O jornalista Marcelo Mosse escreveu, recentemente, algo parecido com a falta de prontidão e desorganização na resposta à emergência que a COVID-19 impõe ao país. Será que era expectável o contrário? Infelizmente, e dói ter que afirmar, uma das marcas “Made in Mozambique” e parte do ADN da Pérola do Índico é a “Última Hora”. Ou seja: deixar tudo para o fim.
E nessa linha, e à hora da refeição, um moçambicano que se preze, deixa o melhor pedaço de carne para o fim. Na escola, o trabalho de investigação é entregue no último dia e até em casos de prorrogação do prazo. Na vida adulta não se difere tanto, conforme os casos - a título de exemplo - da ida ao médico e ao posto de recenseamento eleitoral e ainda no momento de pagamentos às finanças e do manifesto automóvel. Contudo, uma excepção e de ouro: o pagamento de “comissões” (os famosos 10%) que é - sem prejuízo para o infractor - efectuado de forma antecipada.
Neste diapasão, e deveras preocupante, temo, em relação à pandemia COVID-19, que se esteja a confiar em estratégias que fazem também parte do ADN da Pérola do Índico. Uma delas e dos idos tempos infanto-juvenil é o jogo “às escondidas” em que o último escondido, desde que não tivesse sido apanhado, goza de plenos poderes para salvar os apanhados assim que tocasse o ponto da contagem de partida para o esconderijo. A outra estratégia, e das lides do futebol, é o recurso a uma “arma secreta”, que é um jogador que entra nos derradeiros momentos do jogo como a solução final para a vitória.
Dito isto, seria expectável o contrário? Ou não estarão os acontecimentos a desenrolar dentro do quadro lógico do Modus Operandi da “Última Hora” e num cenário - para agravar - em que se desconhece o último dia da acção da fulminante COVID-19. É caso para dizer que os contornos patológicos da dupla pandemia, a COVID-19 e a “Última Hora”, constituam matéria de estudo para a nossa academia, a menos que esta seja uma outra e circunscrita pandemia.
Não restam dúvidas (e nem dívidas) de que a sensação dos dias que correm, e dos que se avizinham, é de tempos de reconciliação em plena guerra. Uma guerra (mundial) que é movida pela pandemia COVID-19, cujo combate (na verdade uma fuga para o exílio) passa por ficar em casa, local, até bem pouco tempo, desconhecido para a maioria de nós, incluindo o leitor. Imagino (e não se assuste) que ainda não se tenha dado conta de que não passas de um mísero (e abastecido/luxuoso) refugiado de guerra, deitado em casa, à sombra do seu sofá.
Em casa - e na qualidade de um deslocado/refugiado - começa o primeiro acto de reconciliação. O segundo é o de reconciliação com o ambiente e o terceiro com a cidade. Sobre o primeiro acto, nas redes sociais, pululam exemplos, e alguns caricatos, como o do marido que se admira ao certificar de que a esposa, afinal, é muito boa pessoa (uma homenagem à simpatia). Em relação ao segundo acto, a imprensa reporta a melhoria da qualidade do ar que se respira, por conta do impacto da redução significativa do uso de meios de transportes motorizados. E do terceiro acto, a reconciliação com a cidade (de Maputo), é visível, por estes dias e com a ajuda do seu edil, que ela exibe, embora com alguma tristeza e incertezas à mistura, boa parte do esplendor da sua visão: "Cidade bela, limpa, segura, empreendedora e próspera".
À janela do seu exílio, conjecturo que o leitor, aliás refugiado, esteja às voltas por não poder usufruir em pleno os resultados da reconciliação. Nem o da reconciliação com a família, pois a ameaça mortífera da COVID-19 não o deixa sossegado, apertando o cerco quer pelos meios de comunicação social quer, e à espreita, por qualquer falha do dispositivo de segurança por si montado.
E por estar exilado em casa, contra a sua vontade, espero, a fechar, que não se aproveite do facto e solicite, à boa maneira moçambicana, o estatuto de refugiado para poder reivindicar fundos – em forma de subsídio ou de outra modalidade – que estejam, porventura, na carteira de projectos dos 700 milhões de dólares americanos que as autoridades do país pediram aos doadores. Do pedido e às pressas, mesmo a fechar, depreende-se que a política de mão estendida é imune ao COVID-19, mas, de certeza, uma outra e necessária reconciliação - para reflexão - em tempos de guerra.
