No final da II Guerra Mundial, numa reunião a propósito do futuro da Alemanha derrotada, Josef stalin, o líder soviético/russo, questionou aos seus homólogos, britânico e americano, de que Alemanha se tratava, pois, para ele, a Alemanha, do final da guerra, não passava de uma mera noção geográfica. Depois de um puxa-puxa, os três líderes, das potências vencedoras, acordaram de que que se tratava da Alemanha do dia anterior em que iniciara a guerra. E para o caso, o dia 31 de Agosto de 1939. Vêem-me o episódio, a reboque dos apelos ao regresso à normalidade face a anormalidade à volta da COVID-19. E à moda de Stalin, pergunto: de que normalidade é tratada? Ou ainda: qual é a data referência?
Para o mundo, o que significa o regresso à normalidade? Será a normalidade da data anterior à declaração da COVID-19 como uma pandemia global? Ou a da data anterior ao reconhecimento da China que a COVID-19 existe? Ou ainda a da data anterior ao diagnóstico do primeiro caso na América? E em Moçambique? Serão as mesmas ou outras datas como a anterior ao início do estado de emergência ou a anterior ao anúncio das medidas iniciais contra a COVID-19? Até ao momento, ainda não ouvi, quer globalmente quer localmente, sobre a data da normalidade que se quer retomada. Contudo, é estranho que se queira o regresso ao passado. Terá o mundo deitado a máxima milenar de que para a frente é que o caminho? E, em Moçambique, a máxima “Avança não há recua” terá sido revogada? Não sei, não!
E para si? A normalidade devia ser considerada a partir de quando? E, a propósito da pergunta, fiz alguns telefonemas (na normalidade teria ido ao bar) sobre a data de regresso à normalidade. Eis algumas das respostas: “A data anterior ao meu casamento”; “A data anterior à criação da FRELIMO”; “A data anterior à indicação de Armando Guebuza para candidato presidencial da Frelimo”; “A data anterior ao primeiro ataque dos insurgentes”; “A data anterior à criação da Renamo”; “A data anterior ao fim da venda informal na via pública” e por ai em diante e cada um com a sua própria data de referência.
Todavia, na pós-pandemia, se o regresso à normalidade (do passado), a dita reabertura, for o entendimento mundial, então, o mundo não passará de uma mera noção geográfica que exigirá um pacto mundial para uma reabertura, mas que seja virada para o futuro. Assim foi com a Alemanha, no final da guerra, em 1945: desta não emergiu a Alemanha anterior ao dia 01 de Setembro de 1939, a data do início da II Guerra Mundial. Do mesmo jeito: o mundo pós-pandemia da COVID-19 não pode ser igual ao mundo anterior à pandemia (a tal normalidade), em particular na Pérola do Índico.
Acabo de escutar “A lirandzu”, interpretada por Mingas, e, mais do que a voz que me embevece, está a magistral guitarra a solo nas mãos de Sox, que me arrepia. Não é a primeira vez que oiço este trabalho, mas hoje faço-o numa circunstância particular, sob o silêncio imposto pela incerteza do virus, e assim o volume tem que ser o mais baixo possível, de modo a que possa ouvir os pássaros cantando lá fora, fazendo côro.
Na verdade foi um acaso ouvir “A Lirandzu”. O António Jamal é que me proporcionou essa viagem temporal, onde as coisas fluem sem cobrança, e foi bom, pois esta melodia vem esbater os sentimentos escurecidos, que o tédio muitas vezes cria. É por isso que estou aqui, no meu quarto, ouvindo Rádio de forma desinteressada. Captando com a memória, as palavras também desinteressadas, do Jamal, que comunica em mangas de camisa.
António Jamal parece-me um locutor que vai para frente de costas. Ele não consegue trabalhar sem o passado, que é o seu real fundamento. Sem o passado, Jamal não será nada. Se calhar é por isso que vou elegê-lo como um dos poucos radialistas da minha preferência. E hoje estou com ele, outra vez, neste silêncio imposto pelo virus inesperado.
