bravura um amor ilimitado e um dever patriótico incomum para com Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, Angola e São Tomé e Príncipe.
Amílcar Cabral, esse engenheiro Agrónomo, líder da revolução da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, continua tão presente e consequente pelo seu pensamento político e libertador, sua visão cultural e pelo pragmatismo com o qual conduziu os destinos da luta de libertação nacional, mas, também, pela utopia do seu sonho e querer. Essa utopia que o posicionou como exímio conhecedor e detentor de reflexões políticas e revolucionárias muito para além do seu tempo e espaço. Permanecem célebres suas análises e memórias sobre a essência desse colonialismo, a forma inglória com não foi entendido o clamor dos povos e, sobretudo, a maneira como se oprimiu povos africanos e se estendeu essas práticas fascistas para o seu próprio interior. Por essa razão, as recentes celebrações do 25 de Abril, 50 anos da revolução dos cravos, simbolizam e seriam consequência directa das próprias lutas de libertação nas colónias do ultramar.
Amílcar Cabral afirmava que a política é repleta de contradições, destacando a necessidade de diálogo aberto e discussão franca sobre questões que conduzem às melhores soluções para o futuro. Para ele, a política também era um exercício de diálogo contínuo. Essa contradição intrínseca encerrava a essência do diálogo e justificava a luta pela dignidade de seu povo, pelo resgate de seus valores morais e pelos direitos fundamentais e pela paz para os povos africanos.
Amílcar Cabral considerava que a essência de sua luta residia na busca pela possibilidade e realização da construção de pontes e consensos. Por isso, participou em sessões das Nações Unidas, visitou universidades, corporizou a Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP) e criou as primeiras assembleias populares nas zonas libertadas. Sob sua liderança, mais de 80% da Guiné-Bissau se libertou, até ao começo dos anos 70. A luta de libertação, afirmava, só poderia ser pela dignidade dos povos do seu país, a liberdade e a possibilidade de poderem usufruir dos mesmos direitos e recursos.
Continua célebre a sua afirmação segundo a qual “[…] a história ensina-nos que, em determinadas circunstâncias, é fácil ao estrangeiro impor o seu domínio a um povo. Mas, ensina-nos, igualmente que, sejam quais forem os aspectos materiais desse domínio, ele só se pode manter com uma repressão permanente e organizada da vida cultural desse mesmo povo, não podendo garantir, definitivamente, a sua implantação a não ser pela liquidação física de parte significativa da população dominada […]”. Portanto, apelar à indestrutível resistência cultural, assumiria uma das formas de contestar, com vigor, o domínio estrangeiro.
Para Amílcar Cabral, e por vezes em rota de colisão com seus próprios camaradas, os movimentos de libertação deveriam saber preservar os valores culturais positivos de cada grupo social bem definido, de cada categoria, realizando a confluência desses valores no sentido da luta, dando-lhes uma nova dimensão, a nacional. Perante esta necessidade, a luta de libertação era, acima de tudo, uma luta tanto pela preservação e sobrevivência dos valores culturais do povo, como pela harmonização e desenvolvimento desses valores num quadro nacional.
À semelhança de Frantz Fanon, autor da célebre obra “Os Condenados da Terra”, de 1961, o colonialismo foi um sistema que construiu e perpetuou estereótipos, destruindo valores e moral. Acredito que Amílcar estudou Fanon e Albert Memmi, manifestando em diferentes discursos uma grande preocupação e desilusão, evidenciadas pelas várias experiências de governação em África após 1960. Dizia Cabral que após a independência, tudo deveria ser feito para que as pessoas passassem a viver melhor que antes, que essa era a forma de legitimação desse exercício e sacrifício libertador. Se depois das independências as pessoas passassem a viver pior, então, não valia a pena ter lutado pela independência.
Amílcar Cabral, descrito por Paulo Freire como um pedagogo do anticolonialismo, defendia três eixos fundamentais na governança dos países africanos após as independências conquistadas por revolucionários: a necessidade de governar com decência, honestidade e patriotismo. Estas são questões de grande relevância na contemporaneidade.
