Obrigado por me receberem neste encontro. Parabéns aos organizadores destas Jornadas. Moçambique pode ter orgulho na sua intervenção face à COVID 19. Conheço muitos países que se reclamam ricos e desenvolvidos que não foram capazes de sujeitar os interesses políticos e partidários às razões da ciência. Os governantes moçambicanos escutaram os cientistas e seguiram os seus conselhos. E isso é uma tripla vitória: para a ciência, para a governação e para o país. Seria bom que para outros assuntos os dirigentes do país voltassem a aceitar os conselhos da ciência, da arte e da cultura. Venho falar-vos não como biólogo, mas como escritor.
E como escritor, fascina-me o fenómeno do esquecimento. Tenho, para mim, que o esquecimento nem sempre resulta de um lapso. A maior das vezes é uma construção narrativa. Quando nos esquecemos, nós raramente falhamos. Raramente tropeçamos no vazio. Em vez disso, o que acontece é que nós construímos uma outra narrativa por baixo da qual enterramos os tempos que nos causaram medo, enterramos os episódios em que não fomos vencedores. Somos dotados de uma amnésia selectiva que nos desvincula dos grandes sofrimentos.
Às vezes, e isso é o mais triste e mais comum, não existe uma narrativa de substituição. Esquecemos porque, pura e simplesmente, regressamos à nossa velha rotina. Em pouco tempo somos devorados por um quotidiano de pequenas crises e grandes sobrevivências. Mais cedo do que pensamos, voltará a acontecer um outro desastre que nos irá, uma vez mais, apanhar de surpresa. Estaremos, de novo, improvisando respostas de emergência. Estaremos, uma vez mais, desprevenidos perante o previsível. É pena que assim seja.
Na realidade, a lembrança é uma espécie de vacina: prepara nos para lidar com algo que reconhecemos como já vivido. Eu trago uma pergunta simples para esta sessão. E a pergunta é a seguinte: como é que daqui a uns anos iremos recordar a presente pandemia? Essa pergunta pode ser formulada de forma mais directa: será que, depois da COVID 19, vamos criar o novo normal ou vamos regressar ao velho anormal? A melhor maneira de imaginar o futuro depois da COVID 19 é lembrar como, nas anteriores pandemias, a promessa de um novo tempo foi ou não foi cumprida. Pode-se fazer uma pergunta simples: quem ficou a ganhar na longa lista das pandemias: foi a memória ou o esquecimento? Façamos um rápido balanço. Vou saltar por cima das incontáveis pandemias que assolaram a humanidade. E vou escolher apenas a gripe espanhola que, segundo a OMS, continua a ser o maior desastre da história da saúde humana.
Vale a pena, pois, revisitar o ano de 1918, o ano da chamada Gripe Espanhola. Em três surtos sucessivos a Gripe Espanhola matou em todo o mundo 50 milhões de pessoas apenas num ano (dez vezes mais do que a COVID 19 matou em dois anos). Esta pandemia veio junto com a Primeira Guerra Mundial que causou a morte de outras 38 milhões de pessoas. Os governos europeus decidiram esconder a realidade brutal desta doença para não desmoralizar nem os soldados na frente de combate nem as famílias que esperavam que esses soldados voltassem a casa.
O nome "Gripe Espanhola" não vem do local onde teve início o contágio, mas sim do facto de a imprensa espanhola ter dado especial atenção à doença. A Espanha não estava envolvida na guerra, a imprensa de Espanha não sofria de censura em relação à doença. Se estamos a falar em esquecimento é preciso começar por dizer que a maior parte dos médicos que tratavam os doentes da Gripe Espanhola em 1918 já se tinham esquecido da uma outra pandemia que vinte anos antes tinha atingido gravemente a Europa. Nessa altura, em princípios dos anos de 1890, os hospitais europeus ficaram superlotados de pacientes atingidos pela chamada Gripe Russa.
Os europeus mais pobres que, naquela altura, emigraram em massa para os Estados Unidos da América foram acusados de trazer essa doença para o chamado Novo Mundo. É curioso como os países se esquecem da sua própria história e hoje a maior parte dos que protestam contra a migração são filhos e netos de emigrantes. O drama da gripe espanhola não ocorreu apenas na Europa. Curiosamente, a Gripe Espanhola foi escondida pela mesma razão que a fez disseminar pelo mundo: a Primeira Guerra Mundial. Milhares de soldados de todas as geografias foram transferidos para outros continentes. E as consequências foram explosivas. Só na Índia, 17 milhões de pessoas morreram. Em África dois por cento da população desapareceu. Na África do Sul a história da Gripe Espanhola está bem registada.
Em Setembro de 1918 dois navios de guerra vindos da Inglaterra chegaram a Cape Town transportando 2000 soldados sul-africanos negros. Esses soldados estavam a ser repatriados depois de passarem um ano nos campos de batalha de França e da Bélgica. Actuavam apenas em serviços de apoio logístico já que a lei sul-africana da altura proibia os negros de usar armas. Algumas dezenas desses soldados vinham infectados e foram encaminhados para as suas terras de origem.
O resultado foi o seguinte: em menos de dois meses morreram 300 000 sul africanos. (Lembremo-nos que em dois anos da COVID 19 morreram 83 000 sul africanos). Durante a Gripe Espanhola, seis por cento da população do país desapareceu em menos de dois meses. A África do Sul foi uma das nações mais atingidas do mundo. O mesmo drama aconteceu no Quénia que perdeu 150 000 pessoas em menos de nove meses. Este número de vítimas equivalia a 6 por cento da população total do país. (É preciso lembrar que agora, com a COVID 19, morreram 4800 quenianos). O Gana viu morrer 100 000 dos seus cidadãos. Na Tanzânia, dez por cento da população foi dizimada, mas o drama teve repercussões ainda maiores porque à doença se juntou uma seca e a fome que matou outras milhares de pessoas.
