Director: Marcelo Mosse

Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

BCI

Blog

A ciência, assim como o desenvolvimento, são dois campos cuja definição não se mostra tarefa fácil, sendo que ambos estão revestidos de contradição ou falta de consenso teórico. Historicamente, ao abordar sobre o desenvolvimento faz-se referência primária para o campo económico, sobretudo em oposição ao crescimento quantitativo de um determinado país.

 

Relativamente ao termo “ciência”, Fontaine (2008)[1] sublinha que é emprestado do latim scientia, significando “conhecimento” em sentido amplo, ou ainda “conhecimento científico”, e tendo em conta os tempos clássicos o significado da episteme grega – “conhecimento teórico”. Assim, ciência designaria primeiro um know-how obtido pelo conhecimento agregado à habilidade, para então denotar, posteriormente, o conhecimento adquirido em um objecto de estudo detalhadamente definido. A ciência, tanto do ponto de vista teórico como teológico, designará cada vez mais um conhecimento perfeito, preciso, rigoroso e mais preocupado com o formalismo (este formalismo que lhe será conferido, nos tempos modernos, pelo uso generalizado da ferramenta matemática que permite equacionar métodos de pesquisa e resultados).

 

Embora sem consenso, podemos afirmar que no sentido mais amplo, a discussão sobre ciência é agregada numa tipologia onde temos (1) ciências naturais (física, química, ciências da vida, do universo e da saúde); (2) ciências tecnológicas (comunicação e electrónica, sobretudo); (3) ciências humanas e sociais (economia, sociologia, ciência política, antropologia, história, geografia, psicologia, entre outras) ou ainda (4) ciências exactas (matemática, por exemplo).

 

Segundo Chatelin (1986)[2], ciência e desenvolvimento definem uma questão que parece bastante clara. Para o autor, existe uma ideia amplamente aceite de que o próprio desenvolvimento deve ser acompanhado e apoiado pelo progresso científico, embora alguns posicionamentos discordantes às vezes sejam ouvidos. De facto, Chatelin (idem) avança que existe quem afirme que a pesquisa baseada nas humanidades é completamente inútil em países sem desenvolvimento avançado, dado que as necessidades são outras. Embora recorrente, consideramos que tal proposição constitui um exercício teórico equivocado, pois está desprovida de uma convicção real. Para nós, não se pode equiparar a(s) ciência(s) em função do seu peso ou falta dele.

 

Nos últimos anos, o debate entre ciência e desenvolvimento foi substituído pela necessidade de ‘’saber fazer’’[3] e realização de uma ocupação profissional, sobretudo por parte de uma franja populacional considerada jovem em países como Moçambique[4]. As idades entre 14 e 20 anos podem ser consideradas de auto-descoberta, exploração de habilidades e busca de um lugar na sociedade, sendo que é justamente ao longo dessa idade que se cristaliza uma maior capacidade crítica em relação às regras sociais e familiares estabelecidas e a outras coisas que, mais ou menos, simplesmente eram aceites sem questionamento. Em suma, é uma idade biológica desafiadora para muitos pais e professores, sobretudo quando seus filhos e alunos questionam sua “sabedoria” e começam a encontrar respostas para os problemas que eles acham que seus pais não podem resolver adequadamente[5]. Da mesma forma, a ciência explora o mundo além das limitações actuais do conhecimento, desafia a “sabedoria” e se propõe a encontrar respostas.

 

Atrair os jovens para a pesquisa científica também se tornou um tópico de crescente importância do ponto de vista da ciência. Por exemplo, nota-se que cientistas, economistas e políticos em países como Estados Unidos da América vêm lamentando o número decrescente de estudantes que escolhem uma carreira nas ciências naturais e exactas. A preocupação é com a diminuição de potenciais cientistas e engenheiros, o que poderia dificultar o crescimento de indústrias de alta tecnologia, particularmente biotecnologia e tecnologia da informação. A questão de tornar a ciência e a pesquisa atraentes para os jovens gerou muitos debates sobre o futuro da pesquisa em si, bem como das tecnologias relacionadas (Mervis, 2003[6]; Moore, 2002[7]).