Nesta breve e desproporcional retoma ao pensamento de Cabral, resgatando sua memória e dignidade, amor pelo continente, esquartejando os tremendos desafios e a complexidade dos tempos, batemos de cara com as vicissitudes, experiências das lutas pela emancipação, equações para o desenvolvimento económico, afirmação da identidade, congregação dos ideais de nação e institucionalização de novas regras de convivência social, e damos conta que Cabral esta desaparecido. Precisa de ser resgatado. Nem que seja por um dia.
A gestão dos novos poderes políticos, permaneceu como processos inacabados, de enorme complexidade e, nem sempre, predefinido por lógicas e soluções reconciliatórias. Entre a misoginia, os sonhos políticos e as virgindades discursivas até as ambiguidades, assimetrias e desigualdades, esses países foram construídos primeiro como estados socialistas, depois como sociais-democracias, mas logo foram forçados a converter-se em sistemas pluralistas, multipartidários e de economia aberta.
As instituições globais promotoras do neoliberalismo, explorando as fragilidades socioeconómicas e institucionais e as clivagens culturais e políticas locais, ditam os vectores e modelos macroeconómicos de desenvolvimento que, em larga medida, servem os seus próprios interesses, fragilizando as correntes do não-alinhamento, cooperação sul-sul e a permanente dependência socioeconómica e tecnológica.
Amílcar Cabral e Eduardo Mondlane poderiam não ter pensado no antídoto para estas situações, nem mesmo teriam respostas para fazer face a ferocidade do capitalismo global, do neoliberalismo, onde os países, como o nosso, se apresentam desprovidos desses recursos tecnológico e científico, com as instituições fragilizadas, e que se tornam presas fáceis. Os condicionalismos fazem com que as lideranças não se assumam e que os destinos nacionalistas permaneçam sonhos adiados. Agora, mudamos os termos e já são outros conceitos de endogeneidade, desenvolvimento tecnológico, digital e ambiental.
Como muitos outros países da periferia, acabamos por nos configurar como Estados de descontinuidades e processos políticos, económicos, sociais e culturais inacabados. Os líderes de ontem nem sequer acreditam que viramos palco dos descaminhos e incongruências, que inviabilizam consensos e retardam o passo do desenvolvimento harmonioso como nação, gerando tensões, conflitos sociais e terrorismo.
Cabral, esse multilateralista nato, não acreditaria, nem no pior dos seus sonhos, que as respostas de ontem continuam perguntas, ainda, de hoje, e que as incertezas se perderam com o tempo. Amílcar e Mondlane deitariam lágrimas de tristeza constatando que 50 anos depois do movimento das independências, estas terras continuam convivendo com graves crises económicas e sociais, políticas e militares. Esta população de 24 anos ou menos, procura pelos seus próprios ventos de mudança, para desfrutar do potencial e das oportunidades. “Amo Africa e quero um dia regressar”.
Foi manchete nas últimas semanas e até meses, e dominou vários debates públicos em círculos de opinião, a questão da sucessão dentro do partido FRELIMO, bem como sobre quem incidiria a escolha do próximo candidato às eleições de Outubro próximo.
Na reunião dos ACCLIN que antecedeu a sessão ordinária do Comité Central do Partido FRELIMO, José Óscar Monteiro, quadro sénior, ideólogo da FRELIMO e veterano da luta de Libertação de Moçambique, com a verticalidade e frontalidade habitual deu mote a um assunto que a todos preocupava, mas poucos tinham coragem de abordar. Ao levantar de forma estilística a imagem do elefante na sala, abriu uma nova página na agenda do dia – era inevitável não se falar do tema da sucessão.
No épico “conclave” extraordinário que durou três dias, contra tudo e todos, emergiu uma figura inesperada. Surgiu de uma lista restrita proposta por um núcleo duro, e que poucos deram a devida relevância na altura – chamarei a esta figura, de forma analógica de “Furacão Chapo”.
