Director: Marcelo Mosse

Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

BCI

Blogs

Não são palavras que queria escrever. Nem sei porque escrevo. Provavelmente numa angustiante tentativa de lidar com este sentimento não descritível. Depois nem sei para quem escrever. Afinal eu perdi um amigo de 45 anos, parceiro, Mestre, irmão e compadre. Será que tenho o direito de partilhar publicamente uma dor minha?

 

É que quando se escreve tem de se ter um objectivo e que tenha a ver com os outros, se não é fútil e desapropriado. E hoje eu estou assim, a pensar que ainda no dia dos teus 70 anos falámos dos teus projectos da próxima década. Falámos na cachaça que eu recebi e não abri à tua espera, falámos no teu malfadado songbook que nunca mais sai, na tua biografia pronta mas tu sempre a insistir que o perfeito afinal existe.

 

E uma vez mais me deram o privilégio de fazer o que mais gosto: falar em em vida sobre a vida de quem faz obra com valores. Se há coisa que fico descansado é que te disse na cara aquilo que pensava de ti nas milhares de vezes que tocamos, conversamos, partilhamos dores profundas e alegrias imensas e digamos a verdade, virámos muita garrafa juntos. Desde antes do Xidiba Ndoda. Foram muitas milhares de horas, muita coisa partilhada, mas estava muito longe de estar esgotado. Não fazia parte do nosso acordo saíres assim.

 

Acontece que estas letras ficariam entre nós se não fosses tu o que és. E és património deste País. E não só. Sem confete, como dizem os brasileiros. Lembro-me que quando sai de casa para o Tributo que te fizemos em 2015 escrevi um mail todo nervoso a desculpar-me pelas falhas e explicar te que estávamos a fazer esse tributo, e cito, “pelo exemplo que tu és como artista, pelo exemplo que és como músico, pelo exemplo que és como ser humano, por tudo que passaste da maneira que passaste, pela amizade que sempre me deste e pela amizade que tenho por ti faz 40 anos”. 

 

Lembro-me também de termos nesse show justificado o Tributo porque “Os homens medem- se pelo que fazem mas também e sobretudo pelo que são. Moçambique tem sido testemunha do que FAZ e que é Hortêncio Langa. Fazer um Tributo a Hortêncio Langa não é apenas homenagear-te mas acima de tudo usar o teu exemplo para propagar, através da arte, atitudes e comportamentos que andam em falta. Tomara que os homens se inspirem no artista, na arte e no homem que é Hortêncio Langa”.

 

Não preciso de te dizer nada hoje. Fui fazendo ao longo da vida. Mas eu acho que no final de contas estou a escrever para lembrar aos outros. Sei lá. Hoje está difícil pegar a guitarra mas amanhã vamos fazê-lo com certeza e lembrar-me de ti a cada acorde, coisa que nunca vou conseguir fazer como tu, nosso poeta dos acordes. Vou pegar o Songbook que está muito mais que perfeito e que tu insistes que falta sempre algo, vou apontar uma arma à tua bi´

 

biógrafa e obrigá-la a publicar já. Porque o que tu nos deixaste e nos deste vai ficar aqui para muitas gerações.

 

Compadre hoje está difícil, mas foram muitas décadas de felicidade ao teu lado. Minha, de todos os que privaram contigo e dos que nem te conheceram. Atingiste como poucos com tua arte e com o teu ser, estar e fazer. Vou olhar sempre com saudade as tuas fotos da minha parede, os teus quadros que falam e os teus livros que como escreveste “falam de gente como nós”. Está a doer mas valeu e muito. (A.P.)

terça-feira, 30 março 2021 06:41

DIREITOS

A primeira vez que apareceu escrito em forma de lei, O Direito, foi no Código de Hamurabi – de onde a lei do talião foi a mais famosa do código.