 

Se tomarmos a nossa introdução sobre a definição de desenvolvimento e aplicar ao contexto moçambicano, provavelmente não seja possível captar a real sensibilidade sobre o contributo que existe para a ciência. Com a noção de liberdade acoplada ao desenvolvimento, fica-nos como questão compreender de que forma o desenvolvimento pode ser relacionado com a(s) ciência(s). Porém, as advertências actuais para a ciência são numerosas. Sabemos, em primeiro lugar, que a ciência não leva necessariamente ao desenvolvimento, que o tempo de resposta pode ser longo, que apenas parte da ciência pode se tornar útil. Sabemos ainda que as aplicações da ciência nem sempre são boas, a manipulação genética, por exemplo, é assustadora.

 

No caso de Moçambique, verifica-se a tendência de uma aposta baseada na ciência enquanto técnica e prática, dentro de um prisma que pretende, de forma urgente, capacitar uma franja populacional ávida em busca de sustento para alívio de pobreza que, tal como vista por Amartya Sen (2001)[8], é um empecilho para o desenvolvimento como liberdade. O tripé sobre jovens, ciência(s) e desenvolvimento em Moçambique é limitado pelo facto de existir uma preocupação que toma a ciência enquanto um escopo técnico e prático, sem promover áreas que possibilitem abordar a própria ciência por via de outras lentes, ou seja, ciência no plural.

 

Por um lado, a criação do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, e consequentemente do Fundo Nacional de Investigação (FNI), são disso um exemplo eminentemente de aposta técnica, sobretudo quando o FNI se define como tendo a missão de ‘’(...) promover a divulgação do conhecimento científico, a investigação científica, a inovação tecnológica e a formação de investigadores, contribuindo para o desenvolvimento sócio-económico de Moçambique’’[9].

 

Por outro lado, podemos tomar como exemplo a criação da Secretária de Estado da Juventude e Emprego, que toma a ciência como possibilitadora do desenvolvimento de capacidades de uma franja da população, cuja necessidade laboral é premente – o que é feito através do ‘’empreendedorismo’’, formação e capacitação técnico-profissional. Dessa forma, pensamos que a abordagem sobre jovens, ciência e desenvolvimento deve ser feita tendo em conta a existência de outras janelas em que a própria ciência pode ser aplicada, embora se reconheça a necessidade de prover empregabilidade para esses mesmos jovens que enfrentam problemas de variada ordem.

 

Entendemos, por fim, que Moçambique padece de um dilema que pode ser resumido na incapacidade em promover a ciência para além do suprimento das necessidades dos jovens, razão pela qual questiona-se sobre como estabelecer o equilíbrio entre a necessidade de sobrevivência (sobretudo dos jovens), sem excluir a aposta na(s) ciência(s)?

 

*Este texto foi revisto/adaptado de uma comunicação proferida em 12 de Agosto de 2020, por ocasião do Dia Internacional da Juventude, em resposta ao convite da APDS – Academia de Pesquisa & Desenvolvimento Sustentável.

 

[1] Fontaine, P. (2008), Qu’est-ce que la science ? De la philosophie à la science : les origines de la rationalité moderne, Recherche en soins infirmiers, 92(1).

 

[2] Chatelin, Y. (1986), La science et le développement. L’Histoire peut-elle recommencer ?, In: Tiers-Monde, tome 27(105).

 

[3] Do francês savoir-faire ou do inglês know-how, designa um conjunto de conhecimentos, aptidões e técnicas adquiridos por alguém ou por um grupo, geralmente através da experiência, competência na execução de certas tarefas práticas e em determinadas actividades artísticas ou intelectuais.

 

[4] Não existe uma única definição sobre quem pode ser considerado jovem. Porém, a média de idade em Moçambique está fixada nos 16 anos, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE, 2019).

 

[5] Ver mais em Csermely, P. (2003), Recruiting the younger generation to science, EMBO reports, 4.

 

[6] Mervis, J. (2003), Down for the count?, Science, 300.

 

[7] Moore, A. (2002), What you don't learn at the bench, EMBO reports, 3.

 

[8] Sen, A. (2001), Development as Freedom, OUP Oxford, new edition.

 

[9] Fundo Nacional de Investigação (FNI) – https://fni.gov.mz/sobre-fni/ – é uma instituição que se define como promotora da pesquisa científica, tendo como base a inovação tecnológica em Moçambique.