Em Moçambique não encontrei registos da pandemia nem há censos precisos e abrangentes do conjunto da população na primeira metade do século 20. Sabemos apenas que em 1950 a colónia de Moçambique tinha 6,5 milhões de habitantes. Se aplicarmos a taxa de mortalidade dos países vizinhos a uma população que poderia variar entre 4 a 4.5 milhões de habitantes poderemos deduzir de forma muito grosseira que Moçambique terá perdido naquela pandemia entre 100 000 a 200 000 pessoas.
As duas únicas referências especificas relacionadas com a situação sanitária em Moçambique em 1918 são as seguintes: - "No Final da Grande Guerra de 1914-1918, foi aberto o Cemitério de São José de Lhanguene com o objectivo de acorrer aos enterramentos em massa das muitas centenas de indígenas vitimados pela epidemia pneumónica. “ (A Pandemia da Gripe Espanhola em LM 1918, Alfredo Pereira de Lima, no site The Delagoa Bay World) - a segunda referência tem a ver com portugueses que saíram de Moçambique num navio chamado “Moçambique” em 1918. O navio saiu de Lourenço Marques com 952 passageiros que estavam distribuídos em quatro classes. A mortalidade na 4.ª classe, na qual se encontravam mais de 500 soldados, foi superior a 30%. Nas restantes, em que viajavam sargentos, oficiais e civis, foi de 7,2%.
Quem relata este episódio é um médico português chamado Ricardo Jorge que deu o nome ao Instituto de Saúde Ricardo Jorge em Portugal, com quem o nosso Instituto Nacional de Saúde mantém um acordo de cooperação. Na altura, Ricardo Jorge era comissário-geral do governo na luta contra a epidemia e deixou escrito o seguinte comentário: Não tenho nenhuma dúvida: Os vírus não atingem toda a gente da mesma forma. Os mais pobres pagam a pior fatia da crise". E foi isto que consegui para Moçambique.
No nosso caso, existe mais do que um esquecimento. Não há registos escritos que apoiem quem se queira lembrar da pandemia em Moçambique. Falamos de uma amnésia generalizada dos factos públicos. Mas este esquecimento atinge a área médica e a pesquisa científica. Equipes de investigação de laboratórios do Exército dos EUA iniciaram o estudo da etiologia da Gripe Espanhola por volta de 1951.
A razão fundamental para conduzir esse estudo não era a curiosidade científica, mas aquilo que se entendia como segurança militar. Um projeto super secreto referido com o nome de código Project George fez com que fossem exumados corpos de soldados norte-americanos que tinham sido enterrados nas terras geladas do Alaska. Buscavam-se os segredos genéticos do vírus da Gripe Espanhola. Os dirigentes americanos consideravam esse projecto como sendo de máxima segurança nacional porque receavam que os soviéticos estivessem fazendo a mesma pesquisa a partir dos milhares de soldados que jaziam congelados nas tundras da Sibéria. Essa investigação acabou sendo suspensa e ficou em estado dormência até que, em 1997, um vírus similar ao da gripe espanhola matou uma criança em Hong-Kong. Então a pesquisa voltou a ganhar um caráter de urgência.
Uma das equipes que liderou esta segunda fase da pesquisa foi o Instituto de Patologia das Forças Armadas de Washington liderada por um tal Jeffery Taubenberger. Em 1997, este cientista escreveu o seguinte sobre a gripe espanhola: “não foi o vírus que, na maior parte das vezes, causou a morte. O que foi fatal foi a resposta do corpo da pessoa infectada, resposta conhecida como tempestade ou cascata de citoquinas”. Isto soa familiar? Soa familiar para alguns, mas para a maior parte das pessoas foi como se esta relação causal entre vírus e doença tivesse sido descoberta agora. Disse no início que ia falar sobre esquecimento.
Deixei de lado esquecimentos mais antigos, deixei de lado as pandemias mais antigas mesmo que já tenhamos esquecido que foi a resposta a esses antigos surtos que nos trouxe algumas práticas que pensamos recentes: - a máscara - o distanciamento e o confinamento - a quarentena Estas medidas têm séculos de existência. O escritor Boccaccio já fala de algumas destas práticas no livro "Decameron" escrito em 1350. Contudo, seis séculos depois estas condutas surgem para a maior parte das pessoas como uma novidade.
Voltemos para a pandemia de 1918 para reiterar que esse drama foi incomparavelmente mais grave do que aquele que estamos a viver agora. O balanço é terrível: em apenas um ano um em cada três seres humanos morreu. 1 Os dois terços que sobreviveram estavam 1 Penso que há aqui um erro do autor. A população do mundo em 1918 é estimada em cerca de 1,8 mil milhões de pessoas. Aceitando que morreram 50 milhões de pessoas, a percentagem de mortes seria de menos de 3 por cento, cerca de um décimo do referido pelo autor. absolutamente certos de uma coisa: que a humanidade nunca se iria esquecer daquela tragédia.
A verdade é que esquecemos. Não houve uma intenção deliberada de apagar esse tempo. Houve, sim, outras urgências, outras rotinas, outras tragédias. Mas houve a chegada da chamada “idade de ouro” dos antibióticos, houve uma outra narrativa que afirmava o poderio absoluto da tecnologia, uma narrativa que celebrava a nossa espécie como dona absoluta da natureza e do futuro. Nos dias de hoje, a humanidade está absolutamente convencida que o drama da COVID 19 nunca mais será esquecido. Não sei se amanhã perante um Juiz sentado no tribunal da história os nossos netos não recorram à já célebre resposta: “não me lembro, Meritíssimo.”