 

terça-feira, 23 março 2021 13:14

Hortêncio e Marcelo, 70 canções e 70 livros

No mês da poesia, ainda atónitos com a pandemia, com o flagelo e com a extinção de uma geração, duas referências culturais moçambicanas vão aniversariar. Mas isso, todos nós fazemos. Não seria novidade para ninguém. O detalhe está no percurso que palmilham, embalado pela poesia de 70 canções e 70 livros. Abraçar a longevidade, com a jovialidade e elegância aprimorada, a frescura mental intocada, com a cor da sombra da vida, com o talento que supera a pintura na representação das palavras e significados.

 

Do Hortêncio Langa tivemos, sempre, o consolo e o apego que vivem entre os acordes e a concórdia dos tons de um violão. Do Marcelo Panguana colheita de palavras reveladoras do mais nobre dos sentimentos, prazer da leitura e o rescrever da história contemporânea. Semear palavras para colher harmonia e tranquilidade de alma.

 

No sorteio de quem começa primeiro, meu instinto primitivo recorre ao Hortêncio Langa, o legendário músico e compositor, que surgiu para o mundo, uma semana antes do Marcelo Panguana. Na vida, por vezes, isso faz alguma diferença. Na arte, nem por isso. Marcelo Panguana, o cronista e escritor de tantas obras e revelações, encerra o mês da poesia. Estas idiossincrasias repercutem as obras da natureza, do artífice e da própria humanidade.

 

Cada um, a seu tempo e espaço, com a arte que lhes é peculiar, aprendeu a olhar para os céus, no despertar da alvorada e no raiar do entardecer, com a magia que captura nossas emoções e impulsiona nossos espíritos. Com eles, a nossa cultura ganhou e continua a ganhar outras tonalidades e argumentos. Se nunca tivessem existido, não seríamos tão gratos à fantasia dos sons e ao prazer de uma leitura fervorosa e empolgante.

 

Hortêncio chega aos 51 anos de carreira. Marcelo Panguana roça os 32 de estrada. Não são procedentes das mesmas fontes. Todavia, tiveram o amparo e respaldo familiar para se socorrerem da sua arte e talento.

 

Hortêncio Langa é originário de uma família de músicos natos. Seu irmão, Pedro Langa, mentor dos Ghorwane (juntamente com Zeca Lage e Roberto Chitsondzo), nome de um lago na sua terra natal, também me confidenciou, no ido ano de 1978, sobre como a família encontrou na música uma forma de expressar o que não conseguiria fazer de outra forma. Milagre, Hortêncio e Pedro são senhores de inegável percurso em bandas musicais. Hortêncio, em particular, palmilhou algumas tantas. O destaque deve ir para os Rebeldes do ritmo, Monomotapa, Alambique, entre muitas, das quais o próprio Hortêncio tem alguma dificuldade em identificar.

 

Ele iniciou com uma gaita-de-beiços. Gentilmente, oferecida por um auxiliar da sua mãe, ainda nos seus tenros cinco anos. Imagino que ele deve ter soprado, até à exaustão de seus diminutos pulmões, aquelas canções mais populares canções de Mandlakaze. Ou não fosse essa a mística da terra e do berço da intelectualidade e cultura. Porém, foi no Chibuto que ele se juntou à Wazimbo e Miguel Matsinhe, para fazerem os Rebeldes do Ritmo. Era a fase do aprendizado e não se coibiu de usar a viola de lata. Pelas mãos de José Mucavele, outro amigo de adolescência, a sua “Xighoghogwani” ganhou outra sonoridade nesse dedilhar quase erudito.

 

Na família e na sociedade eles beberam do melhor que a transição cultural e política poderia conferir. Filhos de enfermeiros que tiveram a perspicácia e a força telúrica de moldar seus talentos. Hortêncio se transferiu para o Maputo, ainda na juventude, para prosseguir seus estudos. No inevitável Chamanculo, eles reeditaram o trio de Chibuto. Recriaram os rebeldes com a capa de Geyser. Mas, este trio evolui e integrou um dos melhores solistas que este país alguma vez criou. Jaime Machatine, Jaiminho, do Monomotapa, começou como baterista e depois se converteu em viola solo, já noutras latitudes e ambientes. Deixou este mundo sem honra e nem glória.

