Acabo de escutar “A lirandzu”, interpretada por Mingas, e, mais do que a voz que me embevece, está a magistral guitarra a solo nas mãos de Sox, que me arrepia. Não é a primeira vez que oiço este trabalho, mas hoje faço-o numa circunstância particular, sob o silêncio imposto pela incerteza do virus, e assim o volume tem que ser o mais baixo possível, de modo a que possa ouvir os pássaros cantando lá fora, fazendo côro.
Na verdade foi um acaso ouvir “A Lirandzu”. O António Jamal é que me proporcionou essa viagem temporal, onde as coisas fluem sem cobrança, e foi bom, pois esta melodia vem esbater os sentimentos escurecidos, que o tédio muitas vezes cria. É por isso que estou aqui, no meu quarto, ouvindo Rádio de forma desinteressada. Captando com a memória, as palavras também desinteressadas, do Jamal, que comunica em mangas de camisa.
António Jamal parece-me um locutor que vai para frente de costas. Ele não consegue trabalhar sem o passado, que é o seu real fundamento. Sem o passado, Jamal não será nada. Se calhar é por isso que vou elegê-lo como um dos poucos radialistas da minha preferência. E hoje estou com ele, outra vez, neste silêncio imposto pelo virus inesperado.
No fundo o silêncio é uma terapia, mas assim é demais. Muito demais. O silêncio não pode ser uma obrigatoriedade, porque desta forma ele torna-se uma clausura. Até de lá de fora, já não me chega a vocalização das crianças a voltarem da escola, alegres por retornarem à casa onde lhes espera o convívio. E as crianças, como se sabe, são uma das faixas mais lindas do disco de vinil, que é o próprio silêncio. Elas são a molécola central do amor. E só há amor onde há o silêncio.
Mas o silêncio tem que ser livre, rústico, anárquico. Que entra em consonância com a nossa liberdade, e não é este o caso, em que o virus obriga-nos a recolher aos casulos, como lesmas que se escondem nas suas próprias carrapaças, temendo o perigo. Nós também temos medo, como as lesmas. Somos lesmas, com a diferença de que, depois de partirmos, não deixaremos baba. Nem a cinza dos nossos ossos.