O título é a propósito da “Carta aberta ao Senhor COVID-19” que a escrevi na semana passada. Pelos vistos, o Sr. COVID-19, o Vidinho, como o trato na carta, é igualzinho a uma riquíssima característica da Pérola do Índico, quiçá a do leitor: detém o péssimo hábito de não ouvir instruções ou o conselho de outros. E com o Vidinho entre nós, sem convite, o que está à mão, como prevenção - fora a lavagem - é permanecer imóvel no seu imóvel. Algo que não se está a levar a sério por estas bandas da varanda do Índico.
E por falar em banda, vêem-me à memória a malta de infância da zona e das brincadeiras ou jogos desse tempo. E uma vez que o Vidinho é natural da China, quis a coincidência que a prevenção – ficar no seu imóvel – lembrasse uma das brincadeiras de infância cuja origem é chinesa, que o obriga a ficar imóvel. Estou a falar do jogo “um, dois, três, macaquinho chinês”. Quem não se lembre – e pelo que se assisti, está todo o mundo com uma catedrática amnésia - que “google”.
Contudo, em respeito a urgência sanitária nacional e mundial, vai - à título de puxão de orelha - um trecho dos benefícios desse jogo infantil: “(O jogo) trabalha de forma divertida o conceito de respeitar as regras e da importância de as cumprir”. Certamente, uma boa e recomendável brincadeira didáctica para os tempos difíceis que correm e que se seguem
.
Em caso de movimento contrário, não sobrará uma outra alternativa se não o outro jogo infantil - cuja origem possa ser portuguesa, fincando o pé no tom - de nome “Lá vai o alho”. Neste jogo, um grupo de meninos - denominados burros – fica em fila e curvados com a cabeça em direcção a uma parede ou árvore. O outro grupo, e um de cada vez, em corrida, pulam e aterram, o mais distante possível, nas costas de um dos curvados. A corrida e o salto são acompanhados pelo grito de guerra “Lá vai o alho”. E o que acontece no desenrolar do jogo?
Depois do salto de todos, o grupo curvado (o país) terá que suportar – às guerrinhas como na tourada - o peso do outro grupo, o de cima ( o Vidinho). Por um lado, o país a tentar sacudir o Vidinho e este, por outro lado, envidando esforços para se manter firme. A briga termina depois que se conte até 10, na verdade, 10 fatais segundos. Perde o jogo quem não cumpre as regras ou quando a equipe curvada, o país/os burros, não consiga aguentar a equipa de cima, os que (as)saltam/o Vidinho, e vice-versa.
A minha memória (e trágica), sobre as vezes em que tomei parte do “Lá vai o alho”, assevera que os curvados nem sempre respeitam as regras e muito menos aguentam o peso dos que saltam e se acomodam nas suas costas. Das raras vezes em que foi o contrário - aguentar o peso - os curvados mal se aguentavam para a troca de posição. E assim, fica o recado: Fique em casa ou “Lá vai o Vidinho”!
P(r)ezado Vidinho,
Antes demais as minhas sinceras desculpas pela intimidade e ousadia em aproximá-lo. Embora não me conheças, eu, infelizmente, conheço-te. Tenho acompanhado as tuas peripécias mortíferas pelo mundo fora. Aqui fala Moçambique. Um dos países que ainda não localizaste. Acredito que não seja nenhuma avaria do seu aparelho de localização ou que eu não conste no seu mapa. Ou ainda, porque ando em quarentena – nos anexos da humanidade - desde o meu nascimento. Estou consciente que andas pelo pátio do quintal. E sei de que tarde ou cedo estarei na tua tela. Aliás, quem sabe, enquanto escrevo estas linhas, a porta bata e me abatas. Mas antes, oiça o que tenho para dizer-te, seu patife! (não me leva a mal)
Olha Vidinho,
Espero que aterres em missão de paz. Uma missão não igual à anteriores que já desfrutei no passado. Desta vez, que seja mesmo de paz, efectiva e definitiva. Tenho esperança que assim seja, pois das tuas andanças pelo mundo deu para notar que não lhe falta seriedade – embora fulminosa – em trabalho. Ainda espero que não confundas um país hospitaleiro com um país hospedeiro. Sobretudo, que não uses e abuses da minha hospitalidade – como tantos o fizeram e o fazem - para hostilizar-me e, no final, deixar-me mais hospitalizado do que me encontro desde a tenra idade.
