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Um avanço democrático com elevados riscos para a Renamo

 

Por Ericino de Salema[1]

 

*  Actual presidente da Renamo se destaca como “homem de Estado” ao aceitar o Estatuto de Líder da Oposição, mas corre o risco de ver o seu partido transformado em “organização de massas” do partido no poder

 

*  Ossufo Momade perdeu, ainda que ilegalmente, o direito de fixar o seu próprio salário (privilégio que Armando Guebuza concedera a Afonso Dhlakama em 2014), mas ganhou direito a subsídio de reintegração...

 

Embora a Constituição da República de Moçambique (CRM) já conferisse um certo estatuto ao segundo candidato presidencial mais votado, ao considerar-lhe membro de pleno direito do Conselho de Estado, em termos de legislação ordinária nada havia no país até finais de 2014, momento no qual foi aprovado o Estatuto Especial do Líder do Segundo Partido com Assento Parlamentar, através da Lei número 33/2014, de 30 de Dezembro, que efectivasse tal situação.

 

Finalmente regulamentada no passado mês de Maio (mais de cinco anos depois da sua aprovação), através do Decreto número 27/2020, de 8 de Maio, o Estatuto Especial do Líder do Segundo Partido com Assento Parlamentar – que é, na prática, Estatuto do Líder da Oposição, apesar de o legislador ter-se escusado a usar essa terminologia – é visto, nalguns círculos, como uma “almofada política” visando, supostamente, acomodar Ossufo Momade, o líder da Renamo, qual sucedâneo do finado Afonso Dhlakama, que terá deixado claro, desde o início, que não aceitaria aquele estatuto.

 

Seja como for, o que é facto é que a outorga de estatuto especial ao líder da oposição ou do segundo maior partido com assento parlamentar e que não faça parte do governo não é algo exclusivo de Moçambique, mas uma prática em quase todas as democracias dignas do mundo, sendo ele representante de uma franja significativa da população e, por isso, merecedor de dignidade por parte dos próprios estados. Contudo, o contexto em que o mesmo surge[2] e se consolida em Moçambique há-de estar a suscitar as desconfianças que existem à volta do mesmo[3].

 

No Reino Unido da Grã-Bretanha e no Canadá, por exemplo, o líder da oposição, que deve ser sempre um parlamentar, tem um estatuto especial. No Reino Unido, o líder da oposição ganha anualmente perto de 145 mil libras esterlinas, o equivalente a pouco mais de 12 milhões de meticais, quase o dobro do salário de um parlamentar ordinário. No Canadá, a mesma figura leva anualmente para casa pouco mais de 260 mil dólares canadianos, o equivalente a cerca de 13 milhões de meticais, o mesmo que aufere um membro do governo.

 

Na África do Sul, o líder da oposição leva anualmente para casa cerca de 1.600.000,00 randes, o equivalente a cerca de sete milhões de meticais. Além do salário, possui uma panóplia quase infindável de benefícios e regalias, incluindo, por exemplo, cerca de 100 viagens pagas por ano, mobiliário para o seu gabinete de trabalho, assessoria paga pelo Estado, viagens pagas para os seus dependentes, acomodação luxuosa quando em actividade parlamentar e seguro de acidentes pessoais.

 

 O regime jurídico do Líder da Oposição é, na verdade, aplicável “ao dirigente do partido da oposição que, por acórdão do Conselho Constitucional de validação e proclamação dos resultados das eleições gerais, seja considerado o Segundo Partido Mais Votado”[4], num quadro em que “É Líder do Segundo Partido com Assento Parlamentar aquele que, nos termos dos respectivos estatutos, reconhecidos pelo órgão competente do Governo, tenha sido legitimamente designado seu dirigente máximo”[5].

 

Se o diploma legal que aprova o Estatuto do Líder da Oposição estabelece que “o primeiro cidadão que beneficiar do presente estatuto tem o direito de fixar a [sua] remuneração e os subsídios correspondentes, nos termos da lei”[6], o regulamento do respectivo estatuto vem estabelecer, em moldes diversos, que “o Líder do Segundo Partido com Assento Parlamentar tem direito à remuneração equiparada à da função de Vice-Presidente da Assembleia da República”[7].