Há também a ideia ingénua que o mundo vai mudar radicalmente depois desta pandemia. Algumas coisas vão mudar. E vão mudar para melhor. Mas não sou optimista em relação a transformações de fundo. Aquilo que insistimos em chamar o “novo normal” será, em grande parte, a continuação do “velho anormal”.
Eis algumas tendências que estamos já a ver que se vão manter em todo o mundo:
- Vai-se continuar a desvalorizar a importância da prevenção nas estratégias de saúde a nível nacional e internacional.
- Vai-se manter o domínio de um modelo económico que colocou o Mercado no trono e secundariza o papel do Estado.
- Vai permanecer inalterada a tendência de privilegiar a medicina privada, mantendo fragilizado o sector público que será incapaz de sustentar um justo e eficaz Sistema Nacional de Saúde.
- vai-se manter a marginalização da Organização Mundial de Saúde e das instituições internacionais que podiam assegurar um comando central para as próximas pandemias (num mundo que se proclamava globalizado e no qual se esperava uma intervenção unitária o que aconteceu foi que cada região assumiu as suas próprias normas, os seus calendários).
- vai-se manter uma chocante falta de solidariedade humana e os países ricos continuarão a virar as costas aos apelos para partilharem recursos com os mais pobres (é revelador o facto do único país que enviou ajuda para Moçambique em temos de recursos humanos ter sido curiosamente um país pobre, chamado Cuba).
- vai-se manter uma agenda da investigação científica baseada em interesses de lucro das grandes companhias farmacêuticas.
- vamos continuar a fazer de conta que muitas das nossas escolas não deveriam ter que ser fechadas durante a pandemia porque, em rigor, nunca antes deveriam ter sido abertas. Essas escolas não reúnem as mais básicas condições de higiene. E o mesmo se pode dizer para grande parte dos transportes públicos, dos mercados, dos ginásios, das instituições públicas.
- vai-se manter a ideia de que a saúde diz respeito aos médicos, hospitais e Ministérios da Saúde. Vamos esquecer que a prestação de cuidados de saúde é uma tarefa de toda a governação, uma tarefa de toda a economia e toda a sociedade.
Em suma, nós sabemos quais as lições a recolher. Mas não somos donos das respostas. Assim que surgir a próxima epidemia iremos reagir como se fosse algo inesperado. A COVID poderá ser daqui a umas dezenas de anos uma lembrança vaga, tão vaga como é agora a recordação da Gripe Espanhola. Recordo-me de uma carta que, há um ano e meio, uma centena de intelectuais e artistas africanos dirigiu aos dirigentes políticos do continente.
Essa carta sugeria que se deixasse de olhar África como uma eterna vítima, um continente cuja sobrevivência dependerá sempre da compaixão dos outros. E apelavam para que houvesse uma forma mais criativa de desenharmos os nossos próprios sistema de saúde. Os intelectuais e artistas africanos apelavam para que se introduzissem rupturas radicais nas formas de governação dos nossos países.
E que os africanos deixassem de medir o progresso dos nossos países por indicadores que são ditados pelos chamados “países doadores” como é o caso das taxas de crescimento económico. E que apostassem fortemente em políticas públicas de educação e de saúde que não servissem apenas uma pequena minoria que está mais ocupada no roubo dos bens do Estado do que na promoção de um futuro melhor. Daqui a uns anos a grande pergunta não será se continuaremos a usar máscara e iremos precisar de novas vacinas. A grande pergunta será se teremos escolas com água e casas de banho, se teremos melhores hospitais, melhores transportes públicos e uma vida melhor para a grande maioria do nosso povo.
Chego ao final desta intervenção e preciso de ser verdadeiro com o sentimento que aqui me trouxe e que não é derrotado nem pessimista. Tenho não apenas a esperança, mas a certeza que irão ocorrer mudanças positivas. O que quero dizer é que não vai ser apenas por causa do fim da epidemia que iremos mudar. Serão precisas outras mudanças de fundo, outras vontades, outras formas de governar. A questão é uma outra, bem mais urgente e mais profunda. A questão é que iremos mudar porque não temos escolha. Ou mudamos todos ou não haverá futuro para ninguém. Neste sentido, o futuro é parecido com a vacina. Ou há futuro para todos ou seremos todos vencidos pelo passado.
*Intervenção nas Jornadas Científicas do Instituto Nacional de Saúde – 08.09.21.
Imediatismo - o que tem tendência a agir em função do que oferece vantagem imediata, sem considerar as consequências futuras.
A Mãe Natureza reflecte a base do conhecimento a que os seres humanos se podem inspirar no seu desenvolvimento cognitivo.
Nada nasce por acaso (biodiversidade), a existência de uma espécie tem influência num todo.
Ensina-nos, a Mãe Natureza, que, mesmo quando a inserção é adequada, todos os seres passam por dificuldades durante a aprendizagem e antes da maturidade.
“Aprendizagem é toda a mudança de comportamento, em resposta a experiências anteriores, envolvendo o sujeito como um todo, considerados todos os seus aspectos; os psicológicos, biológicos e sociais. Se algum desses aspectos estiverem em desequilíbrio haverá dificuldade de aprendizagem” (Piaget 1973).
Para que o estimado leitor tenha uma ideia do imediatismo que praticamos quotidianamente, cito alguns exemplos da chamada Escola de Inteligência:
- Sentimo-nos na obrigação de saber ou, pelo menos, ter conhecimento de tudo;
- Desenvolvemos relações sociais superficiais;
- Tomamos decisões sem planejar e priorizar;
- Quando os resultados imediatos se tornam superiores aos valores e princípios. Fim de citação.