Vidinho,
A tosse, as febres, as dores musculares e de cabeça que anunciam a tua chegada não me são estranhas. Elas são minhas companheiras há mais de 40 anos. Destes sintomas, temo que a tosse, curiosamente a mesma tosse do SOS da minha sobrevivência, que de tão audível e com stereo, denuncie o meu endereço, um local que o mundo relegara-me e com alguma responsabilidade minha pelo meio e desde o início.
Vidinho,
De tanto hospitalizado, desenvolvi alguma resiliência ao conselho alheio e ao que se passa fora dos meus aposentos. Tenho uma forte e repelente tendência em não perceber os perigos que me rodeiam e assim agir com antecedência. Talvez padeça do Síndroma de Estocolmo: amo os que me sugam e detonam.
Vidinho,
A minha vidinha, nestes quarenta e poucos anos de quarentena, depende do pessoal do pátio e da casa grande. Boa parte dos últimos, não gostaram de certas coisitas que fiz quando deixaram-me sair para uns raios de sol no pátio. Desde então, de joelho, passei a viver deitado. Agora, e a partir dos quadradinhos do leito hospitalar, apenas vejo uma linha longínqua da esperança dos números do norte. Até lá, e nestas condições – e por minha grande culpa - não tenho peito para enfrentá-lo, logo que bateres a minha porta. Pior agora, em que o pátio e a casa grande não vão bem por conta da sua visita. Imagina a mesma visita a quem depende deles? Não venhas, “Please”!
P(r)ezado Vidinho
A terminar - adoentado e deitado nesta vasta cama do índico - encarecidamente, aqui e em todo o lado: “Peço Distras!”. Caso contrário, espero que da tua visita não tenham que inscrever na minha lápide: “Moçambique (1975-2020). Deletado por COVID-19”
Pioras para ti, seu patife!
com sinceridade
Pérola do Índico
Dei-me a pensar, a propósito da briga da última sexta-feira 13, entre o Município de Maputo e os vendedores informais, no que se tenha falhado para que a causa da briga – a pobreza – já não fosse parte da agenda do país. Desse penoso exercício, e sem grande recuo temporal, conclui que a falha foi ou começa, em 2003, com a criação e funcionamento do Observatório da Pobreza (OP), mais tarde Observatório de Desenvolvimento (OD), um espaço tripartido de escrutínio sobre a pobreza em que convergiam (ou ainda convergem) os três mosquiteiros: o Governo, os Parceiros de Cooperação e a Sociedade Civil. Do escrutínio, reza a história, era suposto que fossem desferidos duros golpes contra a pobreza.
Entendo, a partida, que houve falhas na escolha da ferramenta de combate, tanto a original (Observatório da Pobreza) como a rectificada (Observatório de Desenvolvimento). Na original, a pobreza se confundia com a nobreza, tal era o respeito, a ponto de se temer em tocá-la e tão-somente, a satisfação em observá-la. De tanta observação, acaba desabrochando numa paixão dos mosquiteiros pela pureza da pobreza. Desse momento, a observação passa para o (des) envolvimento (entre as partes). E daí, os infindáveis afectos: beijos, abraços e outras coisitas mais.
Hoje, depois de mais de uma década e meia de intenso namoro e pelos resultados, a pobreza foi quem – aparentemente - desferiu os tais duros golpes, a ponto de não existir espaço algum na cidade em que ela não esteja presente. Porque isto incomoda, creio, urge um “Pai, afaste de mim este cálice”. Como o fazer e sem magoar a relação, eis a questão.
E aqui, a terminar, volta a briga municipal da passada sexta-feira 13: pelos vistos, a briga ainda promete e cheira à uma terceira via de observatórios. Desta vez, e com a experiência dos dois anteriores, e ao que parece, não se está diante de um observatório igual, mas sim, de um crematório. Apenas fica por esclarecer, se será o da pobreza ou o de desenvolvimento. Às tantas, em 2003, por aqui devia ter sido o caminho.