 

Hortêncio Langa continua detentor de uma magnífica voz e de canções com invulgar simplicidade. Nessa imaculada carreira musical, Hortêncio fez ainda parte da tuna académica da Associação Académica de Lourenço Marques, tocando viola e bandolim. Esteve na tropa colonial, cidade de Nampula, no começo dos anos 70, e integrou o Grupo 2, tocando de forma esporádica com a banda Alta Dimensão, que integrava o mítico João Paulo. Ele virou e honrou Moçambique, dedilhou sua guitarra em palcos de Cuba, Jamaica, e Guiana, para além das Europas. Com João Cabaço, esse monstro musical, Hortêncio atingiu o apogeu da carreira. Necessário fazer referência à Arão Litsure, pois, existiu um Trio Hortêncio-Arão-João. Antes Arão e Hortêncio foram um Duo.

 

O Marcelo Panguana tem outros atributos. Cronista, poeta, autor de contos e jornalista. Não é originário de Mandlakaze, mas de Lourenço Marques. Marcelo tem uma lista longa de publicações. Isso lhe valeu prémios de reconhecimento na Itália e no Brasil, com destaque para a medalha de ouro da Fundação Roberto Marinho. Foi, igualmente, prémio literário Rui de Noronha, e menção honrosa no prémio Sonangol de literatura, em 2011, com a obra “O filho do planalto”.

 

Quem olha para aquele corpo franzino e a irreverência de um arrojado escritor, jamais poderá acreditar que ele transporta tamanha longevidade. 70 caminhadas por tantos livros e textos avulsos. Diz-se que Marcelo escreve desde que conheceu as primeiras letras do alfabeto. Não sei quais devem ter sido seus escritos originais, mas, a página literária “Diálogo” do Diário de Moçambique, foi onde começou a amadurecer a sua escrita e ousadia para se afirmar. O primo Marçal achava que a tropa o assustou e lá fez seus primeiros textos mais conseguidos. No Maputo, integra a “Charrua” e esse homogéneo grupo de jovens que assegurou a continuidade da literatura Moçambicana.

 

Mas o Marcelo Panguana deveria ser um alquimista. Estudou química no longínquo 1971, tendo interrompido para integrar o serviço militar. Este alquimismo não o abandonou e, uma vez mais, em 1976, volta a matricular-se num curso de refinação de petróleos. Sonhava já com o gás de Panda e de Palma.

 

Mas, Marcelo Panguana, também, se assumiu como crítico literário. Aquilo que mais e melhor ajudaria a literatura deste país. Não imagino que o faça por força de vontade, mas, esta crítica fica implícita nos seus livros. Aí, ele faz questão de criticar as obras, e de valorizar cada um dos escritores moçambicanos. Parece, e bem, que, como São Tomas de Aquino, se imagine que todos ainda seremos muito poucos, para levar para a frente esta tarefa de escrever e recriar a história e a fantasia de Moçambique.

 

Nessa longa lista de livros quis saber qual era o seu livro preferido. Gentilmente, diz que os filhos são todos iguais e merecem, dos pais, o mesmo tratamento. Mas, são os leitores que o devem fazer. “As Vozes que Falam de Verdade”, contos editados pela Associação de Escritores Moçambicanos, em 1987, simbolizam a sua aparição em livro e, talvez por isso, Marcelo fale sempre deste livro com um carinho especial. Na analogia de pais e filhos, este foi o seu primeiro filho. Mas, as opções terão de navegar entre a “Balada dos Deuses”, “Estórias de Reconciliação”, “Fazedores da Alma”, “O Chão das Coisas”, “Os Ossos do Ngungunhana”, “Como um Louco no fim da Tarde”, “Leona, a Filha do Silêncio”, “O Filho do Planalto”, “Conversas do Fim do Mundo”, “O Vagabundo da Pátria” e “Escrever a Terra”, seu último livro publicado. Contudo, diz ter um carinho especial por “Leona, a Filha do Silêncio” e por “O Chão das Coisas”.