Dos retiros hermenêuticos que realizei para tentar perceber o outro lado do fenómeno, permiti-me acompanhar alguns debates a vários níveis, desde os órgãos de comunicação como televisão, rádio e jornais às redes sociais – estas últimas com uma quantidade anormal de análises. Neste exercício pude encontrar uma nota e um denominador comum – uma tentativa de catalogar e rotular o candidato escrutinado e relacionar com os tão almejados ventos da mudança. E dessa constatação formulei algumas perguntas que orientaram a reflexão.
Afinal de contas, de que mudança tanto se fala? Do novo paradigma governativo? Da tomada de consciência e atitude dos jovens quadros do partido? Ou apenas e simplesmente da mudança de um candidato mais velho por outro mais jovem?
Que nuances essa propalada e celebrada mudança carrega consigo?
Sobre a matemática e racionalidade dos votos, prefiro guardar para uma outra reflexão, sob o risco de desfocar-me do cerne da reflexão.
Ao anúncio formal do candidato - “Furacão Chapo”, seguiram-se dias de azafama e muita euforia no seio de alguma franja da sociedade. Seguiu-se igualmente aquele processo de catalogar e curricular o novo candidato, vasculhando um pouco a sua história, seu percurso, ligações, conexões, desconexões e tudo o que pudesse conferir alguma autoridade e legitimidade para dizer que o conhecemos minimamente.
O até então, apenas Governador da majestosa província de Inhambane (que ostenta o nome de Terra da Boa Gente), surge como o escolhido, e é já apelidado e adjectivado por um grupo de analistas e comentadores de “salvador e portador de esperança”. Os adjectivos surgem por um lado devido ao facto de Daniel Chapo ter infringido uma pesada e inesperada derrota ao tal “colosso indesejado”, conhecido como alguém de matriz autoritária, pouco ávido a discussões e de poucos consensos; e por outro lado, porque a eleição marca um ponto de viragem histórica em relação as últimas tendências percebidas como semi-autoritárias, pouco dialogantes, pouco transparentes e pouco democráticas no seio do partido. Um ponto de viragem e de advocacia dos jovens quadros do partido que deram um murro na mesa – os mesmos quadros que foram criticados e acusados de forma veemente de pouco ou nada fazer para reverter a situação actual.
A questão paradigmática que aqui tento trazer não é tanto que descrever o que aconteceu no conclave da Matola, mesmo porque não teria novidade nenhuma nem propriedade alguma para trazer seja lá o que fosse. Mas, como moçambicano, filho desta terra e que ama o seu país de forma profunda, me propus escrever e oferecer este texto onde discorro sobre a possível via sacra do conclave da Matola ao acto de governar. De como pode este processo ser capitalizado para que o Sol de Junho recupere o brilho que vem perdendo. Como é que esta viragem pode significar a recuperação ou reinvenção da mística de setenta e cinco.
A nossa reflexão como sociedade, não deve cingir-se a caras nem a coroas, tampouco a teorias sobre etnicidade, religiosidade, racialismo, ou seja, lá que variável a equação política queira tomar. Não pode ter como pressupostos a personificação de um indivíduo seja ele do Sul, do Centro ou do Norte, mas sim olhar para Moçambique como um todo globalizante, seus povos, suas pessoas, suas matrizes culturais e sociais, seus defeitos e suas qualidades, seus problemas e soluções.
A eleição de Daniel Chapo a candidato, não encerra uma discussão. Na verdade, a meu ver, reinicia um debate já antigo sobre a necessidade do partido que governa o país se ajustar às novas tendências, aos novos tempos, e retocar ligeiramente a narrativa já desgastada sobre a libertação do jugo colonial e descolonização, sobre o conflito dos 16 anos – essa narrativa desgastou-se e fatigou até aos que a compraram, e pouco convence e comove o eleitorado mais novo.
Chapo herda enquanto candidato, um partido de certa forma fragmentado e com tendência de clivagens que podem abalar a estabilidade; um partido com algumas forças internas a andarem em contramão guiadas por interesses particulares. Pesa sobre ele, o fardo de ser o candidato sem o tal traquejo e preparo ideológico e até rotação governativa de nível central e que ousou derrotar um peso pesado. Mas a democracia é isto mesmo: entrar ao sufrágio e saber que todos resultados são passiveis e possíveis.