Há oito de Março de 1977, no Pavilhão do Maxaquene, o Presidente Samora Machel reuniu com alunos que deveriam prosseguir com seus estudos, na 10ª e 11ª classes, e comunicou-lhes que a partir daquele momento já não tinham mais sonhos. De que em diante: “Não é aquilo que eu quero, não é aquilo que tu queres, é aquilo que nós queremos, aquilo que o povo quer”. E o dito povo, reunido dias antes, no seu III Congresso, realizado em Fevereiro de 1977, decidira que devia sacrificar o sonho destes jovens em prol dos desafios que o país enfrentava na altura. Da data, do discurso presidencial e do percurso dos jovens de então, nasceu a geração “8 de Março”.
Sobre os feitos e defeitos da decisão e da própria geração “8 de Março” muito já foi dito e escrito. De tudo apenas não se compreende uma coisa: por que carga de água a geração “8 de Março” não tomou o PODER? (não confundir tomar o Poder com servir o Poder).
No debate sobre o acesso e controle do Poder no seio do partido dominante, e não só, esta geração não é tida e nem achada e bem que poderia ser uma das alas ou grupo influente. Aliás, a sua participação e influência poderia abarcar outros quadrantes de intervenção pública nacional. Neste Domingo e por ocasião da celebração da passagem do 43º aniversário do encontro de 77, é expectável que os “oitomarcistas” tenham aproveitado para, entre outros, responderem a pergunta, sobretudo e agora que a reforma e as cobranças da consciência, batem-lhes a porta, e esta, para alguns, já se encontra escancarada.
Numa recente discussão com amigos e a propósito da pergunta, ficou patente que a geração “8 de Março” teve (porventura continua a ter) todas as condições para conquistar/exercer/controlar o PODER. Fora o denominador comum de terem sido “vítimas” do 8 de Março, os “oitomarcistas” são, na sua maioria, urbanos, com estudos, vasta experiência profissional e de governação e com uma profunda inserção em todos os sectores-chave de actividades a nível de todo o país, incluindo do partido dominante. Assim sendo, não se compreende que em matéria de Poder, a geração “8 de Março”, não tenha feito melhor que a anterior geração, a geração “25 de Setembro”. Esta , maioritariamente rural, sem estudos, sem experiência profissional e muito menos inserida em sectores-chave da máquina colonial, conquistou o Poder, exerceu-o e controla-o até aos dias que correm. Desta geração, fora a vénia, é importante que se tire dela as devidas lições em matéria de manutenção e expansão do Poder.
Numa comunicação do anterior Presidente da República (PR), Armando Guebuza, por ocasião da passagem do 27º aniversário do 8 de Março e diante de representantes da respectiva geração, disse: “Aproveito esta oportunidade para vos lançar um desafio para que se unam e se organizem (…) para transmitir às gerações mais novas a necessidade de aprofundar os conhecimentos sobre os processos políticos e históricos do nosso país, para neles buscarem referências, exemplos e inspiração, …”. Neste trecho, o então PR faltou afirmar: “Que a geração 8 de Março transmita às gerações mais novas a necessidade e a forma de conquista e manutenção do poder de acordo com os padrões de cada época”. O PR não o tendo tido, é compreensível. Porém, é incompreensível que os destinatários da comunicação nada tenham feito para que tal fosse um dos legados a transmitir.
Nas celebrações dos 38 anos do “8 de Março”, em 2015, um representante da associação com o mesmo nome, intervindo numa sessão de auscultação à convite do actual Presidente da República, Filipe Nyuse, disse: “De nada vale dizer constantemente que nos meus tempos, nos meus tempos, quando daí em diante nos alheamos de tudo o que ocorre à nossa volta” (Jornal Noticias, 18/03/15). E uma das alheações - e bem à volta dos “oitomarcistas”- foi a de terem deixado o Poder passar.
Infelizmente, e por terem deixado o Poder passar, a história não absolverá a geração “8 de Março”. Dela, apenas o registo da prontidão na resposta ao chamamento da pátria, e a podridão na resposta ao chamamento da cidadania.
Em Moçambique, uma estrada em péssimas condições elimina a vida de um veículo e salvaguarda a dos seus ocupantes. Por sua vez, uma em boas condições e por conta de acidentes, elimina a vida de ambos, a do veículo e a dos ocupantes. Neste contexto, não sei se faz algum sentido (atenção o próximo Orçamento de Estado) pedir que o Governo melhore as condições de transitabilidade das estradas. Alinhar nessa diapasão não será o mesmo que o Governo defender a eutanásia (morte assistida) ou, no mínimo, que esteja em curso, um projecto oculto e selectivo de eliminação de certas franjas da sociedade.
