(Acontecimento verídico, personagem fictícia)
No dia 13 de Julho do corrente ano, António Galopão deslocou-se a uma das repartições do extinto INATTER, agora Instituto Nacional de Transportes Rodoviários (INATRO) para proceder à renovação da sua carta de condução em vésperas de caducar. Eram aproximadamente 10:30h, de uma terça-feira do nosso calendário gregoriano.
Uma pequena multidão ocupava de forma desordenada diversas posições no exterior das instalações, à espera de ver o seu assunto solucionado.
Dois guardas de uma empresa de segurança procuraram atender este e aquele pedido dos utentes. Galopão expõe que precisava renovar a sua carta de condução e o guarda solicitou a sua carta e o atestado médico.
“Aguarde, vai ser chamado” – anunciou.
Assim, iniciou-se o longo processo de espera e um e outro eram chamados para efectuar o procedimento seguinte. Passaram-se horas e só quando eram 14:00h Galopão ouviu o seu nome.
“Senhor, a sua carta está suspensa e deve dirigir-se ao 1º andar, porta 13, sector das multas”
Galopão ficou apreensivo, pois procurava ser cidadão exemplar e cumprir com as normas de condução para evitar cair nas malhas das autoridades. Buscou na sua memória se havia alguma multa não paga, entretanto, havia pago a última que tivera e o agente da polícia de trânsito o advertiu que devia conservar o recibo para evitar qualquer embaraço.
Fez-se presente na sala de espera da porta 13 onde já estavam os outros que aguardavam a sua vez de serem atendidos, sendo que não se cumpria com o protocolo sanitário de distanciamento de 1,5 metros. Só quando eram 14:30h foi atendido pelo funcionário da instituição.
“Quero saber a situação da minha carta”, anunciou temeroso, pois tinha conhecimento de inúmeras irregularidades que aconteciam nesta instituição.
O funcionário pediu-lhe a carta de condução e ele imediatamente entregou-lhe. Depois de buscar no sistema informático, este começou a rabiscar um código referente à multa que devia pagar.
A sua inquietação tornou-se realidade e Galopão então perguntou: “Por favor, pode dizer-me que multa é esta?”
“Refere-se à falta de inspecção” – respondeu este.
“Falta de inspecção, quando e onde foi passada a multa?” – questionou, pois não se lembrava de nenhum evento referente a esse acto.
“Foi passada em Vilanculos, na província de Inhambane, no ano passado” – respondeu sereno.
“Caro senhor, eu nunca estive em Vilanculos” – respondeu um pouco fora de si.
“Senhor, não sei, é o que está no sistema” - afirmou sereno.
Depois de fazer as suas inúmeras contestações, António pediu que o funcionário imprimisse o histórico da multa para ele poder efectuar a devida reclamação. Entretanto, o funcionário alegou que o sistema não permitia executar tal operação.
Mas o funcionário foi benevolente e permitiu que este lesse o que o sistema mostrava; qual não foi o seu espanto, quando viu que a foto que o sistema mostrava pertencia a uma outra pessoa.
“Desculpe senhor, mas essa foto não é minha” – disse Galopão, completamente fora de si.
“Mas o nome é seu?” – perguntou descontraído.
“O nome é meu, mas a foto não” - respondeu quase aos berros.
“Senhor a multa foi passada em Inhambane, se quiser reclamar tem de ser com as autoridades que passaram que estão em Inhambane”
“Caro senhor, isso é ridículo e injusto” – afirmou completamente irritado.
Quando Galopão viu que ficava sem opções, ou pagava a multa para renovar a carta ou então procedia à reclamação e esperava o devido tempo para obter a resposta, sendo que durante essa espera não poderia conduzir, pois sua carta expirava dentro de dias, então optou pela segunda alternativa e depois iria pensar como proceder em relação ao imbróglio protagonizado por estes actores que deveriam servir o público.
Enquanto aguardava pelos procedimentos subsequentes, viu um outro cidadão a ser humilhado pelos funcionários da instituição por supostamente terem cometido infracções de que nem se lembrava ou então eram fictícias.