Ser candidato pela FRELIMO, num momento em que a oposição se encontra num sono profundo, e de oposição só tem nome, confere uma vantagem competitiva a Chapo; confere uma vitoria quase certa em Outubro (se retumbante, esmagadora e asfixiadora ou não, isso as urnas irão dizer).
Chapo irá, caso se confirme a premissa, enfrentar três grandes desafios:
O primeiro grande desafio que enfrentará enquanto candidato será o de gerir as várias animosidades das chamadas alas que foram sedimentando sua posição no xadrez interno e reclamando cada uma o seu protagonismo e no acesso ao tacho e a riqueza do país. Sendo ele novo em idade e em experiência político-partidária deverá se dar tempo de moldar-se num processo simultâneo de aprender fazendo.
O segundo desafio, será o de se tornar o presidente de facto e de jure do partido e ter poderes suficientes e liberdade para ser ele mesmo – claro que sabendo respeitar limites, os estatutos e os demais instrumentos do partido. Aqui terá um árduo trabalho de resgate da imagem do partido, do orgulho da onda vermelha, recuperação do eleitorado descontente e frustrado e, conduzir um processo interno de reconciliação e valorização da história do partido, dos seus ideais e legados.
O terceiro e último desafio que vislumbro, e talvez o mais importante será o de governar Moçambique. Governar um país vasto e com muitos problemas que não foram devidamente acautelados no passado (pobreza generalizada, a segurança alimentar, choques climáticos, educação decadente, saúde doentia, o dossier das dívidas ocultas e de outras que poderão surgir, a insurgência em Cabo Delgado, a corrupção no aparelho do estado, nepotismo, segurança pública, a segurança do país, a defesa da nossa soberania, etc).
Preparando o voo, para aterrar de forma segura e sem estrondo, digo de forma objectiva e sem rodeios: onde muitos veem Chapo como um herói e salvador, eu vejo como produto e consequência de uma circunstância, uma vez que a escolha dele não se baseou numa prerrogativa nem numa premissa previamente estudada e acordada. Dizendo por outras palavras, subassumo que Chapo não terá desenhado, apresentado nem submetido uma manifestação de interesse para o efeito.
A circunstância a que me refiro é daquelas conspirações difíceis de explicar; e pode ter um final feliz se as peças do xadrez se assentarem no tabuleiro sem pressões internas e externas. Enquanto governante, deverá saber ser lobo em alguns momentos e ovelha noutros.
Chapo tem um desafio à altura da sua altura _ Amar Moçambique em primeiro lugar para poder governar com sabedoria e ponderação. É meu (e talvez de muitos) o ensejo que esta caminhada seja gloriosa. Lembrar que apesar de ter espinhos, a rosa não perde a sua beleza – este é o Moçambique que Chapo vai herdar em breve. Terá de aprender a lidar com nuances e vicissitudes de vária ordem.
Homens e instituições fortes podem fazer Estados fortes e prósperos.
Disse!!!
Por: Hélio Guiliche
Bernardino Rafael, o Comandante Geral da Polícia nos governos de Filipe Nyusi, chegou ao fim da linha. No passado dia 9 de Maio, ele assumiu aquilo que todo o mundo sabe: a polícia moçambicana, que ele dirige, está infestada de criminosos.
Eis as suas palavras, vertidas na INSTRUÇÃO N° 05 /CGPRM/GCG/100/2024:
“Nos últimos dias, o Comando-Geral da PRM tem constatado, com maior preocupação, a ocorrência de crimes envolvendo membros da PRM, praticados com recurso a armas de fogo, com destaque para assaltos e raptos”.
Finalmente, um alto dirigente castrense coloca o dedo na ferida, mas, como vão notar, ele não procura um curativo por intrusão, optando apenas por cobri-la com paninhos mornos.
Em face da situação, eis o que Bernardino Rafael recomendou, ipsis verbis:
“Assim sendo, com vista a assegurar uma análise aprofundada e abrangente sobre este fenómeno, INSTRUO os Ramos, Direcções do Comando-Geral da PRM, Comandos Provinciais da PRM, Estabelecimentos de Ensino Policiais e Unidades das Forças Especiais e de Reserva a realizar uma reflexão sobre as causas do envolvimento dos membros da PRM em actos criminais e apresentar recomendações para a solução do problema.