Assinalo ainda o uso exagerado nas redes sociais, do Imediatismo, ao se pretender resultados e satisfação instantânea, em questões que levam tempo a dar frutos, como: educação, profissão, saúde, bem-estar e amizade.
Este longo introito deve-se ao facto de cada vez mais nós querermos obter resultados positivos, sem que antes, tenhamos feito um trabalho aturado de estudar, planificar, projectar, construir, fiscalizar, corrigir, adequar e manter de acordo com o contexto.
Porque muitos de nós, cidadãos de países em vias de desenvolvimento, vivemos com a ilusão de que estamos no mesmo ciclo de evolução que outros cidadãos de países tecnologicamente desenvolvidos. Só porque partilhamos canais de televisão, porque estamos em directo nas redes sociais, temos em comum acesso aos motores de busca, consumimos os mesmos hábitos, mesmo que sejam em segunda mão, a exemplo de roupas “de calamidades ou veículos usados” ou porque outros têm de roubar, para comprar esses bens originais.
A mesma ilusão parece estar a acontecer entre os académicos que, tendo adquirido conhecimento teórico e diplomas, em escolas superiores nacionais e estrangeiras, querem aplicar esse conhecimento, sem tomar em conta os ensinamentos da Mãe Natureza, ou seja, sem a adequação ou contextualização de acordo com o meio ambiente.
Os políticos-governantes não podiam estar mais em contra-mão, já que, da sua parte adoptam modelos e ideologias de governação desajustados à realidade dos cidadãos, das infra-estruturas e das instituições. Para exemplo posso citar o INE segundo o qual “só 5% dos casamentos nacionais são formalizados em Conservatória”.
Cá entre nós, fala-se muito de Direitos e Obrigações. Porém, quando verificamos os beneficiários desses Direitos, como: a Educação, Saúde, Segurança, Liberdade de Expressão, do Direito à Informação, da Igualdade do Género, Justiça, do Direito de Eleger e de ser eleito, entre outros estabelecidos pela Constituição, constatamos que tais direitos servem,a menos de 5% da população nacional.
Chegamos ao ridículo de querer normalizar ou legislar particularidades da vida social, em especial dos cidadãos rurais, criminalizando hábitos e tradições.
Em contra senso, fazemos campanhas para legalizar anormalidades, hábitos e tradições de outros povos como sejam: o homossexualismo e o desnudamento da mulher, como símbolos da liberdade. Porquê?
Provavelmente porque estamos ansiosos para sermos reconhecidos como evoluídos, civilizados, desenvolvidos, modernos, etc., etc., por vezes, muito por culpa de um complexo de inferioridade e dependência.
Segundo Piaget, “Aprendizagem é o processo pelo qual as competências, habilidades, conhecimentos, comportamentos, ou valores são adquiridos ou modificados, como resultado de estudo, experiência, formação, raciocínio e observação”. Fim de citação.
O imediatismo de que temos vindo a falar tem a ver com políticas influenciadas, por supostos parceiros, paradoxalmente não aplicáveis nos seus países:
- Aplicar um modelo educacional inadequado - para atingir os objectivos do milénio entre outros;
-Promover a exportação de matéria-prima e importar produtos manufacturados provenientes dessa mesma matéria-prima;
- Erradicar e criminalizar cultura, hábitos e tradições porque “outros países” não praticam e desconhecem a antropologia em questão;
- Aceitar, de olhos fechados, recomendações e conselhos de “especialistas” que não conhecem a realidade dos factos;
- Admitir que 50% da sua população é “marginal ou informal” porque não se encontra registada no sector formal. Porém, casos similares nesses mesmos países “evoluídos” tratam esses marginais ou informais de “incubadoras” como um exemplo a seguir. Como exemplo nos USA, menores com 14 anos podem trabalhar um mínimo de horas (FLSA) de acordo com lei de trabalho justo.
Sinais de uma sociedade imediatista está também entre outros, na ansiedade de sermos mais do que somos, de rapidamente ascender a um patamar sócio-económico superior, infringindo as regras, violando a lei, desviando bens públicos e privados, roubando, pensando apenas, num resultado imediato, ignorando as consequências para si, para sua família e para a sociedade no geral, mais grave quando praticado por políticos e governantes ou afins.
Nunca o mundo teve índices tão elevados de doentes com depressão, (os medicamentos antidepressivos estão entre os mais vendidos no mundo) causados por falsas expectativas, ou pela ilusão de que todos os conteúdos nas redes sociais são verdadeiros, e que estamos ligados ao mundo, quando, cada vez mais isola-nos desse mundo real em que muito queremos estar.
Vamos respeitar as regras, os processos, os retrocessos como parte do crescimento. Vamos aceitar sem complexos, de onde viemos, como somos e tomemos as virtudes e defeitos como partes integrantes do sucesso.
Nenhuma cultura é superior a outra. Nenhum povo está imune a dificuldades. Nenhum governo satisfaz, integralmente, os seus cidadãos. Nenhuma família é perfeita. Nenhuma rosa de qualidade vem sem espinhos. Nenhum sábio sabe tudo.
Temos de conviver com realismo. O tempo das profecias milagreiras já passou há milhares de anos.
Paciência, sacrifício, tolerância, compromisso, são algumas das virtudes para uma coexistência pacífica consigo mesmo.
Devagar se vai longe!...
Correr não é chegar!....
A Luta Continua!
Amade Camal
Eu, apóstolo da desgraça
O processo das dívidas ocultas passou a uma nova fase. Após um sem número de negociações políticas e uma batalha jurídica empoeirada propositadamente, eis que o camarada Chang parece regressar ao solo da pátria amada. Chang no meio desta tempestade de poeira parece ter desempenhado o papel de sargento executor, negociador e de angariação do ´tako´. Isto porque, o comandante parece nada ter assinado. Mandava assinar como dever patriótico.