Às vezes, alegam que o indivíduo ficará inibido de conduzir pela infracção que cometera, como forma de pressionar o condutor a propor uma negociação para tal não acontecer.
Infelizmente, o povo oprimido continua vítima de chacais que vão brotando da pátria, imbuídos de intenções malignas de ganhar à custa do sacrifício do pacato cidadão, enquanto deveriam ser servidores públicos exemplares.
A introdução de multas no sistema parece ser uma cultura para alimentar os vícios da nova geração de vampiros que povoam o INATTER, aliás, INATRO.
Segundo informações que circularam, o Ministro da Ciência e Tecnologia, Ensino Superior e Técnico-Profissional referiu que as universidades deveriam ter um corpo docente composto por professores doutorados. Essa é a regra geral no ensino superior em todo o mundo, excepto em países como Moçambique, onde: (1) existem poucas bolsas de estudo; (2) as universidades não investem no corpo docente; (3) dos doutores existentes, sobretudo em determinadas áreas de conhecimento, uma elevada percentagem dedica-se à política e a negócios. As razões desta emigração de doutores para outras actividades são: (1) salários miserabilistas; (2) inexistência de recursos para investigação (excepto uns poucos de casos que conseguem mobilizar recursos externos); (3) carreiras docentes pouco transparentes e distorcidas; (4) dificuldades de publicação em revistas de referência (moçambique não tem nenhuma).
Em consequência, não é surpreendente afirmar acerca da mediocridade do ensino em geral e do superior em particular. Com excepções, são poucos os departamentos na Universidade Eduardo Mondlane que fazem investigação; qual das outras universidades, públicas e privadas, tem pesquisa continuada, com envolvimento de estudantes e docentes, que publica regularmente e possui cooperação/internacionalização na investigação? A reprodução da mediocridade parece ser um propósito, e não só porque a qualidade requer muito investimento e resultado de longo prazo.
Neste contexto, a declaração do Ministro é extemporânea. Não o seria se houvesse um programa de formação docente a longo prazo, bolsas de estudo, e as universidades privadas obrigadas, efectivamente, a aumentar os graus dos respectivos corpos docentes.
O Conselho de Reitores foi extemporâneo porque as universidades pouco ou nada fazem para qualificar os docentes, embora se saiba que quem manda nas universidades não são os reitores, mas os patrões através dos responsáveis da administração. Os reitores são extemporâneos porque sabem que nas universidades, efectivamente instituições de ensino superior (e não dumba nengues do ensino superior), o corpo docente tem como funções principais a investigação, o ensino e a extensão universitária (também pouco ou nada se faz no nosso país). Estas funções são realizadas por doutorados que devem possuir (nem sempre) competências, tempo, vontade e incentivos para realizarem pesquisa.
Os reitores, pelo que foi dito, são demagógicos quando afirmam que há profissionais com muita experiência, conhecimento e competência e que podem ensinar. Sim, há alguns bons profissionais, mas é aceite que, em geral, um bom profissional, seja automaticamente um bom pesquisador e docente? O contrário também é verdadeiro: um bom pesquisador e docente não tem necessariamente de ser um bom profissional e gestor em actividades produtivas e de serviços ou em gestão de burocracias. Sim, pode haver uns poucos profissionais que podem leccionar, mas não é a regra. Profissão em actividades extrauniversitárias e universitárias implica perfis de personalidade, atitudes e posicionamentos bem diferentes entre si.
Os reitores, pelo que se soube, são manipuladores de expressão, quando recorrem à autonomia universitária para se contratar profissionais, mesmo sem licenciatura, para leccionar nas universidades. E eles, reitores, sabem que foram demagógicos, quando utilizaram o conceito e o princípio da autonomia universitária. Se foram demagógicos, é porque lhes convém manter o corpo docente com mais de 70% de licenciados a quem pagam miseravelmente. Se não foram demagógicos, então não sabem o que significa autonomia universitária. E isso seria grave. Ou, finalmente, alguns não foram sérios. Termino sabendo que dentro do Conselho de Reitores há pessoas competentes e que, certamente, se distanciam do seu Conselho.