 

Marcelo Panguana escreve com a regularidade de um tempo que foi nosso. Esse tempo único e inquestionável. Entende a exiguidade e as carências, a ausência de estímulos, os egoísmos e as artimanhas do mercado livreiro, ainda assim, ele coloca o seu humanismo e solidariedade, para partilhar tudo o que tem para ajudar o próximo. Para celebrar o 70º aniversário, ainda nos poderá surpreender com mais alguma obra. A literatura agradece e os leitores terão a oportunidade de o felicitar de forma dupla. (Jorge Ferrão)

As Organizações da Sociedade Civil (OSC) em Moçambique são relativamente novas e as suas primeiras aparições e intervenções datam dos primórdios dos anos 1990. Paulatinamente o seu escopo foi se alargando e sua influência se estendendo para áreas relevantes e demandadas a nível da sociedade. E quanto mais elas foram crescendo e ampliando seu raio de influência, mais problemática e discutida foi ficando a sua aceitação. Elas vem reclamando por mais espaço de actuação e, paradoxalmente tal espaço lhes é progressivamente negado.

 

O espaço cívico é entendido como um espaço onde todos indivíduos/ cidadãos  da polis realizam livremente os seus desígnios, um espaço do rendezvous geracional de ideias e pensamentos. É um espaço que simboliza os valores mais altos da democracia, dos direitos humanos e sugere igualmente a materialização dos contratos social e político que celebramos uns com os outros.

 

Alguma literatura explica a natureza naturalmente social do homem – traço distintivo dos outros animais (Onde está o homem, há sociedade; Onde está a sociedade, existe o Direito). Recorrendo a clássica definição Aristotélica, o homem é um animal eminentemente político e busca sua realização dentro da sociedade. Na mesma sociedade ele associa-se umas vezes e desassocia-se outras vezes, construindo formas de associação que melhor respondem aos seus anseios sem no entanto perder a sua sociabilidade e politicidade. Aqui podemos por analogia buscar a hierarquização social e política, e consequente legitimidade de certos grupos dentro da sociedade, entendendo como algo natural derivado das habilidades inatas ou adquiridas e talentos, e não como algo divino.

 

Com a geração contratualista, a reflexão maior gira em torno da reflexão da saída do homem do estado de natureza para a sociedade civil. A natureza humana começa a ser discutida filosófica, sociológica e antropologicamente para tentar explicar o comportamento do homem dentro e fora da sociedade – De Jean Jacques Rousseau, passando por John Locke  e o Barão de Montesquieu encontramos abordagens distintas e igualmente ricas sobre o contrato social implícito onde cidadãos livres movidos pelo medo da morte violenta, insegurança e pela desconfiança mútua aderem ao estado social e civil por via de um contrato implícito e por vezes explícito. Mais tarde, vendo suas liberdades pouco seguras e receando a traição e não cumprimento de acordos aderem ao pacto social por meio da outorga das suas liberdades, dos seus direitos e cumprindo com deveres. A figura e imagem do soberano emerge como resultado deste contrato social e político. Francisco Soares (1548-1617) afirma que “não foi conferido ao homem o poderio político  sobre seus pares, de modo que esse domínio não haveria de ter fundamento diverso do consenso, através do qual a multidão se reúne em um só “corpus politicum” (Del Vecchio, 1979:84)

 

Numa fase mais avançada, com o esplendor das leis em Montesquieu no seu “O Espírito das Leis”, a sociedade dá um passo qualitativo e regulamenta a sua acção criando bases legais para a regulamentação dos comportamentos e acções, criando um corpus politicum  com competências separadas – nasce assim o Estado de Direito com bases da separação de efectiva de poderes (os três poderes do Estado – Executivo, Legislativo e Judicial).