 

Sendo pouco crível que Afonso Dhlakama, que era líder da Renamo aquando da aprovação e entrada em vigor da lei, ainda que carecesse ainda de regulamentação, tenha escolhido a sobredita remuneração mensal por equiparação – até porque parece não restarem dúvidas de que ele abdicou dessas benesses –, o que é certo é que acha-se evidente um downgrading de Ossufo Momade…e com uma clara violação à técnica jurídica e à hierarquia das leis, não sendo aceitável que um regulamento contrarie uma lei, que lhe é superior.

 

Mesmo assim, e ainda que Ossufo Momade mantenha o amplo leque de direitos e regalias constantes do Estatuto do Líder da Oposição – tendo, aliás, até conseguido de bónus o direito ao “subsídio de reintegração”, tal como se desenvolverá mais adiante –, para algumas situações concretas ele é equiparado aos membros do Governo (ministros).

 

Tal é o caso, por exemplo, da viatura de trabalho, estabelecendo o Estatuto do Líder da Oposição o seguinte: “o Líder do Segundo Partido com Assento Parlamentar tem direito (…) a uma viatura protocolar da marca, cor, série e cilindradas idênticas aos dos membros do Governo”. Do parque automóvel de Ossufo Momade, constam ainda uma viatura ligeira, para o seu “expediente residencial”, além de uma outra para alienação.

 

Dignidade genuína?

 

Se, tal como dissemos acima, a atribuição de estatuto especial ao líder da oposição é algo por demais normal em democracias avançadas, em Moçambique tal é visto como tendo o potencial de enfraquecer o segundo maior partido da oposição, probabilidade que há-de estar a ser considerada tendo-se como base a “jurisprudência” fixada por Afonso Dhlakama, alegadamente de recusar tal estatuto.

 

“As pessoas confundem esse estatuto como se fosse para Dhlakama. Por isso andam rumores de que fui comprado por uma casa e salário…mas não é isso que eu quero. Eu quero uma democracia efectiva no país”, terá assim reagido o falecido líder da Renamo, quando interpelado a propósito por jornalistas na cidade da Beira[8]. Dias depois, em artigo intitulado “AR legaliza instrumento de golpe eleitoral”, o CanalMoz referiu que “Dhlakama já disse que não quer tal estatuto”[9].  

 

Dada a relevância política em ser-se oposição oficial, num contexto em que o líder do partido político nessa condição é o líder formal da oposição, há até partidos políticos que aplicam-se ao máximo para conseguirem esse desiderato, tendo presente, à partida, que ganhar eleições é-lhes algo impossível, pelo menos em certa eleição em concreto. É o que se viu, por exemplo, com o partido Economic Freedom Fighters (EFF) nas eleições de 2019, na vizinha África do Sul, nas quais o seu objectivo cimeiro era destronar o Democratic Alliance dessa posição. 

 

A essência do que significa liderar a oposição é nestes termos descrita pelo político neo-zelandês Don Brash, na altura líder do National Party:

 

“O principal papel da oposição é questionar o governo do dia e pô-lo a prestar contas ao público. O partido que é oposição oficial representa uma alternativa ao governo, sendo responsável em desafiar as políticas do governo do dia e em produzir políticas alternativas onde tal se mostrar apropriado”[10].

 

Não sendo barato fazer política a sério e sendo os partidos políticos plataformas por excelência para a contínua participação dos cidadãos na gestão da coisa pública, é por isso que todos os partidos com assento parlamentar recebem dos governos dos seus países, Moçambique incluso, recursos financeiro para as suas actividades políticas. O que se assume como líder da oposição recebe muito mais quando comparado com os demais, competindo-lhe fazer essas políticas alternativas. 

 

Comumente, a oposição oficial possui acesso privilegiado aos órgãos públicos de comunicação social, para neles fazer réplica política. Em Moçambique, a CRM[11] reconhece esse direito aos partidos representados na Assembleia da República (AR), mas o mesmo sempre se manteve letra morta, supostamente, tal como tem alegado, ao longo dos anos, a Televisão de Moçambique (TVM) e a Rádio Moçambique (RM), por carecer de regulamentação. Estranhamente, nem na lei que aprova o Estatuto do Líder da Oposição, muito menos no decreto que a regulamenta, tal se acha finalmente acolhido, o que é uma oportunidade perdida para a Renamo fazer política a sério.

