No dia 7 de Novembro de 1917, Max Weber proferiu uma palestra, em Munique, sobre “A ciência como profissão-vocação” [ou referenciado em alemão Wissenschaft als Beruf et Politik als Beruf], numa plateia largamente composta por estudantes. O texto resultante, publicado dois anos depois, ainda é comentado e minuciosamente analisado até hoje. Embora lide principalmente com a situação alemã, colocando-a nas primeiras páginas o espelho dos Estados Unidos, Weber evoca problemas que podem ser generalizados para outros países. Além da “neutralidade axiológica”, Weber nos convida a pensar sobre os vínculos entre Universidade e política.
De forma concreta, Weber defendeu a necessidade de uma clara separação entre política e ciência. Além de tratar sobre a acção política, seu funcionamento, sua legitimação e a célebre definição sobre Estado, Weber fala igualmente da epistemologia da ciência, do julgamento e da relação com os valores em dois momentos: (1) julgamentos subjectivos de valor devem ser excluídos de toda pesquisa científica; (2) a relação com os valores implica que a análise de um facto social não pode ignorar os valores da sociedade em que o facto é estudado.
O campo de estudos relacionados às relações entre ciência e política é particularmente abundante. Segundo Lamy (2007), é possível distinguir cinco questões essenciais: (1) a primeira diz respeito a reflexões sobre as condições e os quadros políticos (isto é, democracia ou totalitarismo) que permitem, impedem ou influenciam a actividade científica; (2) a segunda área de trabalho sobre a relação entre ciência e política está organizada em torno das acções do governo em favor da actividade científica ou de um segmento específico dessa actividade; (3) a monitoria dos compromissos políticos, aderência e activismo de certos pesquisadores constitui um terceiro corpus de questões históricas e sociológicas; (4) uma quarta constelação de trabalhos recentes e especialmente sociológicos considera a ligação entre ciência e política através dos usos que os governos ou tomadores de decisão públicos fazem da pesquisa científica; e (5) o quinto conjunto de obras refere-se a construções teóricas gerais que, nos últimos vinte anos, tentaram delinear os métodos de organização e estruturação das relações entre ciência e sociedade.
Bréchet (2018) mostra-nos que uma acção política baseia-se em duas fontes: a legitimidade política do poder em si e a legitimidade racional da verificação empírica. É a partir da experiência de especialistas mandatados politicamente que garante-se, em princípio, que as decisões do político sejam justificadas do ponto de vista da racionalidade científica. A experiência não é suficiente, mas não pode ser descartada. Parece natural para todos que, para definir a política económica de um país, é desejável mobilizar o melhor dos analistas económicos e que a ciência do direito deve estar subjacente a qualquer tendência legislativa. A questão não é se essa experiência é mobilizada ou não, mas simplesmente que parece anormal que não seja.
A evidência actual de como a ciência se entrelaça com a política está assente no que a pandemia da COVID-19 nos ilustra, onde temos especialistas de várias áreas que defendem algumas posições que para a sua efectivação (ou não) devem passar pelo crivo ou beneplácito político. Diríamos de outra forma, com a crise sanitária, os cientistas têm um poder e uma visibilidade que eles não tinham antes. Os políticos agem de acordo com uma temporalidade completamente diferente. Mas então, entre os dois, quem decide? Podemos, se quisermos, trazer igualmente a problemática das mudanças climáticas, onde os alertas que a ciência transmite só serão efectivos com uma acção política real e de acordo com os interesses de cada país face à exposição geográfica de tal impacto.
Teoricamente, existem vários modelos que podem ser invocados na relação a se estabelecer (ou não) entre o poder político e a Universidade. Por exemplo, citemos o modelo francês e italiano, onde a gestão centralizada dos cargos universitários é assegurada dentro dos órgãos disciplinares permanentes, sem qualquer outra autoridade externa ou não disciplinar, com posse antecipada de professores-pesquisadores.
Em segundo temos o modelo alemão, que caracteriza-se pela descentralização na gestão dos estabelecimentos universitários, intimamente ligado à gestão de pessoas, e por um mercado científico estruturado por três parceiros: o professor, os estabelecimentos universitários em si e as autoridades (locais) que funcionam como supervisores desses mesmos estabelecimentos.
Por fim, o modelo americano, marcado pela ausência de regulamentação por uma supervisão corporativa ou administrativa, onde é assegurada a gestão de cargos e pessoas no nível de cada estabelecimento universitário. O ‘’mercado científico’’ é então estruturado, por um lado, pela hierarquia dos estabelecimentos (com mercados paralelos, uma vez que todos os estabelecimentos não competem na mesma divisão) e, por outro lado, por associações profissionais que mediam o reconhecimento científico de cada disciplina (revisão por pares).