No fundo o silêncio é uma terapia, mas assim é demais. Muito demais. O silêncio não pode ser uma obrigatoriedade, porque desta forma ele torna-se uma clausura. Até de lá de fora, já não me chega a vocalização das crianças a voltarem da escola, alegres por retornarem à casa onde lhes espera o convívio. E as crianças, como se sabe, são uma das faixas mais lindas do disco de vinil, que é o próprio silêncio. Elas são a molécola central do amor. E só há amor onde há o silêncio.
Mas o silêncio tem que ser livre, rústico, anárquico. Que entra em consonância com a nossa liberdade, e não é este o caso, em que o virus obriga-nos a recolher aos casulos, como lesmas que se escondem nas suas próprias carrapaças, temendo o perigo. Nós também temos medo, como as lesmas. Somos lesmas, com a diferença de que, depois de partirmos, não deixaremos baba. Nem a cinza dos nossos ossos.
Pouco antes do Presidente da República (PR) prorrogar o Estado de Emergência e por mais 30 dias, quase que apostava que ele não o faria. Estava convicto de que o PR usaria os mesmos motivos (grosso modo o fraco cumprimento) para não prorroga-lo ou, no mínimo, que o fizesse por menos tempo, e, em simultâneo, endurecesse as medidas. Destas, apostando, por exemplo, no uso obrigatório da máscara e no recolher obrigatório que fosse combinado com um ajuste do horário laboral (comércio, serviços e indústria) para horas (mais cedo) cujo efeito fosse o desejado no combate ao novo coronavírus, a COVID-19.
Não obstante ter sido, mais uma vez, contrariado pelo PR, embarquei na sua decisão e com a notável ajuda de um meu professor (finlandês) de Física do secundário. Este professor levantara, na altura, a hipótese de que o problema da reprovação de estudantes na sua cadeira estava na carga horária e não na inteligência, pois observara que os estudantes que reprovavam transitavam com distinção no ano de repetição. A solução, segundo o professor, passava pela duplicação da carga horária que era de duas ou três aulas por semana. Assim, duplicando a carga horária, incluir-se-ia, num único ano, a carga horária de dois anos. Ainda concordo com ele.
Neste contexto, extrapolando a proposta do meu professor, a prorrogação do Estado de Emergência corresponde a repetição da sua cadeira, simbolizando que desta vez (com a prorrogação) o povo passe para a categoria de bom estudante e por direito seja aprovado. De toda maneira, caso tivesse tido a oportunidade de assessorar o PR, na primeira leva do Estado de Emergência, teria o aconselhado a decidir de acordo com a sugestão do meu professor de Física, evitando assim a repetição do Estado de Emergência. Assim não foi e assim também não foi na decisão para a prorrogação. Nesta, teria o sugerido que o prorrogasse por 15 dias e que a carga das medidas fosse duplicada.
Contudo, nem sempre quem repetisse a classe ou a cadeira transitava. É a tal (e sempre) história de não haver regra sem excepção. E numa situação de reprovação pela segunda vez e sucessiva, o aluno era tratado por bi-repetente o que significava uma prescrição automática, materializada com a interdição do direito à matrícula/educação por dois anos. Nesta matéria o Estado era implacável.
Dito isto e findos os 30 dias da prorrogação do Estado de Emergência o que se espera em caso de mais uma reprovação do povo? Será feita uma segunda prorrogação? A partida, seguindo os ditames da prescrição automática, o povo sofreria uma suspensão por dois anos. Porém, em Moçambique, para a sorte ou azar do seu povo, a prescrição automática foi abolida e no seu lugar foi introduzida a passagem automática. Assim, a fechar, fica apenas por se aferir se a passagem automática é também aplicável na passagem da pandemia da COVID-19 pelo país.