 

Condições teóricas para a Renamo melhorar, mas…

 

Numa altura em que a sociedade ainda digere as notícias sobre os subsídios de reintegração que são legalmente atribuídos a deputados e outros governantes em Moçambique, ainda que em desarmonia com o princípio constitucional de justiça social, o decreto que regulamenta[12] o Estatuto do Líder da Oposição trás uma “grande inovação”: a atribuição, ao político que seja dirigente máximo do segundo partido mais votado, de um subsídio de reintegração.

 

O mesmo “corresponde a 75% do vencimento base, por cada doze meses de exercício efectivo do cargo, desde que a perda da qualidade de Líder do Segundo Partido com Assento Parlamentar não tenha sido fundada em condenação à pena de prisão maior, pela prática de crime doloso[13]”.

 

Além de remuneração equivalente à de Vice-Presidente da AR, subsídio de representação (20% do salário base), meios de transporte, subsídio de comunicação e viagem em primeira classe, figuram na lista das regalias do líder da oposição moçambicana, que neste momento é Ossufo Momade:

 

§  Gabinete de Trabalho, alocado, equipado e mantido pelo Ministério da Economia e Finanças (MEF), com pessoal de confiança (assessor, assistente financeiro, secretário particular, motorista e estafeta) pago por fundos públicos;

 

§  Residência oficial, igualmente alocada, equipada e mantida pelo MEF, de que faz parte pessoal de apoio (motorista, cozinheiro, servente de mesa, servente de limpeza, mainato e jardineiro) pago pelo Estado;

 

§  Assistência médica e medicamentosa para o líder da oposição como tal, bem assim para o seu cônjuge e filhos menores e incapazes;

 

§  Regime especial de segurança e protecção, que sejam exclusivamente garantidos pela Polícia da República de Moçambique;

 

§  Ajudas de custo, em caso de deslocações nas missões de serviço do Estado, dentro ou fora do país, incluindo as incumbidas pelo Chefe do Estado.

 

Quanto às contratações do acima referido pessoal de confiança, o regulamento do Estatuto do Líder da Oposição diz que os mesmos são engajados por via de contrato por tempo certo, nos termos da Lei do Trabalho, para um período máximo de cinco anos, carecendo esses contratos de visto do Tribunal Administrativo, do que ressalta mais um problema jurídico: a prazo certo, a Lei do Trabalho não permite contratações por períodos superiores a dois anos, renovável uma única vez, o que perfaz um máximo de quatro anos[14].

 

Embora existam os que olhem com desconfiança à flexibilidade de Ossufo Momade de se alinhar com o que sucede por outras geografias, o facto de ele não estar a associar a questão da consolidação do Estatuto do Líder da Oposição com a regulamentação, por exemplo, de institutos jurídicos que possuem dignidade constitucional há cerca de 30 anos, como a réplica política, pode dar razão a leituras tais, sobretudo num quadro em que, como que à guisa de um clientelismo dissimulado, até ganha o direito ao subsídio de reintegração, mas sem se movimentar substancialmente no sentido de essas condições materiais se traduzirem em investimento qualitativo da democracia moçambicana.

 

Registos em nosso poder indicam que a única vez que a Renamo – que em todas as eleições legislativas realizadas no país foi sempre, formalmente, o segundo partido mais votado – constituiu, de forma sistemática, um ‘Governo Sombra’, qual apanágio da oposição oficial, foi em princípios de 2005, meses depois do recrutamento, a partir da academia, de políticos como Eduardo Namburete, Ismael Mussá, João Colaço e Manuel de Araújo.

 

Contudo, Ossufo Momade tem uma soberba oportunidade de desmentir os seus críticos, transformando a Renamo numa oposição cada vez mais profissional, tendo nisso sempre presente os riscos associados ao Estatuto de Líder da Oposição, sob pena de, sem se aperceber, tornar o partido de que é dirigente máximo na mais nóvel organização de massas do partido no poder, a Frelimo.