Por estas e por outras, mas conscientemente e em defesa de interesses de grupos e de umbigos (desprestígios construídos), a má qualidade se reproduz. Uma aldrabice às actuais e futuras gerações e um atentado ao desenvolvimento do país.
Por Jorge Ferrão & José Castiano
O comboio que anunciara a sua morte apitou duas vezes. Nestas ingentes palavras, comecemos pelo último apito. Oficialmente, o anúncio da sua hospitalização dava conta de que “não se tratava de Covid-19”. Não obstante, sobraram dúvidas sobre o seu estado de saúde. Ainda repercutia, em nossas recordações recentes, a odisseia do vizinho Presidente Magufuli. Para a nossa geração, nós, que crescemos contemplando a parte final dos nacionalismos e pós-independências, sabemos, como parte de uma cartilha, que nunca se anunciam os mal-estares e muito menos as patologias das lideranças. A rigor, quando se trata dos progenitores ou Heróis das Lutas de Libertação.
Entre mitos ou tabus, recebemos duas heranças, se não forem mais, a saber: a das teorias de conspiração socialista, onde Kremlin ou Havana, escondiam os internamentos dos seus líderes. Era comum inventar artefactos, duplos, ou sósias, para os substituírem em ocasiões públicas. A segunda herança é da própria tradição africana: não se devia saber que o Rei padecia, nem que sofria, como qualquer humano, de outras fraquezas. Nem mesmo depois da morte. Quem já visitou Emankhosini, lugar onde foram enterrados os Reis Zulus (menos o Shaka Zulu, é claro), saberá como aquele lugar foi mantido em segredo pelos Nkhosis. Devia manter-se o mito de uma existência ancestral.
A hospitalização de Kaunda foi um pré-anúncio da morte anunciada. Com Magufuli poderíamos estar distraídos, mas com um homem de 96 anos, nem tanto. Talvez a sua longevidade se devesse a vida austera que levava, pois, não bebia álcool, não fumava, vinha de uma família religiosa, fora professor, levava a sua guitarra por todo o lado onde ia (incluindo em visita oficial ao Kremlin) e, com ela ou sem ela, sempre cantava.
E aqui passamos à segunda parte da dupla-morte anunciada. Em 2013, nas cerimónias fúnebres de Mandela, seu companheiro na luta contra o apartheid, mantemos vivas aquelas imagens da correria desenfreada que iniciou, pelo meio da sala, para discursar e provar que estava em forma. Depois, puxou pelos pulmões entoou a música-predilecta (quiçá uma das suas inúmeras composições), tiyende pamodzi na n’tima umodzi, esse hino nacionalista que apelava à união de todos num só coração. Nesta cerimónia fúnebre, porém, já poucos o seguiram. Era o prenúncio da sua caminhada para o final, como o último nacionalista que pregou uma era inteira de libertação, afirmação e identidade, na África Austral.
Como último dos memoráveis nacionalistas africanos, Kaunda, tinha algo em particular que o distinguia. O simbolismo com que se fazia presente em cerimónias oficiais e eventos públicos, que tipificava as glórias das lutas. Os outros líderes seguiam os mesmos exemplos. Mobutu Sese Sekou levava uma bengala-talismã, talhada de leão e outros animais; Kamuzu Banda trazia sempre consigo um rabo-de-leão; até mesmo o pacífico mwalimu Nyerere, do Ujamaa, trazia sempre uma “bengala” da sabedoria; o Mandela inaugurou as “madibas”; Samora Machel especulávamos sobre o seu relógio “mágico”. No entanto, a semelhança e, ao mesmo tempo, a diferença do Kaunda estava no seu talismã, um lenço branco, muito branco, com o qual acenava às pessoas em qualquer momento.
Que simbolismo arrastava aquele lenço branco no meio de uma tradição africana de leões, leopardos, elefantes, etc.? Recordemos que o Shaka Zulu se sentava sempre em cima da pele de um leão que ele próprio matava, numa luta preparada, quase que anualmente. Quando visitamos o santuário dos Macheis, em Chókwè, o nosso guia-historiador do Museu deleita-se em contar a história da luta de Machel com um crocodilo que queria comer um dos bois que ele apascentava.