Entretanto, o “chefe” sabia de tudo através dos responsáveis de briefings, realizaram-se reuniões na presidência. Houve vozes que desaconselharam o avanço do projecto. Mesmo assim, a orientação foi: avance-se.
Não se pode sumarizar um processo tão longo, tenebroso, “gangsterizado” de saque da pátria e do povo (recordam-se desse conceito?), composto por um grupo de artífices, de assinantes patrióticos ou patrioticamente obrigados, aldrabões de camuflagem e da mentira e pombinhas brancas que até nada sabiam do que acontecia e de “facilitadores” dos fluxos de branqueamento de capitais.
A organização do projecto alegava, como fundamento principal, a capacitação do país contra os riscos da pátria: terrorismo, guerras, tráficos de droga, pirataria marítima, etc. Que bonito! Bonito porque, afinal, altas instâncias do poder e/ou seus dependentes estão involucradas nesses crimes da droga, tráficos de madeira, pescado e minerais e produtos faunísticos e até em negócios da guerra. Sabendo-se dos preparativos para uma guerra desde 2012, eis que nada se fez ou, como se diz, estavam mais preocupados em matar Dhlakama.
Quando soaram as primeiras notícias no exterior, eis que estas, para os aldrabões da camuflagem de serviço, diziam ser acção do inimigo, sem fundamento, boatos. Internamente organizações e membros da sociedade civil que procuravam a verdade foram, de imediato, ou foi intensificada, a designação de “apóstolos da desgraça”, aconteceram ameaças e espancamentos. As acções dos esquadrões da morte intensificaram-se.
E o processo de denúncia continuou. A sociedade civil foi exemplar contra ameaças e perseguições, muitos dos seus membros colocaram-se na linha de tiro e grande parte não recuou. As redes sociais de defesa do regime aumentaram a produção, tanto com linguagem primária e boçal, como de ameaças e de propaganda refinada; também nestes espaços, pessoas da sociedade civil resistiram e continuaram o dever de qualquer cidadão. Internacionalmente desenvolveram-se acções de acusação e defesa com implicações na alta finança, também parte desta comprometida com a corrupção e o não-cumprimento de procedimentos para créditos deste tipo, na política envolvendo presidentes de repúblicas.
A PGR e outras instâncias judiciais actuaram politicamente, lentamente e sem opções face aos avanços dos processos fora do país. Muito democracia nesta “pátria amada”.
Iniciado o julgamento, assiste-se a exposições dos acusados absolutamente ridículas. Não se sabe onde foram aplicados 650 mil dólares: ah sim, afinal foi na machamba com produtos para comer! mas por que não comeu logo o dinheiro? E, perante o juiz, há afinal respostas que os chefes proibiram de responder. E o juiz acata.
E os advogados, alguns com nome na praça, não obstante o princípio da presunção de inocência e o direito de defesa dos supostos criminosos ou infractores da lei, e a função do advogado em defender casos perante o tribunal, assumem posições provocatórias (contra as regras de comportamento pessoal em sala de julgamento). Parte das estratégias dos advogados de defesa é geralmente em desviar atenções, concentrar-se em questões secundárias e processuais (muitas vezes não regulamentadas), orientar os seus clientes para alegar segredo de Estado. Será que, sendo advogado, é ético (não digo ilegal nem inconstitucional) defender casos de quase evidente corrupção, assassinatos e outros crimes? Ou ser advogado reduz-se à prestação de um serviço mercantil?
São reveladas transferências e valores dos projectos acima dos contratados, parte destinadas à corrupção directa, com abertura de contas em Moçambique ou no estrangeiro, utilizando, em muitos casos, intermediários de camuflagem. Nada de novo, só a poeira pensando que os moçambicanos são burros. Também são comuns processos de sobrefacturação ou da prática de preços exorbitantes. Neste caso, como é normal, todos os advogados estão coordenados. Como disse o juiz, na audição do dia 25 de Agosto, até vão juntos fazer as necessidades vitais (WC) e saem todos na mesma altura. Até as necessidades estão sincronizadas!
Esta palhaçada criminosa revela: que estamos perante um Estado e o respectivo partido no poder, capturado por ladrões, aldrabões e assassinos, que distribuem o roubo por serviços à “pátria” (assinando contratos livremente ou sob ameaças, pactos de silêncio, negociações, camuflagem e diversionismo). Pessoas que se dizem de libertadores da terra e dos homens, contra a dominação estrangeira, afinal, roubam, desprezam o povo em quase escravatura, fuzilam, matam, chicoteiam e fazem desaparecer pessoas em valas comuns em nome da defesa da revolução e suportados pela violência revolucionária contra a violência reaccionária. Gatunos que se apoderam de bens do Estado (dos cidadãos, a tal palavra esquecida de povo), de dinheiro de bancos, de casas e moradias, de empresários de sucesso que nada sabem de empresas, de gente com dinheiro sem nunca ter produzido ou em cargos.
As dívidas ocultas enquadram-se em contexto de um país onde as elites político-empresariais, onde o Estado organiza a economia e alberga grupos de interesses assentes em famílias, no regionalismo/etnicidade, suportados e protegidos pelo partido, com alianças internas e externas num emaranhado de pessoas, grupos e do Estado.
Dois mil milhões de dólares americanos, são, certamente, peanuts, quando comparado com as negociatas de Cahora Bassa, a fuga de capitais, os contratos de gás e de outros recursos naturais, da energia para o exterior, do pescado e da fauna bravia dizimada, do açambarcamento de milhares de hectares concedidos/licenciados fora da lei, da lavagem de dinheiro e muito mais. E, mais importante, as escolas, centros de saúde, estradas, incentivos à produção, formação de moçambicanos, modernização do Estado e do tecido económico, não construídos, que não se realizaram por conta da corrupção. E pobreza gerada em consequência dos biliões de dólares sugados ao povo moçambicano.