Prazo: 30 dias a contar a partir da data da recepção da presente”.
Trivial. Bizarro. Inenarrável!
Bernardino no seu pior.
Bom, antes de mais vale a pena elogiá-lo pela coragem. Ele admitiu finalmente o que a sociedade sabe. Que muitos relatórios comprovam: sua polícia não tem brio, é corrupta e assaltante à mão armada, e são operativos.
De resto, o problema tem barba branca (no caso dos raptos, a PGR Beatriz Buchile não se cansa de apontar o envolvimento de membros do SERNIC) e acentuou-se no seu consulado, sobretudo no caso dos raptos.
E o que Bernardino fez para contê-los? Fugas para frente com ladainhas ocas. Aliás, ele é um dos responsáveis da inacção, por omissão, nomeadamente quanto à aceitação por Moçambique de assistência técnica estrangeira de “polícia científica” para combater os raptos, adensando a percepção de que a “indústria” tem beneficiários dentro da classe política.
E agora, em função do seu descobrimento, a reacção de Bernardino é surreal. Ele não menciona a necessidade de reforço das unidades de inteligência e vigilância interna e a facilitação da reacção penal por parte da Justiça contra os “polícias criminosos”.
Mesmo com evidências cada vez mais graves, ele faz uma instrução que é um convite à ociosidade dos seus comandantes e prova cabal do desnorte vigente. Durante um mês, os comandantes vão recostar-se nas suas poltronas de cabedal, fingindo que estão a elaborar a reflexão solicitada.
Só o desnorte pode levar um alto quadro policial moçambicano a ignorar a ACIPOL (ele menciona vagamente os estabelecimentos de ensino tutelados) e as universidades deste país quando se tratar de avaliar um comportamento que também pode ser consequência da inexistência de controlo e vigilância interna e falta de autoridade de quem está a ser convidado para fazer a avaliação.
Esta instrução demonstra autoritarismo e preconceito de um dirigente que já devia estar em casa, tanto mais não seja pelo falhanço total em Cabo Delgado. O que Bernardino Rafael devia ter feito é convidar uma avaliação externa e independente, anunciar o reforço da vigilância interna e manifestar disponibilidade para aceitar a cooperação internacional. Enquanto isto não for feito, nada feito!(Marcelo Mosse)
Eleito no conclave da “capela sinistra” da Frelimo na Matola na semana passada para candidato presidencial do partido no poder, Daniel Chapo diz-se predisposto. “Irrumele Irrumele, ita Famba”, entoa ele o refrão em xitsua, uma das línguas mais faladas em Inhambane, onde ele é Governador.
Veja o vídeo https://fb.watch/rZBVqKTW-_/
Chapo se mostra igual a si mesmo. Quando foi eleito no passado domingo, ele trajava jeans com sapatilhas, uma indumentária que parecia mostrar que ele não estava à espera da preferência.
Ontem, também, quando subiu a um palanque na cidade de Inhambane, para sua primeira aparição publica após a eleição, o traje respirava simplicidade.
Sua mensagem no vídeo é clara. Ele representa todos os moçambicanos. Contudo, Chapo desconstrói a percepção de que ele representa “a vez do centro”, como a turma de Filipe Nyusi no Comitê Centrar tentou fazer crer.
Ele nasceu em Inhaminha, em Sofala. Seu pai saiu de Inhambane para Sofala para trabalhar TransZambezia Railway, uma companha ferroviária extinta em 1988, que servia nas regiões interiores no eixo Beira, Marromeu e Inhaminga. Consta que sua mãe é da etnia cisena.
Sua ligação com Sofala é biográfica. Mas no vídeo, Chapo assume-me como filho de Inhambabe, uma terra abençoada, que já produziu ministros, incluindo o actual Primeiro Ministro, Adriano Maleiane, frisou ele.
Sua aparição ontem em Inhambane em jeito de agradecimento provincial insere-se também na pré-campanha eleitoral.