O intróito vem a propósito da elevada sinistralidade nas estradas moçambicanas, em particular na N4, aqui citada apenas por razões de proximidade. Igualmente, o intróito vem a reboque do recente debate parlamentar na antiga metrópole, Portugal, referente a despenalização ou não da eutanásia.
Tenho dito, em privado, que graças a manifesta incapacidade do Governo em melhorar a qualidade das estradas que o nível de sinistralidade não é maior e a população moçambicana não é inferior aos actuais 28 milhões. A tal incapacidade ainda concorre para desestimular a compra de automóvel, contribuindo assim para um ambiente são quanto a poluição atmosférica. De per si, isto já seria o suficiente - barata e ao alcance dos moçambicanos – para se apostar como uma fórmula/estratégia rumo ao desenvolvimento sustentável. As Nações Unidas agradeceriam imenso por este contributo imensurável do país ao mundo.
Mas, infelizmente, fora melhor denominação, esse não é o entendimento. Do debate nacional sobre a sinistralidade, emergem várias soluções que recaem sobre a (i) fiscalização, a (ii) infra-estrutura e o (iii) comportamento humano. A primeira, porque à troco de alguma cifra o regulador deixa passar o infractor (automobilista). A segunda, porque a melhoria não previra um separador físico entre os dois sentidos. A terceira, porque o automobilista se fez à estrada embriagado e o peão sem respeitar as regras ou os pontos de travessia.
Dito isto, pergunto: haverá algum interesse para que assim continue? No mínimo e pelo resultado (elevada sinistralidade), a contínua insistência governamental na melhoria das estradas nacionais alimentam severas desconfianças em relação aos reais interesses do Governo. Em tese, e perante os factos, o Governo aposta os parcos recursos dos contribuintes na criação de condições para o luto das famílias dos próprios contribuintes. Um assunto para perguntar: ajudar o outro a morrer, não será um crime?
Pelos vistos não é crime. E aqui entra o debate sobre a eutanásia em Portugal. Dele, retive o essencial - através da seguinte frase: “O suicídio não é um crime em nenhum país. Parece-me um pouco ridículo que seja crime ajudar alguém a fazer uma coisa que não é crime.” (Philip Haig Nitschke, activista pela morte assistida ao jornal português expresso do dia 20 de Fevereiro corrente). Neste sentido, e extrapolando para a realidade moçambicana, quem se faz à estrada ao volante e embriagado ou que não cumpra as regras de travessia é um suicida. E o suicídio em Moçambique também não é crime, tanto para quem o cometa e por arrasto, para quem o ajude nessa empreitada trágica.
Todavia, e perante a insistência governamental em aprovar e executar anualmente um Orçamento de Estado que aposte e priorize a melhoria das estadas, não me admira que um dia, os defensores dos direitos humanos processem o Estado por reiterada tentativa de genocídio.
O 14 de Fevereiro, o dia dos namorados, já passou, mas as suas incidências ainda se fazem sentir por estas bandas da capital da Pérola do Índico. Desta vez por conta de um florista que ameaçara um seu cliente assíduo da data em apreço e de outras ocasionais. A ameaça: executar uma acção extra-legal ou judicial contra o seu cliente, a quem acusa de ser um devasso social.
O histórico: no dia 14, desloquei-me ao estabelecimento do florista para os devidos efeitos. No local deparei-me com um alvoroço total. Pela primeira vez, e diante do citado cliente, o solícito florista se recusava a vendê-lo as habituais flores bem como a respectiva entrega às destinatárias. O alvoroço recheou toda a hora do almoço, período das rosadas visitas do cliente assíduo . A desordem foi tanta a ponto do florista fechar o estabelecimento.