Muita poeira… mas os poeirentos são, afinal, aqueles que procuram camuflar o roubo evitando ou desviando as atenções para questões de menor importância. Há muita poeira, sim, Sr. Guebuza.
Vocês libertadores, que mereceriam o reconhecimento histórico pela independência (não obstante processos sinuosos durante a luta de libertação nacional), passarão para a história como gangues de malfeitores e, eventualmente, com a categoria de lesa-pátrias. Mas afinal, quem lança a muita poeira? É poeirada para esconder crimes. Neste caso não é poeira ou boato …. É uma “desorganização organizada”.
Como a história já não é só escrita pelos vencedores (ainda com a agravante do enorme défice de confiança gerada), A HISTÓRIA NÃO VOS ABSOLVERÁ.
João Mosca
Quando no dia 5 Abril de 2016 o Wall Street Journal trouxe a público o escândalo que hoje denominamos de “dívidas ocultas”, além da incredulidade geral que teve por parte da sociedade moçambicana, não se acreditava que algum dia este caso iria ser julgado.
À medida que se foram conhecendo os contornos do caso e as ligações políticas dos diversos implicados, a descrença foi aumentando de forma generalizada.
Não era para menos. Afinal de contas, tratava-se do maior escandalo de corrupção da história de Moçambique, onde um grupo de moçambicanos que exercia o poder ou tinha ligações próximas ao círculo do poder vigente na altura da contratação destas dívidas, aliado a empresários baseados no Médio Oriente e com acesso a banqueiros europeus, conspiraram para endividar fraudulentamente uma nação, deixando o país com uma dívida oculta, corrupta e odiosa de 2 biliões de dólares americanos (nos cálculos do Centro de Integridade Pública (CIP) e do Chr. Michelsen Institute (CMI), já custou à economia moçambicana mais de 11 biliões de dólares americanos).
Com todo este cenário negativo, o CIP foi um dos poucos actores da sociedade civil que se recusou a desistir do caso, fazendo pesquisa e advocacia para que este, tal como outros casos de corrupção que o país já experimentou, não morresse.
Ao longo dos últimos 5 anos, o CIP pesquisou, documentou e construiu um acervo único sobre o caso nas diferentes jurisdições onde ele está a decorrer judicialmente. Organizou campanhas de advocacia, tal como a famosa campanha EU NÃO PAGO que se tornou viral nas redes sociais, pressionando o poder público a tomar acções enérgicas que visassem a solução do caso. A campanha resultou em ameaças à integridade física dos seus colaboradores e no cerco policial aos seus escritórios. Ainda assim, o CIP não desistiu.
Nestes 5 anos, o CIP tornou-se numa das principais fontes de informação sobre o que estava a acontecer com os outros actores deste enredo que não se encontravam em Moçambique. Em tempo real, e de forma simples, inovativa e criativa, o CIP informou sobre o desenrolar das audiências do antigo ministro das Finanças Manuel Chang, no tribunal de Kempton Park em Johanesburg. Com dois telemóveis, um laptop (Borges Nhamire, em Johannesburg, Edson Cortez, na edição nos escritórios do CIP com o apoio de Liliana Mangove no layout e outreach) e uma rede social, no caso concreto o FACEBOOK, mostraram aos moçambicanos que a informação não se recebe somente nos circuitos tradicionais e no horário nobre, mas sim acede-se a qualquer hora e momento e no seu telemóvel. Este caso exigia isso.
O CIP foi a Nova Iorque e cobriu o julgamento de Jean Boustani usando a mesma simplicidade de informar e trazer em tempo real as incidências do que acontecia. No julgamento de Boustani, inovamos adquirindo os documentos produzidos em sede do tribunal, de modo a apresentarmos sólidas evidências do que ali era dito. Mais uma vez, essa ousadia teve custos para organizacão e para todos aqueles que estavam directamente envolvidos nesta empreitada.
As ameaças, calúnias e campanhas de difamação durante esse processo não foram motivo suficientes para que o CIP se desviasse do seu principal objectivo: pressionar os poderes públicos, e sobretudo o judiciário, para que este caso não fosse esquecido. E, de modo a colaborar com as entidades públicas, mais concretamente com a Procuradoria Geral da República (PGR), o CIP adquiriu todos os documentos apresentados em sede de julgamento de Jean Boustani, partilhando-os com a PGR, como forma de auxiliar nas investigações.
As dívidas ocultas tiveram efeitos devastadores sobre a economia nacional. Isso ficou provado num documento que o CIP publicou no dia 27 de Maio do corrente ano, o qual apresenta os custos das “dívidas ocultas”, escândalo que de 2016 a 2019 custou à economia moçambicana mais de 11 biliões de dólares americanos. Parte da defesa dos advogados da República de Moçambique nos processos que correm na Suiça e no Reino Unido, citou este relatório como uma prova clara e inequívoca de que Moçambique e os moçambicanos foram lesados e devem ser compensados.
Hoje, 23 de Agosto de 2021, o CIP lembra o seu papel e contribuição para que este caso chegasse a julgamento, tendo a plena noção que não foi o único actor a influenciar para que isso acontecesse, mas evidenciando que teve um papel chave e determinante para que os implicados neste caso respondessem em julgamento.