As eleições presidenciais estão marcadas para Outubro e o calendário aperta. A Frelimo ainda precisa de afinar sua máquina eleitoral. A renúncia de Roque Silva deixou um lugar crucial em aberto e que deve ser preenchido rapidamente, através de um Secretário Geral interino forte que também coordene a campanha.
Na quarta-feira, a Comissão Política da Frelimo esteve reunida mas foi inconclusiva quanto a esse assunto. Alguns nomes perfilam, mas nos bastidores avulta a ideia de que encontrar uma figura consensual será difícil.
Nas vésperas da campanha eleitoral, Daniel Chapo tem agora, também. um dos maiores desafios da sua vida: Recusar ofertas envenenadas, nomeadamente dinheiros provenientes do narcotráfico e do tráfico de influências, evitando condicionar a sua presidência à corrupção, como tem vigorado ultimamente em Moçambique.
Uma hipótese parece indesmentivel: a tentativa da sua cooptação por nyusistas e anti-nyusistas. Ele deve ter capacidade suficiente para fazer as pontes entre as correntes internas desavindas.
Começo este pequeno rabisco com um trecho da música do renomado grupo moçambicano de HIPHOP – Gpro-Fam. Um clássico com mais de 20 anos, e que permanece actual pela sua forte mensagem de caris socio-político e pela futurologia que estes rapazes emprestaram ao momento.
Com o título (País da Marrabenta), a música diz logo no início: “Passe o tempo que passar, um nome ficará eternamente gravado na história de Moçambique – O Nome de Samora Moisés Machel (…)
O País da Marrabenta vai de mal a pior, mas paciência Moçambicanos tem de melhor”.
A música é uma clara alusão ao Patriotismo de Samora Machel, figura incontornável do nosso Moçambique; e também ao espírito de paciência e optimismo do povo Moçambicano.
Terminado o ciclo governativo liderado pelo Presidente Armando Guebuza, inaugurou-se um novo ciclo; ciclo este sob liderança de Filipe Jacinto Nyusi. Diga-se, um ciclo inaugurado com um tema antigo e candente, que ocupa lugar de destaque dentro e fora do país, e domina a agenda do dia – as dívidas ocultas. Dívidas estas que colocaram o país numa situação degradante e com um descrédito internacional nunca antes visto.
A já difícil vida da população da Pérola do Índico piorou exponencialmente; a retirada do apoio dos principais financiadores do Orçamento Geral do Estado colocou o país numa situação bem mais difícil, com contas por pagar e processos internacionais por gerir; a nova carga fiscal, o agravamento dos preços de produtos básicos começaram a asfixiar o bolso do cidadão ordinário que já vivia em situação contingencial.
A escolha de Filipe Jacinto Nyusi para candidato pelo partido do batuque e da maçaroca, colocou imediatamente a máquina de propaganda a trabalhar dia e noite – era importante garantir que a socialização acontecesse dentro do tempo e que a aceitação popular fosse uma certeza inequívoca.
Gerou-se uma grande expectativa em torno destes dois mandatos. Dez anos em que a popularidade chegou a ser das mais altas no início, muito por conta do seu discurso incisivo e arrebatador da tomada de posse e, pragmatismo promissor na formação do seu primeiro governo. Mas a popularidade foi se enfraquecendo a medida em que sua governação dava marcas de pouca assertividade.
A forte, audaz e inteligente a máquina de campanha do seu partido fez milhões de moçambicanos, do Rovuma ao Maputo e do Zumbo ao Índico cantarem, dançarem e acreditarem que a confiança depositada brotaria em mudanças práticas e visíveis para o país, e que de facto o país tinha tudo para dar certo.
Confesso que para mim, particularmente as duas campanhas destes dois mandatos foram das mais bem conseguidas em termos de envolvimento e cadência – parecia haver uma sintonia inegável entre as músicas e as mensagens de prosperidade e de confiança. Por isso escutamos, cantamos e dançamos todos o “Eu confio em ti Nyusi”.
