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sexta-feira, 30 julho 2021 06:57

Uma rechonchuda no machimbombo

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Quando ela entrou, uma estupefação colectiva capturou a atenção de cerca de trinta e poucos passageiros que haviam embarcado e aguardou que o assistente de bordo indicasse o seu lugar.

 

Olhei com admiração e respeito, nunca na minha vida havia visto um ser daquela dimensão, ultrapassava todas as medidas que a minha mente havia habituado a processar, mais de um metro e noventa de altura, um dos seus braços equivalia a quatro dos meus, e creio que uma das suas pernas correspondia a minha massa corporal.  

 

Ela havia parado no corredor próximo da única entrada de que o autocarro dispunha e aguardava que o assistente de bordo indicasse o seu lugar; entretanto, enquanto ela esperava a transitabilidade, no interior do autocarro, ficou suspensa.

 

Ainda havia lugares vagos em ambas as filas de dois assentos cada. Eu sentava-me junto à janela e havia um lugar vago ao meu lado, não me assustei quando ela iniciou sua lenta caminhada monitorada pelo assistente.

 

O assento vago ao meu lado estava reservado. Eu havia comprado o bilhete a pedido de um familiar que embarcaria no Inchope. Se por alguma razão plausível ela se sentasse ao meu lado, teria de suportá-la até o dono embarcar.

 

Havia chegado ao terminal de autocarros perto das 03:45 horas, acompanhado por um amigo que me dera boleia; há mais de cinco dias que a cidade da Beira era chicoteada por uma chuva miúda que não desarmava. Era a primeira vez que eu era recluso do tempo naquela cidade que prezava.

 

Passageiros com corpos suados e molhados criavam uma mescla odorífica que se exalava pelo machimbombo e esperávamos pacientemente que este partisse para que o ar circulasse e nos livrasse daquele mal-estar.

 

Ela chegou, parou no corredor próximo do meu assento, o assistente esgueirou-se por trás dela e indicou o lugar que ela devia ocupar, era no assento adjacente no corredor.

 

Junto à janela estava sentado um moço mestiço, ela esforçou-se para couber no assento diminuto do autocarro de fabrico chinês. Na primeira tentativa de acomodação ela segurou firme com ambas as mãos os braços da cadeira e fez com que a nádega esquerda entrasse, mas quando tentou acomodar a direita fracassou, e numa nova tentativa só um terço das nádegas ocupou o assento, não alcançou o encosto e a perna esquerda ocupou uma boa parte do corredor. Ofegou sofridamente quando finalmente se encaixou como pode no assento.

 

Espiei-a, ela tinha os olhos fechados, procurava descansar, tinha um rosto gordo e angelical, mil e uma imaginações fruíram pela minha mente, administrar aquele corpo era uma grande responsabilidade, mas fiquei ainda admirado.

 

Finalmente, deu-se a partida, eram perto das 05:00 horas, o céu cinzento continuava a descarregar águas, viam-se charcos ali e acolá nos terrenos baldios, gotas oblíquas sacudiam a janela do machimbombo.

 

Quando chegamos a Nhamatanda, a chuva havia parado, entreabri a janela e uma rajada de vento sacudiu meu rosto assobiando ruidosamente. Reduzi a abertura e o vento tomou outra sonoridade, uma musicalidade que animou o percurso que havíamos feito.

 

Não demorou muito para alcançarmos Inchope, uma pequena azáfama tomou conta do autocarro quando paramos neste grande entroncamento nacional onde muitos destinos se cruzam e o centro do país pulsa. Muitos passageiros apeados consultavam se havia vagas para os seus vários destinos no sul do país. O meu irmão embarcou.

 

O motorista imprimiu uma nova aceleração quando partimos do Inchope apesar da via estreita e de vez em quando o machimbombo era sacudido quando cruzávamos com camiões de longo curso.

 

Chegamos a Muxúnguè perto das 08:00 horas. Paramos e os vendedores informais das bermas iniciaram o processo de marketing dos seus produtos, constituídos principalmente por produtos agrícolas, com destaque para amêndoa de castanha de caju, banana, entre outros; é um entreposto comercial.

 

Depois da momentânea paragem, retomamos o curso da viagem com o motorista a instigar os cavalos chineses do machimbombo que galopavam no asfalto de Moçambique.

 

Eu tinha a minha atenção dividida entra elas, a planície esverdeada que se expunha até se perder de vista no horizonte, e ela, a menina rechonchuda que se sentava perto de mim e continuava dormitando com a cabeça encostada na parte traseira do banco da frente, sempre com ar angelical.

 

Saímos da principal rodovia e embocamos por um pequeno declive também asfaltado, não demorou para que vislumbrasse o leito do rio Save, composto por pequenos riachos ali e acolá, com petizes que se banhavam e senhoras que lavam a roupa, a velha ponte moribunda era reabilitada enquanto a nova era contruída por técnicos chineses, auxiliados por ajudantes moçambicanos, pequenos tabuleiros metálicos constituíam a ponte improvisada que atravessamos.

 

Já do outro lado do rio, agora pertencente à província de Inhambane, no sul do país, o assistente de bordo anunciou:

 

“Preparem os vossos documentos”

 

Os desmascarados armaram-se de suas máscaras e uma pequena agitação tomou conta do autocarro com os passageiros buscando pelos seus documentos.

 

A menina rechonchuda armou-se também da sua grande máscara e o seu rosto foi engolido.

 

O autocarro parou, o processo de desembarque temporário iniciou-se, ela aguardou que houvesse espaço suficiente no corredor, então levantou-se com toda uma prontidão. A sua sumptuosidade corporal ficou logo exposta, mirones fuzilavam-na com olhares curiosos.

 

Como que num passo de mágica inversa, o homenzinho mestiço reapareceu, ainda definhava no assento e ganhava fôlego para se levantar, acentuava-se a sua coloração facial avermelhada.

 

Parasitas de várias instituições devidamente uniformizados assaltaram a porta do machimbombo enquanto desembarcávamos, vigiavam e buscavam uma oportunidade de ganhar uns níqueis.

 

O mestiço abeirou-se de mim e conferiu:

 

“Um gajo nem respirava” – afirmou como um homem livre. Continuou a tagarelar ininterruptamente, fui salvo pelas buzinadas que anunciavam o reembarque. Passageiros apressavam para terminar as suas necessidades.

 

O reembarque procedia-se lentamente com a agente da saúde disparando o termómetro para o pulso dos passageiros enquanto os agentes da polícia e da migração solicitavam documentos de um e de outro a quem desconfiassem.

 

Mais uma vez, o mestiço voltou a desaparecer, aquele espectáculo do homenzinho e “meninona” animava a minha viagem.

 

Quando ela desembarcou na cidade da Maxixe, uma parte de mim ficou ali, continuei viajando absorto na imagem imaculada da mulheraça que ficara inculcado na minha mente. Daí a mais seis horas estaria na cidade de Maputo.

 

O mestiço reapareceu e celebrou a sua liberdade com falácias intermináveis como que a querer compensar a reclusão que fora sujeito.

Sir Motors

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