 
Augusto Santos Silva afirmou que não podia deixar passar em claro as declarações do Bloco sobre Cabo Delgado. O que não podemos deixar passar, senhor ministro, é os interesses económicos se sobreporem aos direitos humanos e a comunidade internacional continuar a assobiar para o lado.
Na semana passada, em audição na Assembleia da República, a deputada do Bloco Alexandra Vieira questionou o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, sobre a situação em Cabo Delgado, Moçambique.
 
Alexandra Vieira alertou para as limitações do foco exclusivo numa intervenção armada contra o terrorismo islâmico, defendendo que a mesma não responde à real dimensão do problema. Realçando que o conflito extravasa os contornos multireligiosos e multi-étnicos, a deputada apontou a crescente complexidade da situação. E fez ainda referência às dificuldades económicas que as populações enfrentam, à ausência do Estado Social na província, à delapidação dos recursos naturais, fatores que alimentam o elevado recrutamento interno por parte dos insurgentes entre a população local.

 

O ministro prontamente se insurgiu contra estas declarações, que considerou “não poder deixar passar em claro”. De acordo com Augusto Santos Silva, a questão não levanta quaisquer dúvidas: estamos perante “um bando de pessoas que sabemos constituírem uma tentativa de penetração e contaminação de toda a África Austral pela lógica fundamentalista, islamista, ligada ao chamado Estado Islâmico”. Portanto, para o governante, não está em causa, de forma alguma, o descontentamento e oposição face à ação do governo moçambicano e à delapidação dos recursos naturais em Cabo Delgado.

 

Augusto Santos Silva foi perentório: “É falso que haja grupos de insurgentes entre a população civil. É um insulto aos movimentos de libertação das antigas colónias portuguesas, que, esses sim, tinham enraizamento na população civil, que eram protegidos pela população civil, sugerir que em Cabo Delgado agora o que há é oposição, que conta com o apoio da população civil e que se opõe a um governo opressor ou outras designações”. E acrescentou que está devidamente informado, mantendo-se em estreito contacto com o presidente moçambicano Filipe Nyusi.

 

Senhor ministro, não creio que seja entre as paredes do escritório de Nyusi que melhor se pode inteirar sobre todos os meandros deste conflito.

 

O governo e o próprio Partido Socialista mantêm boas relações com o governo moçambicano e questionam, à partida, qualquer informação que o Bloco de Esquerda apresente, por mais bem fundamentada que seja. Mas, senhor ministro, ouça o que têm a dizer as populações, as organizações, os investigadores e ativistas que estão no terreno.

 

Pode começar com a análise pertinente de um dos mais conceituados investigadores em Moçambique, João Feijó, coordenador técnico do Observatório do Ambiente Rural (OMR), sobre o discurso do presidente Filipe Nyusi à nação, “lido a partir de teleponto e sem direito a perguntas”, no passado domingo.

 

João Feijó explica as debilidades deste comunicado, em que não foi abordada “a complexidade do problema, nomeadamente a capacidade de mobilização e capitalização, por parte dos grupos violentos, do descontentamento local em relação ao Estado”. O representante do OMR lembra que “inúmeros relatórios de pesquisa vêm apresentando evidências de fenómenos de exclusão social num cenário de penetração agressiva do capital, onde situações de pobreza extrema coexistem com uma emergente sociedade de consumo”.

 

Aproveite para se inteirar das preocupações levantadas pela intervenção militar da tropa ruandesa, liderada pelo temível Major General Innocent Kabandana, conhecido por “exterminar opositores de Kagame”, e o recurso a empresas mercenárias.

 

Para um conhecimento mais detalhado da situação no terreno, tem ainda disponíveis vários estudos do Observatório do Mundo Rural, nomeadamente sobre a caracterização e organização social dos insurgentes e sobre as origens do conflito.

 

O fundador e diretor do Centro de Integridade Pública(link is external), Edson Cortez, também explica o elevado grau de recrutamento interno, apontando que “a pobreza e falta de oportunidades que se sentem na região norte podem ter funcionado como catalisador para que jovens fossem aliciados e se juntassem a estes grupos”.

 

alerta do diretor Instituto de Estudos Sociais e Económicos de Moçambique vai exatamente nesse sentido: O Al Shabaad aproveita-se de jovens em situação de desespero e sem perspetivas. Não se pode negar isso”, diz Sergio Chichava.