 

Eis algumas das acções que, a nosso ver, Ossufo Momade deveria considerar urgentemente, para honrar a contribuição dos moçambicanos...até com subsídio de reintegração:    

 

1.           Ossufo Momade deve tornar público o Plano de Actividades e Orçamento para o seu gabinete, com o que estará a efectivar a prestação de contas aos contribuintes, em geral, e, em particular, aos moçambicanos que votaram em si e nele acreditam como “alternativa política” para Moçambique. Idealmente, poderia, mesmo com recurso às Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), elaborar o referido plano de forma participativa;

 

2.           Sendo, enquanto líder da oposição, materialmente um servidor público, Ossufo Momade deve ter presente que lhe são aplicáveis as normas éticas constantes da Lei de Probidade Pública, além, naturalmente, das normas de gestão de fundos públicos, devendo ter presente que agir em sentido desconforme com instrumentos tais pode ser-lhe, um dia, politicamente desvantajoso e fatal;

 

3.           Ossufo Momade deve considerar fortemente a formação de um ‘Governo Sombra’, que seja, de resto, responsável pela execução do seu “programa quinquenal”, com o que estará a fazer oposição política de forma sistemática e justificando os fundos públicos que lhe são alocados entanto que líder da oposição;

 

4.         Por outro lado, há que cuidar da aprovação de uma Lei de Réplica Política, com a qual passaria, por exemplo, a ter acesso aos media públicos, sucedendo o mesmo com os membros do seu ‘Governo Sombra’;   

 

5.           Desenvolver uma agenda que mostre que o estatuto a ele atribuído não é uma dádiva do poder do dia, mas um processo institucional de consolidação da democracia.

  

[1] O autor é Director Residente do EISA em Moçambique. O texto foi retirado do Policy Brief 6 do EISA, publicado ontem, 9 de Junho.

 

[3] Reinstalação nos meios urbanos de Ossufo Momade, presidente da Renamo, no âmado do processo de Desarmamento, Desmobilização e Reintegração (DDR).

 

[5] Número 2 do artigo 2 da Lei número 33/2014, de 30 de Dezembro.

 

[7] Artigo 2 do Decreto número 28/2020, de 8 de Maio.

 

[11] Artigo 49.

 

[13] Número 2 do artigo 10 do Decreto número 28/2020, de 8 de Maio.

 

segunda-feira, 08 junho 2020 08:28

Tomar "gonazololo" no momento do orgasmo

Nampula é a província mais populosa do país; é a segunda província com maior densidade populacional (perdendo apenas para a cidade de Maputo); é uma província de alta mobilidade comunitária e urbana; é uma das províncias com maior mobilidade e presença de estrangeiros (cerca de 10 por cento dos residentes são africanos dos grandes lagos); é um corredor nacional e regional (marítimo, terrestre e aéreo); possui um dos maiores centros de refugiados do país e da região; recebe refugiados de guerra de Cabo Delgado; tem uma população maioritariamente analfabeta; é um terreno sensível a boatos; é uma província predominantemente da oposição (onde quase tudo o que vem do governo se confunde com ordens do partido FRELIMO e a tendência é não acatar para não parecer frelimista); é uma província culturalmente com forte solidariedade comunitária; etecetera.

 

Só agora, depois de estarmos na contaminação comunitária da Covid-19, o governo central, na pessoa do ministro da Saúde, diz que vai reforçar a vigilância a nível da cidade e da província de Nampula e, por isso, vai instalar um laboratório de testagem na província. Isto é o verdadeiro espírito moçambicano de deixar tudo para a última hora. Espírito de bombeiro. 

 

Isso significa que estamos a viver uma Emergência sem Estado. O Estado está a correr atrás da Emergência. O Estado está perdido. Não se explica que Nampula, Niassa, Cabo Delgado (até Zambézia) ainda estejam dependentes do laboratório de Maputo quase três meses depois ser detectado o primeiro caso aqui na região. Nampula é capital regional e tem tudo para ter um laboratório também regional. Aquela triste e vergonhosa notícia do primeiro óbito que teve o seu resultado cinco dias depois de morrer é obra da preguiça do Estado. Esses números volumosos de casos que estamos a ter na província também têm a ver com isso. A transmissão comunitária que hoje se vive em Nampula é o resultado dessa apatia. Assim não dá!

 

Será que o governo não fez essa leitura antes de entrarmos para a contaminação comunitária?! Será que a comissão científica não analisou isso e mais outras características?! Será que esses números que estamos a ter em Nampula são, de facto, surpreendentes de todo?! Será que é mesmo novidade que Nampula iria "ganhar"?!

 

E agora!!! Será que não é tarde demais?! Um laboratório de testarem da Covid-19 no fim do terceiro "round" do Estado de Emergência vai ajudar?! Ainda vamos a tempo de conter essa contaminação?! Ou é como aqueles cotas que esquecem de tomar a viagra e só se lembram no meio do jogo. Aqueles que tomam "gonazololo" no momento do orgasmo, quando tudo está a tremer, ambos com olhos de bagre morto, pernas bambas e gemidos de hienas no cio. Só para dizer que tomou!