O Conselho Constitucional da República de Moçambique proferiu o Acórdão n° 5/CC/2019 de 3 de Junho referente ao Processo nº 6/CC/2017, incorporado no Processo nº 8/CC/2017 sobre fiscalização sucessiva abstracta de constitucionalidade, através do qual declarou a nulidade dos actos inerentes ao empréstimo contraído pela EMATUM,SA, e a respectiva garantia soberana conferida pelo Governo, em 2013, com todas as consequências legais. Outrossim, o Conselho Constitucional, através do Acórdão n.º 7/CC/2020, de 8 de Maio de 2020, referente ao Processo n.º 05/CC/2019 declarou a nulidade dos actos relativos aos empréstimos contraídos pelas empresas Proíndicos, SA, e Mozambique Asset Management (MAM, SA) e das garantias conferidas pelo Governo, em 2013 e 2014, respectivamente, com todas as consequências legais.
Nos termos conjugados do artigo 247 da Constituição da República de Moçambique (CRM) e do artigo 4 da Lei n.º 6/2006, de 2 de Agosto, com alterações introduzidas pela Lei n.º 5/2008, de 09 de Julho, Lei Orgânica do Conselho Constitucional (LOCC) resulta inequívoco que: “Os acórdãos do Conselho Constitucional são de cumprimento obrigatório para todos os cidadãos, instituições e demais pessoas jurídicas, não são passíveis de recurso e prevalecem sobre outras decisões.” Do n.º 2 dos ambos artigos supra referidos, está consagrado que: “Em caso de incumprimento dos acórdãos (…), o infractor incorre no cometimento de crime de desobediência, se crime mais grave não couber.” Adicionalmente, o artigo 214 da CRM estabelece que: “As decisões dos tribunais são de cumprimento obrigatório para todos os cidadãos e demais pessoas jurídicas e prevalecem sobre as de outras autoridades.” O que significa que a lei é clara sobre o valor, natureza e eficácia jurídica dos acórdãos do Conselho Constitucional.
O PROBLEMA
Nos dois Acórdãos em referência, os quais foram esperados com muita expectativa pela sociedade civil, o Conselho Constitucional fundamentou a sua decisão esgrimindo que praticados para contrair as dívidas ocultas são actos inválidos, actos administrativos nulos, por força das disposições combinadas do n.º 2, do artigo 35 da lei n.º 7/2014, de 28 de Fevereiro, e da alínea a) do n.º 2, do artigo 129 da Lei n.º 14/2011, de 10 de Agosto, com consequência jurídica nas Resoluções da Assembleia da República que pretenderam “legalizar” as dívidas ocultas em questão.
Ora, não obstante a obrigatoriedade e a irrecorribilidade das decisões do Conselho Constitucional, o Governo não se mostra cumpridor dos supra mencionados acórdãos, tanto é que avançou com a reestruturação e/ou renegociação das dívidas ocultas em causa para o seu efectivo pagamento aos seus credores, supostamente porque esses acórdãos não são válidos no plano internacional. Mas o Governo, ao contrair as dívidas ocultas, tinha de seguir procedimentos legais essenciais do ordenamento jurídico moçambicano para que as mesmas fossem válidas não só no plano nacional, mas também no plano internacional. Por isso, a seguinte inquietação: Que valor e eficácia jurídica os acórdãos em referência têm relativamente ao pagamento ou não das dívidas ocultas? O Governo está ou não em situação de violação do artigo 247 CRM e do artigo 4 da LOCC? Este artigo não responde cabalmente a estas questões, porém, procura demonstrar a quem cabe responder e por que razão.
Por um lado, o Ministério Público, na qualidade de garante da legalidade e com poderes para o exercício da acção penal devia se pronunciar sobre a problemática da violação dos acórdãos do Conselho Constitucional supra indicados, no sentido de esclarecer a sociedade em que medida esses acórdãos estão ou não a ser violados pelo Governo. A acção pela violação dos acórdãos do Conselho Constitucional cabe, em primeira linha, ao Ministério Público que também não se está a pronunciar devidamente sobre a (i)legalidade da reestruturação da dívida e seu pagamento pelo Governo no contexto dos referidos acórdãos que anulam os actos que deram lugar às dívidas ocultas.
Por outro lado, o Conselho Constitucional, entanto que “órgão de soberania, ao qual compete especialmente administrar a justiça, em matéria de natureza jurídico-constitucional,” em conformidade com o nº 1 do artigo 240 da CRM e considerando, sobretudo, a sua função educacional estipulada no artigo 212 da CRM nos seguintes termos: “Os Tribunais educam os cidadãos e a administração pública no cumprimento voluntário e consciente das leis, estabelecendo uma justa e harmoniosa convivência social”; é mister que o Conselho Constitucional venha a público, revestido da sua função pedagógica, não no sentido de dar parecer, mas explicar a sociedade o valor, eficácia jurídica, sentido e alcance das suas decisões, sobretudo quando são muito problemáticas em termos de compreensão da eficácia das mesmas à semelhança dos acórdãos que proferiu sobre as dívidas ocultas, objecto deste artigo.
Em bom rigor, não faz sentido estes acórdãos não serem percebidos do ponto de vista do valor jurídico prático quando versam sobre um problema de interesse público de grande dimensão, tendo em conta ainda que declara nulos os actos que permitiram o endividamento dos moçambicanos. Mas a nulidade de tais actos, na prática, é também “nula e de nenhum efeito”, na medida em que o avançar no pagamento das dívidas ocultas pelo Governo esvazia completamente o conteúdo dos acórdãos em questão de tal modo que se torna indiferente a existência dos mesmos.
Importa aqui referir que é difícil perceber os acórdãos do Conselho Constitucional em análise de forma isolada sem relacionar com os outros processos judiciais existentes sobre a mesma matéria no que respeita à gestão das expectativas da sociedade relativamente ao comportamento, força e integridade do judiciário como é o caso do famigerado julgamento das dívidas ocultas que se avizinha no quadro do Processo n.º 18/2019-C, com termos na 6ª Secção do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo.