 

Mas o senhor ministro nega.

 

O briefing do Centro para Democracia e Desenvolvimento (CCD) sobre como “Negociar com Extremistas Violentos em Cabo Delgado" também é de extrema utilidade. O CCD clarifica que a Organização Extremista Violenta (OEV) em Cabo Delgado está mais alinhada “com um grupo criminoso violento do que com um grupo terrorista/insurgente - particularmente dadas as suas fontes de influência e financiamento, e a falta de uma estratégia política, religiosa ou de base ideológica clara”. E enfatiza que, “se as negociações com a OEV em Cabo Delgado forem bem concebidas e geridas, serão um instrumento vital para reduzir a violência e os abusos de direitos humanos”.

 

Senhor ministro, não ignore as advertências dos Médicos Sem Fronteiras, que denunciam “restrições significativas” à resposta humanitária e apontam que “o atual enfoque no ‘terrorismo’ serve claramente os interesses políticos e económicos daqueles que intervêm em Moçambique”, à custa de “salvar vidas e aliviar o imenso sofrimento” do povo. Acompanhe as declarações do diretor executivo da Amnistia Internacional em Portugal, que assinala que a região é marcada pela pobreza extrema, apesar da riqueza dos recursos naturais atualmente explorados por multinacionais, e que “esta injustiça social, esta revolta, é terra fértil para fenómenos como o terrorismo”.

 

E não se esqueça de ler a carta que foi endereçada ao seu governo, em janeiro deste ano, por 30 organizações da sociedade civil, entre as quais Amnistia Internacional, Cáritas Portuguesa, CIDAC, Comissão Nacional Justiça e Paz, Conferência Episcopal Portuguesa e Conselho Português para os Refugiados, em que é deixado um apelo aos meios de comunicação social, pedindo que “informem sobre a crise humanitária de Cabo Delgado e investiguem as diferentes causas desta violência, evitando leituras parcelares” e é realçado “o papel da sociedade civil moçambicana e, em particular a de Cabo Delgado”, com quem trabalham.

 

Já agora, leia também a declaração dos bispos católicos de Moçambique(link is external), que sublinham que o “estado de coisas faz crescer e consolidar a perceção de que por de trás deste conflito há interesses de vária natureza e origem, nomeadamente de certos grupos de se apoderarem da nação e dos seus recursos”. E que afirmam que “é fácil aliciar pessoas, cheias de vida e de sonhos, mas sem perspetivas e que se sentem injustiçadas e vítimas de uma cultura de corrupção, a aderirem a propostas de uma nova ordem social imposta com a violência ou a seguir ilusões de fácil enriquecimento que conduzem à ruína”.

 

Ouça os alertas do bispo Alberto Arejula, presidente da Comissão Episcopal de Justiça e Paz, que lança “um olhar crítico aos projetos de gás e petróleo” e destaca que “a vitória militar não seria uma resposta à complexidade da situação de Cabo Delgado”. E tenha em consideração a opinião do ex-bispo de Pemba, Luiz Fernando Lisboa, que, questionado sobre o que está a acontecer em Cabo Delgado, foi perentório: “Recursos, multinacionais e guerras”.

 

Peço-lhe ainda que não silencie as vozes de Quitéria Guirengane, presidente da Rede de Mulheres Jovens Líderes, de jornalistas como Fátima Mimbire, de jovens ativistas como Cídia Chissungo, que há muito tentam contrariar a campanha de desinformação sobre a situação em Cabo Delgado. E a de quem nasceu, cresceu e trabalha em Pemba, como Abudo Gafuro Manana, membro fundador da Kuendeleya, uma associação inter-religiosa de jovens de Pemba que ajudou no desembarque e assistência aos primeiros deslocados que chegaram à capital da província; ou de Fidel Terenciano, professor e investigador da capital de Cabo Delgado, cujo estudo demonstra que a maioria dos jovens que saíram do garimpo ilegal de Montepuez aliaram-se aos grupos de insurgentes. Ambos traçam o retrato de uma província mergulhada na pobreza, onde os jovens não têm futuro, não têm oportunidades, onde não existem espaços de participação democrática e onde as populações, as organizações da sociedade civil, os investigadores não são tidos nem achados no que respeita à resolução dos seus próprios problemas.