 

- Co'licença!

segunda-feira, 08 junho 2020 07:34

Rua Oprimida

Se as ruas pudessem votar seria bem interessante. Conheço uma rua da cidade de Maputo,  que de tão oprimida, nem na oposição votaria. Essa rua, na verdade uma avenida, é a Ahmed Sékou Touré (o nome de um antigo presidente da Guiné-Conacry), a outrora e colonial Afonso de Albuquerque, o nome de um expansionista português que chegara a Governador/Vice-rei da índia portuguesa. Para quem é/foi morador ou com o local de trabalho nesta avenida não hesitaria em subscrever o presente texto, pois sabe quão a Ahmed Sékou Touré é oprimida por dentro e pelos seus pares vizinhos. Sigam-me.  

 

A partida, as fronteiras da Av. Ahmed Sékou Touré - inicia na Av. Julius Nyerere, antigo presidente tanzaniano, e finda na Avenida da Tanzânia - significam que se está ainda em Nachingwea, o campo de treino militar da FRELIMO na Tanzânia. Logo, não se está independente na Av. Ahmed Sékou Touré. É a primeira opressão. A segunda situa-se no início da avenida e do lado esquerdo para quem dá costas à Nyerere (com todo o respeito). Trata-se de um edifício das finanças que, trocado em miúdos, é o símbolo de impostos (e quem gosta de os pagar?). Na mesma posição e do lado direito está localizada o Palácio dos Casamentos que é a terceira e sinistra (para alguns) opressão. Isto para citar, de memória, alguns exemplos.  

 

A opressão, na Av. Ahmed Sékou Touré, não se circunscreve apenas ao local de nascimento. Existe uma outra, a que me interessa, tão presente, devastadora e sufocante em toda a sua extensão. Falo da opressão movida por duas avenidas paralelas e adjacentes. São a Eduardo Mondlane, 1º presidente da FRELIMO, e a 24 de Julho, o dia das nacionalizações. As avenidas, entre outras e ditas protocolares, por onde passa o poder, soltando ruidosas sirenes que de tanto vociferarem, dos dois lados da avenida, e vezes sem conta em simultâneo, até ameaçam, à milhas, a saúde dos tímpanos dos patronos da rua quer os do presidente guinéu, no sossego do seu túmulo, lá para as bandas de Conacry, a capital da Guiné do mesmo nome, quer os do Governador e Vice-rei da índia portuguesa que anda, suponho, perdido pelas ruas de Lisboa, a capital, por conta do desaparecimento do seu túmulo no Terramoto de Lisboa de 1755.

 

Dos quatro presidentes de Moçambique, o único que até agora vi a passar pela oprimida  Ahmed Sékou Touré, e no exercício das suas funções, foi Armando Guebuza, o “Enfant terrible” de Samora Machel, que cortara, no sentido Este-Oeste, uma boa parte da avenida e creio, terá parado, para uma inauguração ou visita, algures próximo ao Jardim dos “Mandgermans”, o oficial Jardim da Liberdade. Em conversa com um amigo, que também vira e ligara para mim, enquanto o “momento histórico”, a passagem da comitiva presidencial pela Av. Ahmed Sékou Touré, acontecia, comentamos, na altura, de que só ele, o Guebuza, entre os três presidentes até então, compreendia a dimensão da opressão habitada na Av. Ahmed Sékou Touré. Isto porque, na era colonial, na sua trajectória nacionalista, Guebuza “vivera” numa das suas esquinas, concretamente na da funesta, e de má memória, “Vila Algarve”, uma antiga prisão da polícia política portuguesa (PIDE), hoje um edifício em ruínas.

 

Lembrei-me da Ahmed Sékou Touré, como uma rua oprimida, a reboque do protesto da comunidade afro-americana contra a opressão de que são vitimas, em particular da polícia estado-unidense. Na esteira do exemplo, discordando apenas do recurso à violência, sugiro aos oprimidos da Av. Ahmed Sékou Touré, os antigos e os actuais, que se organizem e movam uma acção pacífica de protesto contra o Estado. No mínimo, um abaixo-assinado e um processo judicial em que se exija o pagamento de uma choruda indeminização, entre outros, por danos na audição e com efeitos nefastos na visão.