Imagina alguém mandar um careca fazer totó. E, por sua vez, este tentar mesmo convencido que não se fazem penteados sem cabelo. O novo coronavírus não só está a revelar as ideias preconcebidas que muitos têm da ciência, como volta a colocar no cerne a questão da relação entre o poder, a ciência e o papel das universidades, particularmente em contextos intrinsecamente autoritários, mas com fachada discursiva democrática.
Uma das mentes artísticas mais criativas que Moçambique teve foi a do falecido músico Jeremias Nguenha. Considerado um músico de intervenção e crítico do poder, Nguenha numa das suas músicas, “La famba bicha?” (A fila anda?), insinua que o governo manda-nos pentear a careca, (ma hi fenhissa Pandla), em alusão à ideia de que as suas ações governativas, paradoxalmente, perpetuam a miséria.
Nguenha refere-se aos lamentos comuns de cidadãos que clamam pela intervenção do governo para resolver os problemas da vida, da cesta básica ao desemprego, do transporte, da saúde, e por aí em diante. Este tipo de clamor patenteia uma conceção política paternalista que se tem do estado e do governo e que subalterniza a ação pró-ativa do indivíduo na prossecução do seu bem-estar dentro dos limites do contexto legal e institucional garantidos pelo estado.
O que proponho nesta breve reflexão, pelo contrário, é ilustrar que a excessiva mão interventiva do governo na vida da universidade, em particular a pública, e a conceção popular e instrumentalista da ciência, pode ser uma combinação perniciosa e perpetuar a miséria da universidade como instituição capaz de produzir conhecimento na medida em que pode impedi-la de cumprir com a sua função primordial de impulsionadora da ciência.
A noção de ciência, neste caso, não é apenas aquela hoje pouco propalada cujo interesse é intrínseco a ela própria, um fim em si mesmo, isto é, a produção do conhecimento para o (auto) esclarecimento. Mesmo quando concebida na sua versão mais aplicada, assente na ideia instrumental de resolução de problemas da sociedade, a ciência, ainda assim, não obedece a urgência de expedientes políticos imediatistas.
O novo coronavírus dá-nos algumas lições sobre o tempo da ciência. Todo mundo quer uma vacina para ontem. Mas esta, ou outra terapia qualquer, só vai surgir quando cumpridos todos os preceitos necessários da descoberta e/ou invenção técnico-científica. Isso é inexorável e não há tempo político que vai alterar esse facto.
A ciência opera dentro do seu próprio caos normal expurgando os ruídos da pseudociência, da urgência de expedientes políticos, em regimes democráticos ou autoritários, populistas ou circunspectos. O regime da ciência é a prossecução incessante da objetividade pelo método sujeito a falibilidade das premissas num perpétuo exercício de tentativa e erro.
A inaptidão de dar respostas instantâneas aos problemas da vida não é devido à insensibilidade, incompetência ou insubordinação dos cientistas. Antes, pelo contrário, é inerente ao próprio processo do que define a ciência como um tipo conhecimento que procede pelo método.
Quase todo cientista gostaria de descobrir a solução, seja ela a vacina ou outra forma de conter ou mesmo eliminar o novo coronavírus imediatamente. Mas isso, infelizmente, não depende apenas da boa-vontade, por maior que esta seja.
A maior parte das invenções da ciência que tiveram impacto significativo na solução de grandes ameaças à existência humana – por exemplo, doenças como a tuberculose, que dizimaram milhares de pessoas – surgiram, se não por acaso, de programas de investigação, de investimento intelectual e financeiro avultado, mas que, acima de tudo, se definiram pelo tempo da ciência e não pelo tempo da política.
O tempo da ciência não é igual ao tempo da (urgência) política. As descobertas científicas, mesmo quando instantâneas, sempre foram imprevisíveis e contra a corrente do pensamento e do tempo politicamente correto. A ciência vive e convive com e da incerteza, enquanto a política transaciona a certeza.