Na autobiografia épica de Kaunda, Zambia shall be Free, conta-se da aparição de um leão enorme, ao qual ele afugentou com a sua bicicleta. Apesar da época de heróis e de misticismos nacionalistas independentistas de pais-fundadores, por quê, este homem, escolheria um “lenço branco”, tão assim que se distinguia de todas as cores?
Neste infausto momento, nos assalta à memória a solidão que o acompanhou, antes desta partida, cantando e dançando, sozinho, o seu tiyende pamodzi. Alguns factos ajudam a entender o enigma do lenço branco. Basta, para o efeito, que nos recordemos das imagens das negociações dos Acordos de Lusaca, assinados entre o Governo Português e a cúpula da Frelimo, chefiada por Samora Machel, em 1974. Por trás destas negociações de Paz, estava Kaunda com seu lenço branco.
Um ano mais tarde, em 1975, voltamos a ver o mesmo lenço branco, mítico, quando mediava a questão Zimbabwe, encontrando-se com Ian Smith e John Voster nas conversações de Victoria Falls. Ali, naquela carruagem vetusta colocada, exactamente, numa fronteira imaginária, em cima do Rio Zambeze, ele não deixou de acenar. Respondia, com humildade, às maníacas exigências dos brancos Smith e Voster, que assumiam, ainda, dominar o território “branco” da Rodésia e os nacionalistas “negros” na parte zambiana. Antes, o mesmo Kaunda tentara mediar a união entre um Mugabe e um Joshua Nkomo, dois nacionalistas relutantes, para se unirem (em abono da verdade, deve dizer-se que Kaunda inclinava-se mais para o movimento chefiado por Joshua Nkomo, que pelo seu irmão Mugabe).
Em 1982, voltamos a ver o lenço branco, num encontro em Botswana, desta vez com o Pik Botha, da África do Sul, com Kaunda a exigir a libertação imediata de Nelson Mandela. E, nos tempos difíceis para todos nós, nos anos oitenta do FMI e suas políticas de “austeridade” e “Estado Mínimo” do Consenso de Washington, Kaunda voltaria a exibir o seu lenço branco, recusando as imposições tanto dos Estados Unidos como da União Soviética, acenando a sua porta aberta para a China. Aliás, esta posição já era antiga. Recorde-se que ele mandara os chineses construírem o Grande Projecto Zambia Rail Ways (há uma foto famosa em que Nyerere visita este empreendimento austral).
Quando Mandela saiu da prisão, viajou de imediato para Zâmbia para se encontrar com a direcção do ANC, no exílio, para eventuais acertos sobre as transições de poder e de reconciliação que se seguiriam; uma parte daqueles guerrilheiros tinha saído de Moçambique por causa dos Acordos de Incomáti. Lusaca e o iconoclasta Kaunda voltavam a ser a capital do lenço-branco.
Qual era a fonte desta convicção “nacionalista” de que as independências também se podem fazer em cima de um lenço branco? Kaunda lera e admirara-se profundamente por Gandhi, pela sua luta pacifista. De certa forma até tentou adaptar a non-violence politics às nossas condições afro-austrais de colonialismos e de regimes minoritários de racismos brancos, na África do Sul e da Rodésia. Hoje, como já foi especulado ontem, podemos dizer que ele queria agradar aos atenienses e aos troianos, ao mesmo tempo. O certo é que Kaunda soube estar e manter-se vivo até se tornar no último nacionalista a quem nós podemos mostrar à “geração da viragem”.
Como qualquer ser humano e líder, Kaunda, foi um homem com defeitos, controvérsias e outras nuances. Isso foi. Em plena onda multipartidarista, ele preferiu continuar a ver o seu partido independentista como o “único”. E pagou caro por isso: o Chiluba, perante a iminência do regresso de Kaunda às eleições e, talvez, temendo o triunfo do “histórico”, mandou instaurar um processo que o proibia de contestar as eleições por ser “estrangeiro” (nasceu de pais naturais de Niassalândia, Malawi). Uma certa teimosia, em defesa da “Soberania de Estado”, fez-lhe arrastar o povo por uma crise do cobre que, até hoje, a Zâmbia, ainda, tenta recuperar-se. Sofreu tentativas de assassinatos.