 

Por ora, enquanto decorrem os preparativos organizacionais para o protesto, até que se podia colocar, junto ao murete do Palácio dos Casamentos, uma lápide inscrita “ Rua Oprimida”. É uma ideia e não sei até que ponto seria consensual na futura Associação “Rua Oprimida”. Espero, a fechar, que os da Av. Ahmed Sékou Touré, os de ontem e os de hoje, não levem a sério, e nem a brincar, o escrito neste texto.

 

PS: Prometera, em finais de Maio, de que só voltaria a publicar no início de Julho. A ideia era a de mostrar ao PR o meu comprometimento em ficar em casa, fisicamente e virtualmente. Ainda não cumpri, sobretudo a nível virtual. Já publiquei um texto. Agora o segundo. Um exemplo de que está difícil cumprir com as medidas do estado de emergência. Não me parece que o facto de ter sido uma das vítimas da “Rua Oprimida” (tipo já não ouço e mal enxergo) seja uma desculpa plausível.

segunda-feira, 08 junho 2020 07:04

Os mortos de Muidumbe

Quem de nós não morre quando todos morremos em Muidumbe?

Quem sobrevive incólume diante dos impiedosos algozes

daqueles nossos infaustos concidadãos de Muidumbe?

O sacrifício dos que foram assassinados em Muidumbe

não é bastante para sangrar os jornais além das efémeras notícias

que não abalam a nossa moçambicaníssima complacência?

Quem fica de joelhos pelos mortos de Muidumbe?

A galhardia daqueles que foram metralhados

sem comiseração

em Muidumbe

não sufraga a honra das nossas ruas?

Por que nada exigimos?

Por que razão nenhum clamor fazemos?

Os nossos punhos não se compadecem

por todos os que morreram por nós em Muidumbe?

Os mortos de Muidumbe não concitam a nossa dor?

Os mortos de Muidumbe desmerecem a nossa compaixão?

Os mortos de Muidumbe não tributam o nosso sofrimento?

Somos misericordiosos com os outros mortos

e postergarmos os nossos mortos de Muidumbe.

O sangue vertido em Muidumbe não é nosso sangue?

Onde estão as vigílias

as velas

as praças exaltadas?

As missas

liturgias

eucaristias.

Nenhuma cidade se levanta perante os mortos de Muidumbe.

Porquê?

Os mortos de Muidumbe resistem sem rosto.

Os mortos de Muidumbe são apenas um número

para a estatística

para o cadastro

para o catálogo da nossa humilhação colectiva

para a recensão da desonra

para o arquivo e para o esquecimento.

Os mortos de Muidumbe não cantam.

Os mortos de Muidumbe não falam.

Os mortos de Muidumbe não reclamam.

Os mortos de Muidumbe não sonham.

Os mortos de Muidumbe não gabam a quimera dos seus epitáfios.

Nem esperam o requiem dos outros defuntos.

Os seus gritos não conclamam os deuses

porque os deuses estão ensimesmados com outros mortos.

Os mortos de Muidumbe foram enterrados

mas permanecem insepultos.

Nenhuma necrologia inscreve os seus nomes.

Os jornais não têm letras de sangue

para os que morreram em Muidumbe.

Não há obituários para os mortos de Muidumbe.

Os jornais são omissos quanto ao massacre de Muidumbe

o genocídio de Muidumbe

os fuzilamentos de Muidumbe

o extermínio de Muidumbe

a carnificina de Muidumbe.

Os mortos de Muidumbe perseveram no anonimato

como os decapitados de Mocímboa da Praia

Quissanga 

Mueda

Palma

Metuge

Macomia

a Norte onde se aniquila o futuro do nosso passado.

Os mortos de Muidumbe não desconsolam o mundo

o mundo está assoberbado com outros mortos

o mundo urge para os outros mortos

o mundo não tem empatia com os mortos de Muidumbe.

Há um pérfido alheamento pelos mortos de Muidumbe.

Os mortos de Muidumbe não fazem parangonas

não abrem telejornais.

Quem morremos com os mortos de Muidumbe?

Será que não morremos todos com os mortos de Muidumbe?

Ninguém de nós se condói pelos mortos de Muidumbe?

Que país é este que não se enternece com os mortos de Muidumbe?