A nossa universidade seria mais universidade se não recebesse recados – directos ou indiretos – do Presidente da República e do seu governo sobre o que fazer ou não fazer, mesmo quando em tempo de emergência.
A capacidade de uma universidade fazer seja o que for de forma significante para a ciência, e deste modo para a sociedade, é diretamente proporcional a sua autonomia de decidir o que, quando e como fazer, sem receber orientações (ordens) do poder.
Aliás, quanto mais recados e orientações a universidade receber do chefe de estado e do governo menos universidade ela se torna e menos capacidade terá de produzir ciência – que, eventualmente, poderia ser de alguma serventia para o governo e para a sociedade.
A relação perniciosa entre a autoridade política, a autonomia e liberdade académica não ocorre apenas entre a universidade e o governo. Dentro das próprias universidades, em Moçambique, prevalece um modus operandi e uma lógica perversa na qual a autoridade hierarquicamente estabelecida através das estruturas do poder académico, desde os reitores até aos chefes de departamentos, quer se impor como saber.
Agora, faço aqui um parêntesis para dizer que, a tendência de os governos solicitarem a intervenção da universidade na solução de problemas práticos existe desde que a universidade surgiu como instituição.
A preeminência do discurso neoliberal intensificou essa tendência e, em muitos casos, condicionou o financiamento da universidade à sua submissão a agendas políticas imediatistas, muitas vezes, perniciosas a universidade.
No seu discurso de 29 de Abril, no qual o chefe de estado prorroga a estado de emergência devido a doença causada pelo novo coronavírus (COVID-19), deixou um recado no sentido de “Promover uma maior participação das instituições de ensino superior e de pesquisa no combate a esta pandemia”.
O que o presidente queria dizer com esse recado é algo que só podemos conjeturar. Não houve elaboração. Houve determinação. Em termos práticos, o que é que a universidade e as instituições de pesquisa devem passar a fazer ou deixar de fazer? Como seria ou será feita a promoção da sua participação no combate a pandemia? Como no primeiro discurso que decretou o estado de emergência, o presidente descreveu a floresta e deixou para o governo a hermenêutica tarefa de descrever as árvores da floresta, através da especificação das medidas de confinamento social.
Pode ser que o governo, através do ministério que tutela o ensino superior, ainda nos venha com os detalhes de como será feita a promoção acima aludida. A história, porém, mostra, que devido a nossa cultura política e académica, assente na submissão a autoridade do poder político e administrativo confundido como autoridade do saber, sempre que o presidente ou qualquer membro do governo envia recados às Instituições de Ensino Superior (IES) sobre o que devem fazer, esses atos de autoridade e de exercício de poder criam uma série de externalidades negativas para as instituições.
Um simples anúncio da visita do chefe de estado à universidade é capaz de paralisar a instituição por meses para que esta se envolva em atos preparativos da visita. Vimos isto com todos os chefes de estado desde o barbudo até o atual. Diante duma eminente visita precedem-se semanas, meses de dubiedade e quebra de rotinas da vida académica com danos incalculáveis, que, paradoxalmente, contrapõem a capacidade de a instituição responder as expetativas inflacionadas de resultados práticos do próprio poder.
É frequente esses anúncios de visitas ou recados sob como as IES devem se portar nunca serem acompanhadas de um cheque. As IES devem se desdobrar em manobras orçamentais para poder efetuar realocações de última hora para poderem deixar a impressão de que fazem o que de facto não fazem. Organizam-se exposições de “estudos”, e toda uma encenação teatral para dar a impressão ao chefe de que a universidade, com efeito, é e faz o que uma universidade “normal” faz.
Passado o simulacro teatral durante a visita, a universidade volta a sua vida desusada de lugar de instrução onde a autoridade do docente se impõe ao estudante por via das aulas. A pesquisa é uma miragem. Mas também, é comum as universidades, pressionadas, prometerem, em nome da ciência, cumprir funções e operar prodígios anticientíficos como transformar uma ilha, com potencial turístico e de conservação, num laboratório de revolução agrária.