 

Um pouco por todo o mundo o espaço cívico vem sofrendo sucessivas e progressivas ameaças e atentados que paulatinamente contribuem para o seu fechamento e deterioração. Este fenómeno não é novo e tampouco isolado, e é mais visível em países com regimes com tendências autoritárias e ditatoriais. As Organizações da Sociedade Civil, admiradas por uns e odiadas por outros, são também consideradas como sendo o braço de apoio à governação, vem travando uma luta para a edificação de uma sociedade mais justa, mais participativa, mais transparente e mais inclusiva. E dada a sua alta exposição em eventos e acções por vezes confundidas como sendo apanágio único do executivo e do poder do dia, sua legitimidade e mandato acabam por ser questionadas, e suas acções as vezes combatidas.  

 

É meu entender que, a governação é uma vasta área e que espaço cívico é apanágio de todos e de cada um de nós, por isso, defendo afincada e desapaixonadamente neste artigo que, para que  ele seja aberto e que represente o reencontro dos ideais supremos da democracia e do Estado de Direito é necessária uma maior aceitação de actores e players que muito podem contribuir na vastidão da acção de governação.

 

Estudos recentes sugeriram a possibilidade de ocorrência de dois eventos nefastos a médio prazo: o primeiro era a então incipiente flagelação das OSC e o segundo eram os ataques públicos (desde físicos aos verbais) aos representantes e membros das OSC, e tal se efectivou e vem se consubstanciando.  

 

O afunilamento e fechamento do espaço cívico em Moçambique começou a ganhar corpo e foi se cimentando paulatinamente nas duas últimas décadas (sendo que cada década caracterizou-se por distintas acções de governação). Ataques, raptos, ameaças e assassinatos geraram uma grande onda de consternação entre as diferentes franjas da sociedade a nível nacional e internacional. O medo generalizou e muitos analistas e activistas enfrentaram a desacreditação do seu trabalho através da criação e difusão de narrativas depreciativas. Este exercício paulatino e sistemático de desacreditação primeiro silenciosa e depois barulhenta contra as OSC e seus membros lançou um debate sobre a relevância e irrelevância das organizações da sociedade civil, sobre a sua legitimidade, sobre o seu mandato, e sobre o seu raio de actuação, ou seja, a quem elas realmente servem e quem as empoderou.

 

As narrativas contra a sociedade civil são uma arma muito perigosa e eficaz, principalmente em sociedades como a nossa com níveis de educação baixos e uma crítica pouco ou nada elaborada. Não estamos diante de um fenómeno isolado em Moçambique, mas diante de uma estratégia usada em várias partes do mundo.

 

A dificuldade em lidar com ideias e posições diferentes faz com que uns se sintam mais donos da verdade e donos da razão que os outros. A vontade de fazer vingar determinadas ideias em detrimento das outras, cria fricções e atritos. E nisto emerge uma negatividade baseada no ódio e na violência gratuita

 

Mais de 45 anos após a conquista da independência, os fantasmas do passado nos perseguem e, devido a intolerância de uns e não pluralismo de outros, corremos o risco repetir a história mas com contornos e actores diferentes.

 

Amartya Sen no seu livro “Desenvolvimento como Liberdade” afirma inequivocamente que a condição primária para o desenvolvimento é a existência de liberdades. E mais adiante desenvolve a abordagem das capacidades, onde a chamada “liberdade negativa” (ausência de impedimentos) é contraposta à “liberdade positiva”  (condições reais de exercício de um direito). E aqui nesta positivação das condições reais, entendo que devemos como sociedade promover mais as liberdades políticas, económicas, sociais, as garantias da transparência e a proteção da segurança. Assim daremos um passo qualitativo rumo a uma maior edificação de um Estado, instituições credíveis e livres de amarras ideológicas.

 

POR: Hélio Guiliche (Filósofo)

quarta-feira, 24 fevereiro 2021 14:43

Juma Aiuba era um exímio cronista

Vai fazer falta a ironia, a irreverência (mesmo que, por vezes, tida como impúdica) deste exímio cronista. Juma Aiuba cumpriu com coragem uma missão espinhosa: criticar a hipocrisia viciada de muitos dos nossos costumes. A sua escrita foi uma contundente caricatura de alguns funcionários da maledicência que foram pagos e promovidos para inventar ódios e diabolizar os que têm a ousadia de pensar diferente.