Os nossos pêsames

a nossa consternação

a nossa comiseração

a nossa humanidade

não são dignos dos mortos de Muidumbe?

Que luto é este que escolhe não velar os mortos de Muidumbe?

Que mortos sufragamos nós para carpir as nossas lágrimas?

Que angústia é essa tão insolente quanto aos mortos de Muidumbe?

Que silêncio é este perante o silêncio dos que foram silenciados em Muidumbe?

Quem de nós não morre quando todos morremos em Muidumbe?

 

Nelson Saúte

 

Junho de 2020

quinta-feira, 04 junho 2020 06:57

Mwali

Está no fim da estrada e mantém a dignidade dos tempos. Não verga. Quanto mais perto da meta, mais pujança na sua personalidade. É como se estivesse num grande estádio a abarrotar, sentido as palmas que a catapultam. Sabe que já não terá mais forças do que estas que estão no limite, por isso usa-as até ao limite. Não recorre aos anabolizantes, os anabolizantes é a música do passado, que repete sem se cansar no seu inacreditável gira-discos, daí a frescura transbordante da Mwali, recolhida numa casa transformada em Meca, onde os amigos vão regularmente para ouvir as histórias de uma era pura, que parece voltar em cada palavra.

 

Vive na orla do mar, de onde continua a usufruir, como sempre desde a nascença, da pompa de uma paisagem fascinante que se estende a seus pés. Dali ela acompanha o movimento dos pescadores, que muitas vezes voltam com os cestos vazios, depois de longas horas puxando as redes de emalhar ou de arrasto, ou ainda das mulheres, que ao cair da noite descem com as pequenas redes de pesca de camarão, e regressam também derrotadas, sem nada. Mas há muitos momentos também, que Mwali testemunha o festejar da faina farta.

 

Ela é a nossa secerdotisa, colocada no lugar de sumo pontífice, posto conquistado pelas “homilias” inacabáveis que inocula para que, segundo ela própria,  pelo menos nos recordemos da existência do Criador do Céu e da Terra. E dos Homens. Mas Mwali por vezes exagera, se calhar levada pelas emoções de um ambiente borbulhante, que nos espicaça a querer voltar sem cessar, num ciclo vicioso, para aquele lugar que nos entusiasma. Citou, numa das recentes ocasiões, sem saber que provocaria um efervescente debate, uma vez que está habituada a ser ouvida sem grandes questionamentos quando evoca a bíblia, uma passagem que nos pareceu ser um contra-senso.

 

Normalmente nunca temos o livro Sagrado por sobre a mesa, para aferir o que vamos ouvindo da Mwali. O que ela diz é por demais caudaloso, tão profuso que nos limitamos a abanar a cabeça em sinal de consentimento, como vassalos, virando goela à baixo, de vez em quando, uma cachaçazita sempre disponível, para aclarar a mente. Mas nesse dia as coisas mudaram de rumo. Segundo Mwali, no Salmos, cap. 21, David diz o seguinte: “o que me magoa, é que o Altíssimo já não é o mesmo”. Perante esta afirmação, um dos companheiros virou-se para Mwali e disse, isso não é verdade! Não sou leitor da bíblia mas Deus sempre foi o mesmo desde que existe, quem não é o mesmo somos nós. Deus não é metamorfo.

 

No lugar de o ambiente gelar, uma vez que a “raínha” era posta em causa pela primeira vez, a “afronta” tornou-se  motivo para voltarmos a encher os copos e desligar o gira-discos que tocava, em disco de vinil, a música de Percy Sledge, When a man loves a woman. Pedimos a bíblia, e Mwali disse que não tinha bíblia, porém - como nos afiançava -  o que ela dizia era a pura verdade, e que se quisessemos nos certificar disso, então podemos ir consultar nas nossas casas. E é o que vamos fazer, enquanto aguardamos o próximo enconto que já está a criar emormes expectativas.

quarta-feira, 03 junho 2020 05:35

Audiência com o Rei

Quando os tamancos se comunicaram com o chão da terminal rodoviária da “junta” na periferia da cidade de Maputo, produziram um estrépito chamativo. O jovem que os calçava não se importou com os olhares folgazes de que era alvo.

 

Foi um dos últimos a desembarcar do autocarro interprovincial proveniente de Chókwè na província de Gaza.

 

Os seus admiradores miravam-no curiosos e deixavam escapar uma risada, o recém-chegado percebeu que criava impacto no seio das pessoas próximas.