A pesquisa para lidar com problemas como o novo COVID-19, então, na conceção popular de ciência, como instrumento para solução de problemas imediatos, e com o tipo de investimento que se requer, calculado em milhares de milhões de dólares, é simplesmente uma ilusão no nosso contexto, não importa que tipo de promoção se pensa fazer de acordo com o recado do chefe.
Um centro de biotecnologia de uma IES nacional, querendo mostrar pro-atividade na investigação Covid-19@versitária lançou-se numa aventura de fazer um inquérito de opinião online sobre o COVID-19. O inquérito tinha sérios problemas metodológicos não só por conter perguntas tendenciosas, mas pelo facto também de qualquer um que acedesse ao link do mesmo, na China ou a cochinchina, podia responder. Portanto, a população e a base da amostra não permitem nenhuma fiabilidade dos dados e estava, a partida, comprometida. No entanto, não me surpreenderia que o resultado desse inquérito fosse objeto de consideração para tomada de decisões.
O problema é mais grave ainda do que se pode pensar. Noutros contextos, centros de biotecnologia, como esse, ou têm equipas multidisciplinares que envolvem especialistas que dominam estudos sociais, incluído os procedimentos estatísticos para inquéritos, ou cingem-se a fazer estritamente o que é de sua competência e domínio. Mas a sede de mostrar que se faz algo para responder a expectativa dos políticos internos e externos a universidade expõe o caricato e este ainda é celebrado como investigação com epíteto de científico.
O financiamento à pesquisa nas rúbricas do orçamento do estado para as IES públicas é nulo. O pouquíssimo que se faz de investigação é com base em fundos externos de programas de cooperação internacional ou mobilizados por meia dúzia de docentes e investigadores também sujeitos as sevícias do poder arbitrário e discricionário dos seus chefes imediatos no que tange a gestão dos fundos de pesquisa. Este aspeto é uma montra microcósmica do problema estrutural da relação entre a ciência e o poder exacerbado por um contexto institucional que propícia a arbitrariedade do poder administrativo na academia sobre a autoridade científica.
O novo coronavírus oferece uma ocasião sui-generis para desnudar e expor fenómenos e comportamentos sociais que noutras circunstâncias requereriam muita destreza para os elucidar. Se por um lado pode ser (ir)realista esperar que as IES produzam a ciência para combater a pandemia, devido as condições estruturais nas quais operam, por outro lado, é preciso reconhecer que mais do que as limitações de ordem financeira, o maior obstáculo reside na incapacidade destas se libertarem do efeito perverso que a relação direta com a autoridade política, no geral, e administrativa a nível institucional, em particular, impõe.
Um testamento disto é a forma como, em Moçambique, o poder político, concretamente o governo se relaciona com as IES, em particular as universidades públicas. Não há dúvida que a universidade pública em Moçambique é, em quase todos sentidos, totalmente dependente do governo.
Desde a decisão da sua criação, passando pelos orçamentos para seu funcionamento até as ações mais básicas que definiriam a imprescindível autonomia institucional e liberdade de pensamento, como uma condição existencial, a universidade espera, recebe e age em função das orientações superiores do governo.
Esta condição de dependência da universidade não é apenas por comissão do governo, mas por omissão, demissão e submissão das suas lideranças aos pejamentos da política partidária. E não se submetem por falta de consciência da perversão, mas por uma questão de sobrevivência e manutenção nas posições de poder.
O carácter de instituição de conhecimento sucumbe a lógica dum poder que transvia a própria forma de estar da universidade, tornando a como outras instituições do estado, que agem, estritamente, em função das diretrizes do governo, mesmo naquelas funções que por definição compete a universidade elucidar ao governo.
A ligação da universidade com o governo corporiza uma dimensão problemática da relação entre o poder e a ciência. Em Moçambique, pensa-se e age-se como se quem detivesse o poder o fizesse por ciência. Por outras palavras, confunde-se poder com saber. Até o adágio segundo o qual o saber é poder, no nosso contexto tem outro sentido. Poder é saber, e essa tem sido a nossa perdição.