Mas uma coisa é certa: pelo facto do seu filho mais velho ter morrido de SIDA, continuou a sua luta nacionalista levantando o seu lenço branco contra esta doença e em prol dos zambianos. Com o seu lenço-branco foi a todos os funerais de seus antigos camaradas (Nyerere, Machel, Mandela, Mugabe, etc.) até que chegou a sua vez. Foi assim o último nacionalista de lenço-branco, o lenço da libertação e da paz negociada. Parte para a eternidade o percursor de Mandela, mas que soube fazer da sua Lusaca, a capital da paz.
KK continua um nome indefectível e embrenhado em nossas consciências, neste infausto momento. Não saberemos desvendar o que a eternidade o reserva. Todavia, temos a convicção de que KK perdurará como homem livre, insubmisso, fraternal e muito atento. Será sempre o fiel servo das memórias da sua revolução e dos movimentos revolucionários dos países vizinhos.
Com o lenço, este símbolo de Paz, Kaunda nos deixou três livros, nomeadamente The Riddle of Violence, A Humanist in Africa e Letter to my Children que agora vamos desfrutar com leituras e olhos diferentes. De uma coisa nós temos a certeza, a luta vai continuar!
Este ano completam-se os 102 anos desde o começo da Primeira Guerra Mundial, a única na qual Moçambique participou, directamente, por intermédio da intervenção portuguesa. O livro A Guerra que Portugal quis esquecer, de Manuel de Carvalho, jornalista português, recorda essa desastrosa campanha. Dos cerca de 20.000 soldados portugueses enviados para Moçambique e Angola, com o intuito de precaverem-se dos ataques alemães, aliados aos mais de 50.000 soldados moçambicanos, trazidos dos designados Prazos da Coroa, Niassa, Zambézia e Moçambique, mais de 2/3 pereceram. Portugueses e moçambicanos sucumbiram na frente de combate, sem sequer terem disparado alguma bala. As fatalidades ocorreram devido ao despreparo, ausência de logística, fome, malária, sede e disenteria, e até à própria incúria.
Tudo isto aconteceu na Baía de Tungue, no triângulo de Quionga, actual vila de Palma, que herdou o nome de um Administrador colonial, em Negomano, Namoto e Mocímboa da Praia. Portanto, Cabo Delgado, hoje, a braços com uma nova guerra, tem sido palco de outras tantas desgraças. Esta província, de incontestável mixagem cultural, vive predestinada a sofrer os efeitos da barbárie, chacina e infindáveis traumas humanos. Por estes distritos, se mistura, ao longo de décadas, o sangue de europeus, africanos e asiáticos, numa espécie de cemitério a céu aberto. A saga do desligamento dos espíritos que vagueiam errantes por todos os cantos, procurando uma oportunidade para um dia poderem repousar, tornou-se cíclica, dolorosa e ortodoxamente preocupante.
Se a entrada de Portugal para a primeira Guerra Mundial significou uma oportunidade para os grupos étnicos mais organizados de Moçambique, em busca de mais direitos humanos e sociais, o custo social e familiar foi abismal e inqualificável. A descida dos alemães às margens do Rio Licungo permitiu várias revoltas. A mais significava foi a de Barué. Ao reivindicarem seus direitos e liberdades, contra o domínio português, estes povos sofreram um extermínio.
A história é repleta de exemplos de guerras, negação da soberania, da harmonia societária e paz, aliadas à fragmentação política, a exclusão das identidades e a expurgação do mal, em oposição aos direitos fundamentais dos povos. Hannah Arendt, no seu livro A Condição Humana, aborda o conceito “solução final” de Adolf Eichmann. Esta teoria serviu de substrato para o extermínio de milhões de judeus, ciganos e homossexuais, nos célebres campos de concentração nazis. Era a Europa a negar a liberdade que defendia para dentro dela mesma, atirando violência para fora.