Mia Couto

quarta-feira, 03 fevereiro 2021 11:18

O Poeta Não Morre – Amanhã Será Um Novo Dia

Redigi um texto emotivo e demasiado espontâneo quando Calane da Silva, nosso professor, aniversariou os três quartos de séculos, dessa generosa longevidade, marcantes passagens e vivências culturais. Têm sido anos intensos e profícuos de inevitáveis intervenções em prol do fascinante mundo das artes e letras e do jornalismo. Calane aniversaria, no mesmo dia que o artista plástico Naguib. A vida fez deles irmãos consanguíneos de sonhos, imaginação e fantasia. A complementaridade do signo libra que confere impulso emocional e tatua as identidades através das distintas épocas históricas.

 

Com ambos desenvolvi e privei, nos últimos anos, uma relação que perpassa a amizade ou convívio fraternal. Tornou-se viral e se situava nesse plano de múltiplas excentricidades e cumplicidades. Calane acreditava que ainda poderíamos agregar valores às crianças e jovens. Sentia que o capitalismo selvagem, dos novos tempos, os excluirá, sem apelo e nem agravo. Essas gerações bebiam o pecado do descaso e omissão. Educação poderia ajudar, defendia Calane. Educar gerações não significava, tão somente, ingresso. Teria de ser acesso. Crianças e jovens são minha matéria-prima e, confesso, continuo céptico sobre o futuro de muitos, até sobre o presente de poucos.

 

Retomar as cumplicidades, neste pequeno texto, não pode e nem deve, em nenhuma situação, ser entendido como uma homenagem ou louvor à sua obra e memória. Antes, tem de ser interpretado como uma forma de desmascarar a omissão e a displicência que acompanham os criadores artísticos e os talentos que criam e recriam este mosaico étnico, racial, social, cultural e, estranhamente, literário do país.

 

Calane era um samoriano convicto, porém de coração dilacerado pelos sucessivos falhanços de fazer uma nação reconciliada e com valores. Também Samora, deixou um país à beira do caos e do opróbrio. Mas, Calane era também um monoteísta. Com sangue miscigenado hindu e português, ADN africano, ele nasceu católico e professou a religião de forma convicta e leal. Lealdade que tipificou sua vida e amizades. As relações e matrizes cruzadas que fizeram dele um muçulmano reconvertido. Mas, a sua espiritualidade o transformou em espírita. Procurava a pureza do altruísmo e a força e poder da luz e do sol. Parte como líder espírita de um grupo que criou e, quem sabe, experimentará outras esferas espirituais, nos próximos anos, sentado à direita do Pai.

 

Quis fazer um texto sem recorrer, forçosamente, às suas características, gostos e vontades. Um texto de reencontro com Craveirinha e Gulamo Khan, Ricardo Rangel e Fanny Pfumo, com Malangatana e tantos outros, com quem ele conviveu e foi feliz. Este texto, então, seria uma espécie de penhorado agradecimento por tantos caminhos e obras que ficarão como legado.

 

Decidi rever um texto que ele compartilhou, o qual eu deveria ler, obstinadamente e sem tréguas. Marcelo Rubens Paiva, brasileiro, que Calane não conheceu, mas que respeitou, como respeitou a todos com a mesma simplicidade e cordialidade. Numa das passagens, o texto recordava “Apesar de você, as cores do arco-íris continuarão as mesmas, estarão sempre entre o céu e a terra e continuarão emocionantes e lindas”.

 

Temo que, com a sua ausência, esse amor com as cores de arco-íris, continuará tão infinito e contagiante. Sem limites. Imaginativo e apaixonado pela fantasia, pedia, sempre, que observássemos tudo com olhares apaixonados, como se tudo fosse tão lindo e fascinantemente rejuvenescido.