Por isso, paradoxalmente, não é a universidade que aconselha o governo, em nome e com base na ciência, pelo contrário, é o governo na sua sacrossanta erudição, radicada no poder, que financia, aconselha e ordena a universidade. Não há ciência, digna desse epíteto, que resista a esta lógica.
A relação do poder (político) com o saber é mistificada. Não sei qual é a origem desta constelação. Suspeito que seja mais uma daquelas heranças dos tempos gloriosos da revolução, que nos ensinaram a venerar o chefe como o sábio.
Aquele “é ou, não é?”, retórico, não era de quem tinha dúvidas (apanágio da mente ciente da falibilidade), mas de quem buscava o conforto nas massas para aderir as suas próprias convicções. O coro popular “éeee” era o aceno de quem não tinha outra opção senão concordar com o chefe, porque ser chefe em Moçambique é sinónimo de saber.
Quem ousaria dizer: - não éeee! Esse não é, de discórdia pensante, ficaria esmagado no uníssono estrépito concordante da massa popular: éeeee! Ou seria identificado e punido pelo ingressado forçado nas listas de reacionários ontem bilibilizados[1], ou hoje mutilados em seus membros inferiores.
Estou ciente que só alguns, concidadãos meus, entenderam as seções alegóricas do texto. O que quero dizer é que por razões históricas e que me parecem associadas a uma das heranças da revolução socialista em Moçambique a relação com o saber passou a ser desvirtuada com a ideia de que o chefe é o todo clarividente e tem acesso privilegiado ao saber.
Esta relação ocorre em todos os níveis da sociedade onde a estrutura de poder e da relação do poder com o saber de manifesta. Na família, é suposto o pai saber mais que todos, incluindo a esposa e os seus descendentes. Portanto, um poder e saber androgénico e gerontocrático. No bairro, o chefe do bairro quarteirão, e das dez (10) casas pode e sabe mais que os seus concidadãos. Na universidade, a hierarquia administrativa superior pode e sabe mais que os docentes, investigadores e toda uma legião de estudantes. Na faculdade, o diretor é a incarnação do monarca da academia. Na sala de aula, o docente é o próprio soberano do saber.
Em Moçambique ser chefe é, praticamente, sinónimo de saber. A ideia de consulta, aos especialistas e aos pares, é, muitas vezes, uma questão teatral de legitimidade de rebanho e de ilusão democrática da busca de consenso deliberativo. É uma espécie de um “é ou não é”, onde ninguém ousaria dizer, discordante: - não é, sob pena de virar Capim! Aqui também só alguns Mozes entenderam a metáfora!
A relação do poder com o saber, em Moçambique, lembrar-me a famosa série “As Aventuras do Barão de Münchhausen”, colecionadas por Rudolph Erich Raspe e publicadas em Londres em 1785. O Barão de Münchhausen foi um personagem Alemão que se contrabalança entre a realidade e a fantasia em seu cosmos próprio, onde enfrenta os mais diversos perigos, e faz fugas impossíveis. Uma das estórias mais conhecidas relata a fuga dum pântano do qual o Barão se afundara em cima do seu cavalo, tendo conseguido retirar-se ao puxar a própria peruca. Orientar as IES moçambicanas a combater o COVID-19, sem (re)pensar e considerar as condições institucionais de funcionamento, os parcos recursos de investigação, e a relação de e com o poder, é mandar fazer totó a quem não tem cabelo sem emprestar uma peruca!
Esta gente manda-nos pentear a careca, como dizia o nosso saudoso músico!
Patrício Langa
Sociólogo
[1] Referência a música de Simião Mazuze (aka Salimo Mohamed) Bilibiliza sobre os campos de reeducação dos “reacionários” da revolução e da companha operação produção contra “indolentes” urbanos.