Completamente embrenhado na sua pré-campanha eleitoral, esquivando-se na figura de Presidente da República, Filipe Nyusi deu, há dias, um ar de pouca graça, mostrando o quão está completamente desfocado quando se mete a falar sobre corrupção. Foi em Mapai, nas profundezas de Gaza. O Presidente disse que tinha uma lista de médicos e enfermeiros envolvidos em corrupção. E ameaçou: vamos perseguir!
Assim mesmo, o candidato da Frelimo, que é o actual Presidente da República, tem a vontade de fazer-se de Polícia. Com a corrupção desenfreada – virou modo de vida a todos os níveis – Nyusi parece não ter armas nem visão sobre como abordar o fenómeno. Ao invés de incentivar o trabalho das entidades do Estado que devem prevenir e repelir a corrupção, ele decidiu exibir seu dedo persecutório, como quem quer implantar um Estado policial contra os funcionários públicos de baixo escalão.
Mas foi sempre assim. O Presidente Nyusi quando tenta falar sobre corrupção cai, facilmente, numa retórica desastrada, desfocada. Seu consulado nunca esboçou uma ideia sólida de reforma anti-corrupção. Com Joaquim Chissano, o aparato institucional foi melhorado com o estabelecimento da Unidade Anti-Corrupção (UAC), depois transformada no actual Gabinete Central de Combate à Corrupção (GCCC).
Com Armando Guebuza tivemos uma substancial melhoria do quadro regulatório, com o estabelecimento da Lei da Probidade Pública. Com Nyusi, é legítimo dizer que nada andou. Nenhuma reforma foi feita. As evidências do saque ao bem público ficaram expostas com o calote da dívida oculta e, nos últimos anos, seu Governo fez tudo para proteger os prevaricadores, não fosse a prisão de Manuel Chang por ordens da justiça americana. E a reacção penal não anda; ou anda a passo de camaleão e, na maioria das vezes, com sinais claros de violação de preceitos legais e de garantias constitucionais dos cidadãos.
Em Mapai, Filipe Nyusi mostrou como está equivocado, completamente sem norte quando aborda a corrupção. Por exemplo, disse que distinguir pequena da grande corrupção era uma falácia. Que tudo era igual. Pior, ele declarou que a corrupção que mais afecta as classes baixas da sociedade era a corrupção do enfermeiro, do médico da maternidade, do funcionário da migração, que cobra para emitir passaportes. Ou seja, a pequena corrupção. Eis o desfoco total do Presidente. Ele está mesmo precisando de umas pequenas aulas sobre probidade e ética na esfera pública.
A distinção entre pequena e grande corrupção é uma distinção operacional. Ajuda na análise ao fenómeno e na busca dos remédios para a sua cura. Misturar tudo no mesmo saco só serve a quem não quer tocar na ferida e insiste em olhar a corrupção apenas como o mal perpetrado por funcionários públicos. É o que faz Filipe Nyusi.
Em Mapai, ele recusa a distinção, mas acaba falando apenas da pequena corrupção, e é isso que convém à Frelimo, um partido afinal mergulhado na grande corrupção. É fácil apontar o dedo aos médicos e aos enfermeiros que falar do efeito nefasto das “dívidas ocultas”, contraídas pela elite do regime. É fácil dizer que a pequena corrupção é mais prejudicial para as classes baixas, pois isso evita que se toque na ferida profunda que a crise causada pelo endividamento ilegal causou na maioria das famílias moçambicanas.
A escolha da corrupção do funcionário público como alvo parece ser uma artimanha para Filipe Nyusi esconder a vergonha que são os negócios públicos deste país, controlados por lobistas sem dó nem piedade, que ganham milhões traficando influências, intrometendo-se no grande procurement público e vendendo ao Governo, grosso modo, muitos serviços que não passam de gato por lebre, degradando a qualidade das instituições do Estado. Adivinhem quem, recentemente, forneceu a máquina de Radioterapia que Filipe Nyusi inaugurou, a 28 de Março, no Serviço de Oncologia do Hospital Central de Maputo. Adivinhem!
Para a população de Mapai é melhor falar no funcionário da migração que atrasa com o passaporte quando a emissão do documento de viagem (e dos BIs) está refém de uma gang que conseguira um contrato (ilegal e ilegítimo) com o Estado para oferecer um serviço de soberania. (Tal como no passado, o Estado ofereceu a inspecção não intrusiva a uma empresa privada, participada pela holding da Frelimo, a SPI, há poucos anos oferecemos a produção de BIs e Passaportes a uma empresa estrangeira, de conduta suspeita, chamada Semlex, belga.
Agora que essa gang foi empurrada para fora do negócio (por outra gang ligada a uma família do topo em Moçambique) eis que a geringonça dos BIs e Passaportes já não anda. Na fábrica, quando os técnicos da Malbauher, a nova concessionária, tentam imprimir o BI biométrico e novos passaportes sai tudo branco. O pior é a alegação de que afinal toda a base de dados com nossos dados de identificação está depositada em servidores fora do país, tudo refém da Semlex, zangada por seu contrato ter terminado.
Ou seja, toda a máquina de produção de BIs e passaportes está emperrada em Maputo, num gigantesco emaranhado de corrupção protagonizado por agentes de colarinho branco bem conectados na hierarquia do poder e o Presidente sabe disso. Mas em Mapai, Nyusi prefere lançar para a fogueira o pobre funcionário público da Migração.
Ao evitar a distinção entre pequena e grande corrupção (mas focando seu discurso na pequena corrupção), Nyusi mostra como o programa da Frelimo não visa mudar as coisas. Como é que Filipe Nyusi insiste na perseguição dos médicos que trabalham nos distritos, como seu grande cavalo de batalha contra a corrupção, quando nos últimos anos as evidências mostram que as finanças públicas estão a saque em montantes astronómicos e ele nada diz sobre isso?
Todos os dias são publicados na imprensa anúncios de adjudicação de bens e serviços ao Estado que são de arrepiar. O mais recente que nos chegou às mãos tinha tanto de ridículo como de arrogante. A contratação de empresa de hortícolas em Chimoio (15 milhões de Meticais) era adjudicada a uma papelaria. Como este, são vários os anúncios mostrando como o bem público está a saque em Moçambique. E o assunto já tem barbas. A reforma do procurement público, com o apoio dos doadores nos anos 2000, acabou sendo um grande fracasso. A lei até pode ser boa, mas a prática é perversa. Se Nyusi mandasse recortar todos os anúncios de adjudicação claramente manipulados teria consigo uma lista fecunda de casos a perseguir, representando vários milhões de USD.
As evidências da manipulação do procurement são tão patentes que leva a estranhar o silêncio do Governo sobre o assunto. Nunca nenhum governante saiu à rua mostrando sua contrariedade. Todos os ministros aprovam a roubalheira em curso. Seu silêncio é tão gritante que até dá para suspeitar se essas adjudicações rocambolescas não envolvem a canalização de uma taxa de corrupção para o partido Frelimo. Em ano eleitoral, pode ser provável que a Frelimo se vá financiar nesse lamaçal de improbidade.
Ouvir o Presidente Nyusi falando sobre corrupção em Mapai foi penoso. Revelou-se um homem sem ideias e sem orientação. Com a campanha eleitoral à porta é de esperar que o Presidente seja mais assertivo e apresente ideias claras sobre o que vai fazer para controlar a corrupção. A sociedade moçambicana precisa de um programa claro para lidar com o fenómeno. A prisão dalguns peixes-graúdos já não é suficiente para nos convencerem de supostas boas intenções. Falta um élan programático com reformas tangíveis mas que exigem coragem. X