 

Calane era, pois, essa espécie de Júlio Verne. Esse novelista e poeta francês, cujo nome original foi adulterado, Jules Gabriel Verne 1828-1905. Júlio Verne foi dramaturgo, poeta e ensaísta, cuja obra se configurou como a mais traduzida em toda a história. Fazia predições, em seus livros, sobre o aparecimento dos novos avanços científicos. Sonhou em passar 40 dias no fundo do mar e a ciência criou os submarinos. Invejou a liberdade dos pássaros e imaginou que o ser humano voaria e, até, transportaria carga, algo que os pássaros não conseguem fazer. A aviação deu azo a estas predições. Calane era um pouco este arquitecto das palavras que não deveriam ser esquecidas nos gabinetes e nem nos cacifos ou estantes.

 

Em tudo que já foi dito e, eventualmente, será escrito, retomo suas duas últimas aparições públicas na Universidade Pedagógica do Maputo. Aqui estudou e se converteu em professor, mentor e guia de centenas de estudantes pelo país afora. A UP-Maputo era o seu predilecto projecto de unidade nacional que a independência trouxera e o cativará infinitamente.

 

A UP-Maputo decidiu homenagear o Professor e médico Fernando Vaz. Completava só noventas Primaveras, exuberantemente, dedicadas à sua medicina, cirurgia médica e compaixão para com seus pacientes. 90 Anos de formação e educação de profissionais de saúde. Calane da Silva usou e abusou da graciosidade de sua voz e fez as honras da casa. Deixou que as palavras se transformassem em armas que libertam as ideias progressistas. Pelas suas palavras e abraços, agora tão raros, foram revistos os momentos azuis de uma revolução que agora virou vermelha. Ali estavam a sua Xicandarinha e Malanga, fervilhando as memórias da Lenha do Mundo, de Fernando Vaz e de todos nós.

 

Meses mais tarde, replicou a dose durante as celebrações dos 150 anos de Mahatma Gandhi. Cerimónia inusitada e de rara beleza espiritual e intelectual. Um momento indescritível e de contagiante emoção. Calane vestiu-se de branco, encarnou Gandhi, gesticulou a pureza da paz, liberdade da palavra e reconciliação. Exercitou Yoga e fez meditação transcendental. Espalhou seu perfume poético e fez acreditar num amanhecer sem ódios, sem tiros, na mão plena de bondade e no coração altruísta.

 

Por instantes, sentimos que Gandhi estava ali, visitando Moçambique, falando da sua luta pacífica, no dom da bondade. Ghandi visitará Moçambique e os privilegiados desfrutarão dessa bênção. Nunca mais voltamos a fazer yoga e nem meditamos. Alguns, quem sabe, ainda devem fazer. Inesquecível Calane. Todos nós, com uma peça de roupa branca, sem muita certeza das cores do nosso sangue e vontades.

 

Ao Calane, ficou essa enorme dívida educacional, literária e jornalística. Um penhor que só o tempo saberá pagar e retribuir. Aqui fica, então, esse pedido de desculpas pelas nossas incapacidades, fraquezas e omissões, por não sabermos reconciliar o país, não sabermos transformar os sonhos das crianças e jovens, pela incapacidade de proporcionar um novo amanhecer para todos, ávidos de oportunidades e respeito pela diversidade. Uma pátria de valores e liberdades respeitadas. Também, devemos por não termos sido céleres e mais assertivos para lidar com esta traiçoeira pandemia, covarde e assassina, Covid-19, que rouba de nós, o melhor de nós mesmos. Perdoe-nos por ter-te desacompanhado e te deixado no meio do povo para o qual você sempre viveu.

 

Neste momento da Páscoa, fica, apenas, essa vontade de reler no poema dos olhos das crianças, o amor e a reconciliação, acreditar que essa maldade vai desaparecer. Queremos essa luz esplêndida em nossos corações, para que amanhã seja um outro e novo dia. 

Pág. 27 de 31