CONCLUSÃO
Qual a ratio dos acórdãos do Conselho Constitucional sobre as dívidas ocultas senão decisões políticas com pele jurídica ou decisões jurídicas com conteúdo e valor político? Na verdade trata-se, pois, de uma espécie de norma jurídica “morta” e caso para dizer que “a montanha pariu um rato.” O carácter moribundo dos acórdãos em questão cria um certo cepticismo sobre a eficácia do julgamento das dívidas ocultas que inicia no dia 23 de Agosto corrente e sobre a esperança pela emanação de uma decisão justa e conscienciosa de cunho jurídico e não meramente de interesses políticos.
No que à geração vindoura de profissionais da justiça diz respeito, é complicado ensinar o valor e eficácia da jurisprudência do Conselho Constitucional com base nos acórdãos em alusão nas Escolas de Direito, senão numa vertente exclusivamente teórica.
Advogado e Defensor dos Direitos Humanos
A recuperação de Mocímboa da Praia, sem dúvidas, marca uma nova fase na luta contra os insurgentes. No campo militar, a moral das Forças de Defesa e Segurança (FDS) e das tropas ruandesas está em alta e novas conquistas são esperadas. Na azáfama das conquistas, o Chefe de Estado Moçambicano pediu à Força em Estado de Alerta da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) que abra caminho à ajuda humanitária em Cabo Delgado. Do seu discurso pode escortinar-se a preocupação em ver reabertos os corredores logísticos por terra e pelo mar. Vale lembrar que o troço Pemba-Palma foi inicialmente preterido pela Anadarko como corredor logístico de suporte às suas operações em Afungi, passando a usar a via marítima e ponte aérea através de Mocímboa da Praia. A Total que adquiriu a concessão de gás à Anadarko, deu continuidade a mesma política e com o agravamento da insegurança, passou a usar a ponte aérea de Pemba para Mtwara na Tanzânia, e deste ponto para Palma.
Os corredores logísticos de suporte a indústria de gás tem sido o centro de atenções dos principais players, incluindo os grupos terroristas. Estes últimos, com um desdobramento adicional no controlo dos recursos naturais do interior, onde se verifica a ausência do Estado, para financiar suas operações. Vários estudos apontam para uma correlação entre a exploração ilegal dos recursos naturais (madeira, caça furtiva, minerais preciosos etc) e o financiamento a actividade terrorista.
Não é minha intenção divagar no campo das operações militares e seus desdobramentos, até porque os dados para o efeito são escassos. No entanto, há que perceber que os grandes players externos, quer estatais e privados, têm clareza dos seus interesses no conflito de Cabo Delgado, quer sejam eles económicos, geopolíticos e até de prestígio e berganhas. Muitos destes interesses estão alinhados ao que chamaria da Primazia da Indústria de Gás, que não necessariamente se alinham ao Interesse Nacional. Há um risco, sempre presente, de confundir-se tais interesses com os interesses supremos da nação, resultando no embaciamento dos reais problemas que o país deve enfrentar, muitos dos quais na origem do surgimento do extremismo violento.
A história da sociedade moçambicana é marcada por ciclos de conflitos intermitentes, saímos de um conflito para o outro, e as estruturas de organização social, produtiva e política absorvem novas formas de conflito. Mesmo partindo do pressuposto, assumido por várias correntes de pensamento, de que fanatismo islâmico é um elemento exógeno à nossa realidade, a verdade é que o mesmo se ancorou em bases sólidas endógenas (factores internos do conflito) que propiciaram a sua transformação em um fanatismo localizado. Aqui reside a importância estratégica da interpretação crítica e minuciosa da recuperação de Mocímboa da Praia e dos seus desdobramentos.
Se por um lado os players externos colocarão maior primazia para indústria do gás (no sentido negativo – retardar a retoma das operações em Afungi e reduzir a competitividade do país; ou positivo – retoma da exploração do gás e seus dividendos), caberá ao Estado Moçambicano discernir suas prioridades endógenas e contrabalançar tais interesses externos. A curto e médio prazos não é, e não deve ser a prioridade do país a retoma das operações da indústria do gás. Pelo contrário, a prioridade são as pessoas; são os milhares de deslocados internos em extrema necessidade de assistência humanitária; é a compreensão e resposta aos elementos endógenos incubadores do extremismo violento, sem dependência da indústria do gás. A ansiedade de colher dividendos da indústria de gás a curto e médio prazos, para fazer face a uma economia em frangalhos, deve ser substituída pela vontade e prontidão em responder aos elementos atrás mencionados sob pena de plantar as sementes dos novos ciclos e formas de conflito e violência.
A opção diplomática defendida por determinados sectores só será efectiva se de forma crítica e pragmática, transitar-se dos chavões políticos para responder aos problemas estruturais associados ao conflito. Há que responder as seguintes questões: i) A Desmaputização do emprego na indústria do gás em Cabo Delgado – em que jovens circunscritos ao espaço geográfico de Maputo (independentemente da sua origem étnica) devido ao acesso a informação, formação e redes de influência, dominam o marcado de emprego associado a indústria do gás em Cabo Delgado; ii) A ausência de um Estado doptado de políticas semi-providencialista e contextualizadas para comunidades marginalizadas de Cabo Delgado, Nampula e Zambézia; iii) O reconhecimento das desigualdades étnicas históricas e históricas elitistas no acesso aos meios de produção; iv) A identificação de formas inclusivas e progressistas para fazer face a informalidade que caracteriza a exploração dos recursos naturais pelo país; e v) A diversidade no acesso as diversas formas de poderes localizados. Estas e outras, são contradições históricas profundas e de longa duração que carecem de um devido reconhecimento e tratamento como uma agenda nacional.