 

Aconselho vivamente a que subscreva o boletim informativo Mozambique News Reports and Clippings, da responsabilidade do jornalista e investigador Joseph Hanlon, que foi repórter da BBC em Moçambique entre 1979 e 1985 e continua a escrever sobre o país. Ficará com um panorama bastante detalhado no que respeita aos interesses em jogo em Moçambique e às consequências da “cultura de impunidade” que se instalou no país. Recomendo-lhe também que dedique algum tempo a ler e ouvir as análises do historiador moçambicano Yussuf Adam, que aponta caminhos que não passam por responder ao terror com terror.

 

Se todo este manancial de informação não lhe despertar qualquer interesse, se optar ficar pelas letras gordas da imprensa, garanto-lhe que também encontra facilmente títulos muito sugestivos nos media: Moçambique: Polícia retém 15 pessoas por suspeita de recrutamento pelos insurgentesInsurgência em Cabo Delgado: Como travar o recrutamento em Nampula?Moçambique: padre e investigador alerta para recrutamento de crianças pelos combatentesInsurgência em Cabo Delgado: Niassa continua local de recrutamento dos grupos terroristasGuerra em Cabo Delgado e jovens sem futuro, entre as preocupações da IMBISA(link is external)

 

De qualquer forma, senhor ministro, o que nós não podemos deixar passar é que um legítimo representante da República Portuguesa integre a campanha de desinformação sobre o que se passa em Cabo Delgado. Que procure silenciar as vozes da população, das organizações da sociedade civil, de investigadores e jornalistas.

 

O que não podemos deixar passar, senhor ministro, é que, mais uma vez, as relações diplomáticas e os interesses económicos e geoestratégicos se sobreponham aos direitos humanos. E que a comunidade internacional continue a assobiar para o lado. 

segunda-feira, 02 agosto 2021 07:18

“Alguma novidade de Kigali?”

“Alguma novidade de Kigali?”. Foi assim que esta manhã, à mesa do café, fui recebido pelos amigos. Pelos vistos será a praxe dos próximos tempos - contrariamente ao habitual – a luz da chegada da tropa ruandesa, sobretudo depois do primeiro briefing, a partir de Kigali, a capital do Ruanda, alusivo a evolução da luta contra o terrorismo em Cabo Delgado. Antes a pergunta, sobre a mesma matéria, dirigida ao último a chegar à mesa e cabendo-o o voto de qualidade, era um tímido “ouvimos dizer que…! Confirmas?”

 

O intróito lembra-me que no quadro da ajuda ocidental ao desenvolvimento de Moçambique, e parte considerável tida como doação (grátis), eu cresci a ouvir que o país não podia fazer determinadas coisas (e soberanas) porque “o Fundo Monetário Internacional (FMI) não deixa”, que “o FMI vai repreender” e que desta instituição, a fonte de informação segura sobre as novidades e contornos do desenrolar dessa ajuda e de outras relações financeiras como fora o caso das chamadas “dívidas ocultas”.

 

Hoje, face aos contornos da presença da tropa ruandesa em Moçambique, para citar um exemplo, oiço/vejo em “reply” o mesmo filme com o FMI, mas actualizado. Na sua comunicação à nação, o Chefe de Estado moçambicano disse que no quadro da ajuda estrangeira (ruandesa), que é solidária (grátis), o comando no teatro de operações continuaria em Maputo. Não se esperou tanto, menos de uma semana, para que os sinais do briefing ruandês, pelo menos por enquanto, indicassem que Kigali será o palco das novidades (e o comando?) e, na senda, o provável destino dos ganhos. Infelizmente, da experiência com a versão original do filme, não se tirara a devida lição de que “a ajuda não é caridade” tal como dissera um antigo e então PM do Canadá, um país doador ocidental, nos primórdios do corrente século, a propósito da ajuda ao desenvolvimento.  

 

Do dito, e para terminar, auguro (oxalá erradamente) que decorrente da caridade de Kigali, ou de uma outra capital que parta a ajuda militar, os nossos filhos cresçam a ouvir de que “Kigali não deixa”, “ Kigali não vai gostar” que “Kigali quer assim” e de que “são ordens de Kigali”. E assim, e em jeito de resposta à pergunta que me fora colocada à chegada para o café matinal, é caso para dizer de que a novidade (da ajuda) que nos chega de Kigali é a de sempre (velha, conhecida e rabugenta) e que só difere o samaritano, Kigali. Alguém confirma?