Nyusi chega ao poder com muita responsabilidade enquanto estadista; carrega um fardo que ele mesmo ajudou a encher enquanto Ministro da Defesa Nacional. Apresenta-se como um Presidente de ruptura com o guebuzismo, e auto proclama-se empregado do povo – para o delírio de milhões de moçambicanos que se sentiram patrões do Presidente.
Vivemos, nos últimos dez anos, dois mandatos de muita sagacidade governativa com muitas experiências para mais tarde lembrar e tirar as devidas ilações.
A meias com um fardo pesadíssimo e super delicado – das ocultas, sua governação foi também marcada pelo recrudescimento da insurgência que grassa Cabo Delgado desde 2017, pela passagem de ciclones altamente destrutivos e mortais, sofisticação do crime organizado, aprimoramento das redes de raptos e pela carestia do nível de vida no seu todo. Estes são apenas alguns dos aspectos que me ressaltam trazer em revista.
Cinco anos mais tarde, a máquina brindou o eleitorado com mais um hit forte e envolvente - “É contigo que dá certo”. É o último mandato e, era preciso corrigir e melhorar o que não correu bem no primeiro mandato. Mas entre a teoria e prática há uma distância considerável.
No ano em que mais um reinado chega ao fim, penso que como sociedade devemos lançar um debate público, sincero e honesto sobre o actual estágio do nosso país; sobre o país que queremos deixar para os nossos filhos e netos. Precisamos de um manifesto social que deve guiar todo e qualquer governante que pretenda governar e promover o desenvolvimento, a justiça social, os direitos humanos e o respeito pela dignidade da pessoa. Este manifesto deve necessariamente conter as demandas, os anseios e sonhos deste povo amordaçado, sofrido, porém resiliente.
Na hora do adeus, podemos dizer que foram dez anos em que aprendemos a adjectivar e a positivar o Estado Geral da Nação; tivemos muita melodia, muita dança e poucos resultados governativos.
No “Eu confio em ti”, o povo até chegou a confiar em ti e no seu governo Senhor Presidente. Mas no “É contigo que dá certo”, parece que deu tudo, menos certo.
Por: Hélio Guiliche
Depois de um tumultuoso Comité Central, não podia haver melhor notícia para a Frelimo: o partido no poder não encontrou o que procurava (por um lado, um candidato à medida dos apetites do seu Presidente e por outro lado três/quatro sumidades à boleia de grupos bem identificados dentro do CC), mas encontrou o que precisava: um candidato outsider, jovem, sem nenhuma ligação nem ao passado da luta de libertação nem ao da Guerra dos 16 anos, capaz, portanto, de irradiar alguma esperança, e de se identificar facilmente com o eleitorado jovem nascido de meados dos anos 90 para cá, que anda desiludido com a postura errática da Frelimo.
Roque Silva era, indubitavelmente, o Candidato de Nyusi. O actual presidente levou o seu SG literalmente às costas e alistou Chapo (e Damião José e mais tarde Francisco Mucanheia e Esperança Bias, estes últimos já em desespero de causa) para fazer coreografia.
Roque Silva estava a ser preparado pelo Presidente Nyusi, em surdina, há algum tempo para a sucessão. As suas recentes viagens para encontros com os secretários-gerais dos partidos no poder na África do Sul, Tanzania, Angola e Zimbabwe, está claro agora, visavam tranquilizar os aliados regionais sobre a transição em Moçambique e faziam parte do roteiro da sua socialização na caminhada para a Ponta Vermelha.
Ou seja, Filipe Nyusi retardou a discussão interna da sucessão para dar vantagem ao seu secretário-geral, que ia em fase adiantada de campanha enquanto os concorrentes viviam na incerteza.
É também isto que explica a recusa do Presidente Nyusi de dar oportunidade ao Comité Central de apresentar os seus candidatos, como sucedeu há 10 anos, no processo que levou à sua ascensão ao poder, agarrando-se a uma interpretação muito restritiva dos poderes da Comissão Política e do Comité Central.
Nyusi estava consciente de que o Comité Central queria também jogar para a mesa os seus próprios candidatos, que resto já andavam em trabalhos de bastidores, com destaque para nomes notáveis como de Aires Ali, Basilio Monteiro, José Pacheco e Luisa Diogo.