 

- Onde apanho um chapa para a baixa? – questionou para um dos utentes da terminal rodoviária

 

Caminhou sereno segurando uma mala velha e pesada, usava um chapéu de palha com abas pequenas, a jaqueta de couro castanho desgastada e ligeiramente pesada descaía no ombro direito, exactamente do lado da mão que segurava a mala. A camisa de capulana com as cores amarelo e vermelho era suplantado pelo casaco, as calças eram de caqui verde-escuro.

 

Não demorou para embarcar no chapa, os passageiros abriram alas para deixa-lo passar admirando suas vestes, uma moça vagou o lugar e o ofereceu.

 

- Obrigado! - proferiu com um sorriso alegre no rosto.

 

O chapa marchava velozmente ultrapassando os outros carros, este malabarismo perigoso agradava a Carlos Wena que vinha pela primeira vez a cidade de Maputo com a mente repleta de sonhos que pretendia realizar. Vinha animado depois de receber o convite do seu primo que triunfara na grande metrópole.

 

O desembarque na baixa da cidade deixou-o atónito, olhava para cada canto da cidade intimidado pelos monstros de cimento que se erguiam por todo lado, os carros que circulavam velozmente dum lado para outro deixavam-no desorientado. Ficou parado por um tempo, estudando o ambiente que morava ao seu redor, temia dar um passo em falso que podia comprometer a sua chegada a grande cidade.

 

Posicionou a sua mala no chão, sentou sobre ela e procurou organizar as ideias, já passavam das 15h00.

 

Uma turba de petizes em gozo de férias escolares deu com o alegórico personagem de Carlos, pararam e olharam-no maravilhados, riam e trocavam conversa.

 

Já descansado pegou na sua maleta e iniciou a caminhada seguida de perto pelos meninos que multiplicaram as suas risadas agora que o viam em movimento.

 

A sua derradeira jornada seria até a casa do primo no bairro suburbano da polana caniço nos arredores da cidade.

 

Os meninos depois de consumirem momentos de alegria gratuita partiram para outras brincadeiras.

 

A vitrina com letras garrafais do nome do estabelecimento avivaram sua mente e recuperou uma imagem que guardava num canto especial da sua mente.

 

O jovem forasteiro entrou para o estabelecimento comercial, abeirou-se do balcão, descansou a sua mala no chão.

 

- Sim, se faz favor? Investiu o balconista.

 

Ainda distraído, o recém-chegado apreciou o ambiente que por ali morava durante um tempo e cabisbaixo falou para o balconista.

 

- Quero falar com o rei – disse convicto.

 

O balconista vigiou demoradamente o estranho cliente, e ainda perplexo perguntou:

 

- Como disse?

 

- Quero falar com o rei -  repetiu o forasteiro seguro do que buscava.

 

Pela indumentária e o gesto meio aparvalhado, o atendedor ajuizou que o homenzinho devia estar desprovido de sanidade mental. Então decidiu embarcar na brincadeira.

 

- Meu senhor, somos um estado semipresidencialista, isto para dizer que temos um presidente que por coincidência foi reeleito a bem pouco tempo. – gabou-se o balconista dos seus dotes políticos.

 

- Mas eu quero falar com o rei! – insistiu sereno, o estranho cliente.

 

- Meu jovem, nós, a República de Moçambique não é uma monarquia. – frisou o balconista cada vez mais convicto dos seus saberes.

 

- Meu senhor, saiu na televisão a dizer que o rei chegou, até falam em inglês “the king is here” – assegurou Carlos sereno de que a sua explicação poderia elucidar o balconista.

 

Já meio irritado com a insistência parva do cliente, o atendedor procurou ignorar a investida do recém-chegado e deu atenção a um outro cliente.

 

Um curioso que destrinçava o diálogo entre o balconista e o pomposo cliente, processou a pretensão de Carlos, levantou-se e o abordou.

 

Depois de uma breve intersecção verbal, o curioso pousou teatralmente uma garrafa no balcão, Carlos abriu os olhos e largou um sorriso rasgado, segurou a garrafa que o ofereciam e agradeceu imensamente aquele anjo que soubera interpretar as suas aspirações.

 

- Eu sabia que o rei estava aqui! Afirmou felicíssimo – Muito obrigado mano.

 

E então bebeu, bebeu prazerosamente a cerveja.