Definitivamente, a COVID-19 veio para nos matar de verdade e tornar-nos também vivos mortos, matar-nos enquanto vivos! É que, enquanto seres vivos, temos no nosso interior um mundo. Um mundo que vive verdadeiramente dentro de nós. E esse mundo é composto de tudo que vemos no mundo exterior à nossa volta: paisagens, objectos, pessoas, cenários, cenas, eventos, factos… um milhão de coisas. É um facto que temos dois mundos: um, o nosso ‘eu’ interior, nas nossas cabeças; o outro, o verdadeiro, o tangível, à nossa volta!

 

Como nos sentimos quando perdemos a memória de um simples objecto, pessoa, evento, cenas e cenários; quando não nos lembramos de seja o que for? Um grande vazio dentro de nós! E o que acontece quando perdemos, ou nos é roubado, aquele nosso objecto de estimação? Um simples chapéu, um relógio… para não falar do nosso telefone celular… que acontece? Quase morremos, ficamos… down, deeply down! Por fim, o que acontece quando nos morre uma pessoa querida, um familiar, um amigo, ou uma simples pessoa conhecida? Morre uma parte de nós também!

 

Quando morre uma parte do nosso mundo, interno ou externo, somos nós que morremos! É o que a COVID-19 está a fazer: matar-nos verdadeiramente, ou matar uma parte de nós.

 

Morreu o João Augusto Matola. Foi-se mais um amigo! Foi-se mais uma parte do nosso mundo, interior e exterior. Mais do que uma desolação, mais do que estarmos deeply down, é uma parte de nós que morreu.

 

 

Já se disse muito sobre o João Matola, da faceta profissional ou de vida privada: grande profissional, formador, editor, que gostava de puxar pelos colegas, educador, formador, etc. E os seus colegas directos na Rádio Moçambique o disseram com mais e melhor propriedade. E nada do que disseram é questionável. Porém, mais uma ou duas coisas sobre este homem alegre não fazem mal. Amigo de todos, como um seu colega da Delegação de Nampula melhor o disse. Um homem de coração muito aberto, que não sabia fazer maldade a outrem. Um João Matola de energias positivas, como dizemos hoje, alegre. Um homem de riso exuberante, fácil e contagiante; conversador, piadeiro. Boa pessoa. Era sempre prazeroso estar com ele!

 

João Matola faz parte da minha turma na Escola de Jornalismo em 1987, a primeira que inaugurou o ciclo de cursos médios de jornalismo naquele estabelecimento de ensino. Da nossa turma, faziam parte o Adolfo Semente (ex-DM), falecido, Deus o tenha, Marcelino Silva (RM), João de Brito Langa (RM), Simião Pongwana (TVM), o Simão Anguilaze (TVM), o escritor Nelson Saúte, o Leonardo Júnior Sabela (ex-Notícias), o Vasco da Gama (AIM), o Marcelo Machava (DM), o Rui Machango (ex-Notícias), entre outros.

 

No ano e meio em que frequentámos a Escola de Jornalismo, a turma foi quase que uma família, tendo como “pai” o Fernando Couto, pai de Mia Couto, e “mãe”, a esposa daquele! Tratavam-nos, verdadeiramente, como filhos. Tudo fizeram para que fôssemos bons profissionais, mas, antes disso, para que fôssemos grandes humanos. Não me lembro de ter havido querelas de registo durante este tempo todo. O velho poeta Fernando Couto, já falecido, Deus o tenha, estava sempre conosco, ou com quem estivesse na Escola. Conversava, contava histórias e estórias, ria-se (leia-se brincava) connosco.

 

O Matola, como o tratávamos, sobressaía pela sua simplicidade, lidava com todos. Como dizia aquele seu colega da RM, era amigo de todos. Ria com todos, conversava com todos, contava piadas para com todos. Irradiava a sua energia para todos os colegas. Numa palavra: era um grande humano para todos os seus colegas! Mas também jogava futebol. Era um bom jogador de futebol. Muitas vezes, nos fins-de-semana e feriados, íamos jogar ali na ex-Escola Secundária da Maxaquene (agora Universidade São Tomás). Bom centro campista e com boa capacidade de drible e boa visão de jogo! Gostava de jogar com ele, não contra ele...