Em África, a Universidade foi primeiramente estabelecida para enraizar e perpetuar a dominação colonial, sendo que com o surgimento dos movimentos nacionalistas a escola tornou-se um espaço de integração e ascensão social e, por conseguinte, as Universidades como espaços de formação da elite burocrática que tinha por responsabilidade assegurar o funcionamento da máquina Estatal. Nesse contexto, Mama (2006) sublinha que uma variedade de centros e redes independentes nacionais, regionais e não-governamentais começou a oferecer contribuições para a produção de conhecimento em África, embora muitas vezes de forma limitada pela lógica do Estado ou do mercado, o que faz com que tais centros de pesquisa sejam altamente vulneráveis à condição política de cada país, sem mencionar os caprichos da captação de recursos.
No nosso país, o debate sobre a relação que se pode estabelecer entre a Universidade e a política parece ter ascendido apenas com as recentes nomeações de Reitores (Universidade Zambeze e Universidade Lúrio). Contudo, é preciso aqui destacar que em muitos países o poder político sempre esteve presente na propositura dos dirigentes máximos das Universidades, sendo que a única diferença é que nesses países o poder político serve apenas como confirmante de um acto que obedeceu a escolha interna entre os pares.
Voltando para Moçambique, basta apenas recordar o episódio que foi a nomeação do Prof. Doutor Filipe Couto, em 2007, ou ainda da tensão criada no início dos anos 90, na Unidade de Formação e Investigação em Ciências Sociais – UFICS UEM, durante a gestão do Professor Catedrático Brazão Mazula. Estes são os casos que se tornaram públicos, mas internamente não faltam cenas de crispação na eleição – escolha – de Chefes dos Departamentos ou mesmo de Directores das Faculdades. Aliás, o mesmo sucede vezes sem conta na eleição para dirigir o Núcleo de Estudantes ou ainda para a Associação de Estudantes Universitários (AEU-UEM).
Colocados os elementos acima, parece ficar claro que sofremos de um problema que reside na forma como são escolhidos ou indicados os dirigentes para diversos órgãos ou cargos das Universidades Públicas. Pode ser, mas recuso-me a pensar que esse seja o problema central sobre o que muitos já vieram chamar de esgotamento da autonomia, liberdade e objectividade na produção do conhecimento científico.
Por exemplo, neste momento a França debate-se com uma crise nas suas Universidades que não é em relação a interferência poder político em si, mas a adopção de uma lei/reforma que é vista como o esquartejar da capacidade financeira que as Universidades terão para produzir conhecimento e atrair novos pesquisadores. Trouxe o caso da França porque quero aqui inaugurar uma hipótese que, no meu ponto de vista, pode nos ajudar na discussão sobre o que está a suceder em Moçambique: falamos do investimento público e financeiro que deve ser feito para que realmente a produção do almejado conhecimento suceda. Um verdadeiro engajamento político com a Universidade Pública.
Pensamos que, por mais que nomeações sejam em obediência ao colégio universitário (em respeito ao estipulado na Constituição da República), sem investimento sério na pesquisa, as nossas Universidades Públicas manter-se-ão apenas como edifícios imponentes, mas sem produção científica de base. Entenda-se investimento como dotar as Universidades Públicas de capacidade financeira para produzir pesquisa variada, seja em campo ou laboratório.
Embora sem estatísticas ao nosso dispor, se considerarmos as publicações científicas e existência de revistas científicas (com revisão cega/dupla de pares) como elemento de avaliação de qualidade, poderemos observar com clareza o quão distantes estamos, e isso não é consequência da indicação política dos Reitores. Podemos ainda tomar em conta a nossa reduzida capacidade formativa em produzir Doutores (ou mesmo Mestres) para a actividade lectiva.
Assim dito, reduzir o debate no quesito das nomeações é escamotear um problema maior pelo qual padecem as nossas Universidades Públicas, sendo que poderá manter-se a desculpa que não produzimos conhecimento científico porque o poder político nos impede, esquecendo que o barómetro qualitativo dos pesquisadores e investigadores não se faz pela indicação do Reitor, mas sim pela produção ao longo da carreira dentro dessa mesma Universidade. Sublinhe-se, pensamos que a equação é dupla, por um lado as nomeações em si, mas igualmente a incapacidade política de prover meios para que tais Universidades labutem, mesmo que sejam dirigidas por Reitores politicamente nomeados, o que não é propriamente mau.
Referências
Bréchet Yves, « Science et politique », Commentaire, 161/1, | 2018, 13-18.
Jérôme Lamy, « Penser les rapports entre sciences et politique : enjeux historiographiques récents », Cahiers d’histoire. Revue d’histoire critique, 102 | 2007, 9-32.
Mama Amina, « Towards Academic Freedom for Africa in the 21st Century », Council for the Development of Social Science Research in Africa, 4/3 | 2006.