Ela explorou essa brutalidade do mal, associada ao facto de, ao longo da história, as guerras que sempre tiveram a anexação de territórios como substrato, usarem as pessoas mais mesquinhas e ambiciosas para cometerem atrocidades. Humanos que se convertem em selvagens, displicentes e sanguinários. Personificados em sádicos monstros e desrespeitando a vida e sentimentos humanos. Para a guerra no Noroeste de Cabo Delgado, nem as vinganças, ganância, fortalecimento de seu próprio poder, ou visões messiânicas do mundo, podem explicar esta forma atroz, maligna e sevícia de matar seus concidadãos.
Relendo estas obras para contextualizar o descaso de Cabo Delgado, num período de neoliberalismo, mais do que as causas, procuramos entender o sentido da morte violenta e a pós-morte. A morte continua uma temática antropológica por excelência. Quando pensamos no teatro operacional Norte, não ficamos indiferentes à selvageria truculenta pela qual a população tem sucumbido. Nem conseguiremos entender como foi que se criaram os espaços para desenfreada e atroz crueldade, ruindade e falta de esperança e fé que se apossaram desta região.
Quando um ser vivo morre, não morre completamente, porque a sua forma, seu espírito, permanece vivo nos outros seres da sua espécie. Eles se tornam errantes, procurando um espaço definitivo para repousarem. Como dizia Darwin, o evolucionista, a morte de um ser vivo é uma continuidade interrompida e não representa o fim. Acontece, porém, que, com o ser humano, essa complexidade é ainda maior do que com os outros animais.
Vários escritores e teólogos versam sobre a necessidade de os espíritos poderem repousar quando se desligam dos corpos físicos. Por isso, os rituais consagrados a dar eterno descanso às almas e aos espíritos se revestem de muito simbolismo e santidade. De Mia Couto, no seu livro de ficção Terra Sonâmbula, a Paulina Chiziane, Calane da Silva e tantos outros, concordamos, sem excepção, no poder da comunicação entre vivos e mortos e na influência que os espíritos exercem sobre o bem-estar social e moral dos vivos.
Sem veleidades, os africanos são fervorosos e afectivos à paz dos seus espíritos. Em todas as gerações e épocas históricas, às famílias comunicam e recebem bênçãos dos espíritos dos antepassados. A eles são consagradas as homenagens que desencarnavam e transcenderam os espíritos dos organismos físicos. Esta transcendência, não importa o tempo que ocorre, tem um potencial de influência no estado psicológico e de tranquilidade, da esperança e da fé. Por isso, os rituais ancestrais representam uma irradiação mental e um conjunto de vibrações positivas significativas para quem continua na sua peregrinação na terra.
Moçambique e Cabo Delgado, de alguma forma, têm sido espaço para estes conflitos violentos, irracionais, inaceitáveis e de inimaginável perversidade. Os estudos que agora se multiplicam, apontam múltiplas razões. Ainda assim, há uma razão que continua a ser-nos negada historicamente. Naquele espaço do território, continuam vagueando demasiados espíritos, que carecem de tranquilidade e enterro condigno e encarecem a nossa reconciliação como nação. Eles procuram, como cada um de nós, dignidade, respeito e paz. Querem desligar-se do corpo físico, propiciando tranquilidade espiritual a comunidade, trazendo de volta a fé, a razão e a tolerância à diversidade. Em fim, a reconciliação connosco mesmos.
O impacto desta incapacidade de propiciar eterno repouso às vítimas cristaliza um sentimento de banalidade para com a vida e morte, e um desrespeito aos rituais essenciais. Estas adversidades fazem com que os espíritos procurem suas sepulturas, um pouco por todo este país. Esta é a nossa epidemia da descrença e do desligamento físico dos nossos espíritos. Precisaremos de fazer de tudo para salvar as vidas. Ter a capacidade para prover humanismo e conforto que merecem os que partem deste mundo. A espiritualidade e a fé, não podem ser negligenciadas. Essa fé começa por um desligamento dos espíritos dos seus entes queridos.
Nas várias guerras que o mundo testemunhou, se criaram as praças ao soldado desconhecido. Nós precisaremos de fazer a praça do cidadão desconhecido, do pescador desconhecido, do camponês desconhecido. Onde o religamento colectivo com o transcendente seja possível. São desconhecidos e nem se quer culpados por ter vivido no triângulo da riqueza e da morte. (X)