 

Quando terminamos a formação, fomos colocados em diferentes órgãos de informação. Ele foi para a Rádio Moçambique; pouco tempo depois, foi estudar em Portugal. Mas a irmandade, amizade e o companheirismo, gerados, criados e patrocinados pelo casal Couto na Escola de Jornalismo permaneceram até hoje. Nem o ter ido estudar em terras lusas fez dele um vaidoso! Ficava zangado quando alguém dos seus ex-colegas fosse a Nampula, onde ele foi delegado da RM, e voltasse sem o procurar! Queixava-se nos outros ex-colegas quando os encontrasse!...

 

Vezes sem conta, eu e ele encontrávamo-nos, confraternizávamos, batíamos copos, papos e copos, fazíamos tudo! Mesmo quando terminou a sua casa, há bons anos atrás, fez questão de me fazer saber. Não fomos “phahlar” a casa, mas brindamos no restaurante do Clube de Ténis, ali no jardim Tunduru, tarde adentro!

 

Vá em paz, Irmão, Amigo e Companheiro. Repouse em paz e até sempre! A sua memória ficará para sempre em nós!

 

(ME Mabunda)

Soube esta manhã que o Jornalista João Matola da Rádio Moçambique (RM) partiu. Soube-o ao ler o texto de despedida/homenagem lavrado pelo seu colega da RM, Arão Cuambe e publicado no Jornal Carta. Enquanto lia, invadia-me a memória de um certo dia de Agosto em 2006. Foi um dia de reunião do Conselho de Administração da RM. Eu e um colega, na qualidade de organizadores do I Fórum Social Moçambicano (que teria lugar em Outubro de 2006), participávamos na dita reunião e que definiria as linhas da parceria entre a RM e a organização do Fórum Social Moçambicano, nomeadamente na divulgação e cobertura integral deste evento pela RM.

 

“Temos interesse e queremos ser um parceiro estratégico deste evento”. Assim concluiu Botelho Moniz, que dirigia a reunião que terminara, no ponto de agenda atinente ao Fórum Social Moçambicano, com a indicação do João Matola, convidado a propósito à reunião, para que este fosse o ponto de ligação da RM na parceria com o Fórum Social Moçambicano. Desde esse dia e por 03 meses o João Matola foi mais do que um ponto de ligação - um amigo, conselheiro, assessor, activista social – tendo o seu empenho traduzido numa divulgação e cobertura do evento comparável e de fazer inveja com a de grandes eventos oficiais e privados deste país.

 

Lembro-me, para dar uma ideia do compromisso e entrega de João Matola, que na manhã do dia seguinte ao da reunião do Conselho de Administração da RM, enquanto preparava-me para entrar no ar no programa de Emílio Manhique, outro saudoso jornalista, este pergunta-me para quando é que era o evento. Depois da minha resposta ele ficara espantado pois ainda faltava muito tempo, o que não era normal no seu programa.

 

Da leitura do texto do Arão Cuambe, ressaltou-me o seguinte trecho: “ …Ao final do dia, o João, como um bom “marronga”, com passagem pelas escolas portuguesas, actuava como meu enólogo fazendo-me provar desde a Casa de Insua, de casta agradável, e um bom Borba, entre outros vinhos Portugueses”. Mal ainda terminara a leitura enviei, por Whatsapp, o link do texto a um amigo que também participara na organização I Fórum Social Moçambicano. Com o link foi a seguinte mensagem: “Thomas. Este é quem ficara encarregue pelo Conselho de Administração da Rádio Moçambique para cobrir integralmente o I Fórum Social Moçambicano tendo cumprido com sucesso. De lá até hoje ficamos por tomar um copo e quem sabe nesse dia eu teria tido uma aula sobre vinhos.” Do Thomas, a resposta: “Não repita isso de ficar a dever alguém uma sessão de copos”.

 

“Um copo de balanço” por tomar com João Matola é a sessão em dívida desde os finais de Outubro de 2006 e que desde então, eu e o João Matola, sempre que nos cruzássemos, era recordada como um pendente. E ainda continua um pendente. Saravá João Matola!

sexta-feira, 30 julho 2021 06:57

Uma rechonchuda no machimbombo