Uma corrida com os galácticos candidatos do Comité Central baralharia, seguramente, os planos do actual presidente e tenho sérias dúvidas de que que quer Roque Silva quer Daniel Chapo tivessem alguma possibilidade real.
Filipe Nyusi fintou tudo isto esperançoso de que o Comité Central acabasse por seguir o seu enredo e engolisse o seu candidato.
Mas o Comité Central não seguiu o enredo do Presidente nem engoliu a sua principal escolha e, entre um mal manifesto e um outsider, virou-se para este último. Daniel Chapo, temos que o dizer claramente, não foi uma escolha planificada conscientemente pela Frelimo. Tirou partido das circunstâncias sui generis em que, sem se dar por isso, esteve metido. Foi uma espécie de voto de protesto aos apetites do Presidente Nyusi e um cartao vermelho à autoritária gestão de Roque Silva.
Mas foi curiosamente por entre estas linhas tortas que a Frelimo acabou por escrever direito. Chapo é a melhor escolha que poderia acontecer à Frelimo neste momento. Ele é jovem, inteligente, bem articulado, sereno, subiu a pulso na hierarquia do Estado, sem favorecimentos, desde o posto de administrador de distrito até (se a Renamo insistir em Ossufo Momade alguém dúvida agora que Chapo será o próximo presidente?) à Ponta Vermelha!
A Frelimo vive uma espécie de crise de 3a idade, resultante de não ter cuidado devidamente da renovação do seu envelhecimento ideológico. A Frelimo anda agarrada ao passado glorioso dos seus fundadores, tendo há algum tempo perdido alguma noção da realidade actual. Muitos dos jovens nascidos de meados dos anos 90 para cá, especialmente nas grandes cidades, seguramente não se sentem galvanizados com a actual orientação da Frelimo cujos dirigentes, alguns deles muito novos em idade, mas velhos em ideias, passando a vida a repetir slogans sem nenhum conteúdo.
E, de repente, sem ter feito muito por isso, a Frelimo dá de caras com o candidato perfeito para devolver o direito ao sonho, ao “futuro melhor” a uma geração literalmente abandonada pela governação.
Sem nenhuma ligação aos pais fundadores da Frelimo da gesta do 25 de Junho de 1962, nascido após a proclamação da independência e com pouca vivência da Guerra dos 16 anos, Chapo personifica a nova geração que desfrutou a vida adulta após o Acordo Geral de Paz (tinha apenas 14 anos em 1992).
Estamos, portanto, em presença de um jovem sem amarras ao tortuoso passado político deste país, sem as mágoas nem os rancores políticos, que caracterizaram parte significativa da nossa classe dirigente no pós-independência e, portanto, enquanto membro e líder da Frelimo, capaz de olhar para a Renamo e outras forças politicas como adversários politicos e não inimigos.
Chapo tem, assim, o perfil adequado para unir as correntes desavindas na Frelimo, tapar as enormes fissuras que este último CC deu a ver e trazer de volta ao país uma aura de esperança que o Presidente Nyusi prometeu, mas dolorosamente não cumpriu.
Mas para isso, Chapo terá de ter ideias próprias, não ser uma repetidora de ideias desgastadas das gerações passadas da Frelimo, distanciar-se da ideia de continuidade do Presidente Nyusi e fazer uma ruptura com o passado! Mas não apenas com palavras, como sucedeu Nyusi. Com medidas politicas viradas para as pessoas e geradoras de transformação social. Com medidas que desanuviem o actual ambiente carregado no país e permitam aos cidadãos desfrutarem dos seus direitos fundamentais básicos. Só assim no fim terá válido a pena ter um jovem na liderança do pais.
Chapo tem que ter a consciência de que as mudanças são dolorosas e as suas decisões não agradarão a todos no seu partido. Algumas mesmo o colocarão contra os seus camaradas. Mas terá de fazer uma escolha: ser um bom rapaz para as velhas e novas elites internas na Frelimo e ir pelo caminho da mesmice, ou romper verdadeiramente o cerco. Tem a palavra, Chapo!