Em pouco tempo da minha estadia no local deu para perceber a querela: o florista queria dar um “BASTA” ao modo de vida de “Don Juan” do seu cliente. Isto depois de quase duas décadas de préstimos inestimáveis e a ponto de se sentir cúmplice e abusivamente usado pelo histórico cliente. Este, todos estes anos, recorrera aos serviços do florista para presentear a sua “Rosa” (o jeito carinhoso que ele trata a mulher) e a toda prole da sua concubinagem, que até não lhe caía mal na imagem de bem sucedido. Aliás, e ao que parece, um direito constitucional que o florista não se importava em auxiliar o seu cliente na sua materialização. Isto foi até ao passado dia 14 de Fevereiro. O dia em que a nova concubina a ser presenteada - passando a pertencer ao harém do seu cliente - era a filha caçula do florista. Não havia nenhuma dúvida, pois o endereço do cartão das flores era o da casa do florista.
No auge do alvoroço, fui um dos convidados - pelo florista - a ver as provas que sustentavam a acusação. Até então nunca vira um arquivo metodicamente organizado. Uma sistematização comparável só a da Alemanha dos tempos do III Reich. Cada concubina tinha a sua ficha, contendo os dados pessoais e outro tipo de informações adicionais. Em cada ficha os anexos de fotos, vídeos, gravações áudio dos pedidos das flores e a de indicação do nome e endereço das destinatárias, as cópias dos cartões que acompanhavam as flores e por ai em diante.
O passado securitário do florista foi uma vantagem na organização meticulosa do arquivo. E desta vez, um outro tipo de vantagem do seu passado securitário, amiúde, e a par da abertura de um processo judicial, era por ele avocado. À margem do bate-boca, e a propósito da querela “florista vs assíduo cliente”, o recente debate em torno da penalização da invasão a privacidade quase que resvalava em pancadaria entre os restantes clientes.
Infelizmente e por razões de compromissos inadiáveis, tive que deixar o estabelecimento num momento de impasse quanto ao desfecho da querela, sobretudo, à luz do debate sobre a penalização ou não da invasão de privacidade. Haviam dois grupos. Um que defendia o florista, reforçando o argumento (a coesão e paz social) em torno da acusação: o cliente assíduo é de facto (e gravata) um devasso social. E o outro grupo que defendia o cliente, acusando o florista de devassa da vida privada. Quid Juris?
Enquanto deixava o estabelecimento e para relaxar a briga liguei o auricular e na rádio tocava uma música brasileira. Era a música de Jorge Aragão, mas cantada por Emílio Santiago. Estava no fim e dizia: “Malandro! /Só peço favor/De que tenhas cuidado/As coisas não andam/Tão bem pro teu lado/Assim você mata/A Rosinha de dor...”
A reboque do dia 14 de Fevereiro , o dia dos namorados, o mês de Fevereiro é o dito de amor. Em complemento da onda amorística , está o enquadramento do título deste texto (sou louco por ti América, na língua portuguesa) que foi emprestado com a suposta permissão dos compositores/autores brasileiros da música com o mesmo título e feita em homenagem à Che Guevara. Desta não é para ele a homenagem, mas sim para a América (Estados Unidas da América, EUA), que um amigo, seu eterno apaixonado, ofereceu-a um buquê de rosas. Encontrei o tal amigo, no passado dia 14 de Fevereiro - todo de vermelho, incluindo as rosas - à porta da embaixada americana aos gritos: “Soy Loco por ti América!”
Esta cena fez-me algum ciúme. A América também é minha e aposto que igualmente seja tua. Eu tive e tenho um caso - na verdade casos - com a imortal e controversa América. Uma nação indispensável, segundo as palavras de Madeleine Albright, ex- secretária de Estado dos EUA nos tempos do ex-presidente Bill Clinton. No texto “O dia em que me encontrei com Ronad Reagan” é evidente o meu encanto por esta mulher poderosa e talvez por isso: amada e odiada.
Para ilustrar a grandeza de mulher que é a América, nada melhor que recorrer ao conceituado jornalista português, Miguel Sousa Tavares (MST), que, por alturas do sismo que abalara o Haiti, em artigo no Jornal português Expresso de 23 de Janeiro de 2010, escreve:
” …nos grandes momentos da história da humanidade, de há quase cem anos para cá, os Estados Unidos são, de facto, a nação indispensável. Algumas vezes para o mal, outras, como no Haiti, para o bem (…). Em 39-45, como antes, em 14-18, e depois, em 1991, na primeira Guerra do Golfo, a Europa e o Ocidente ficaram a dever a vida ao esforço de guerra da grande nação americana.” No texto e mais adiante MST prossegue: “ (Os EUA) são capazes de produzir um George W. Bush, que impõe ao país uma guerra (segunda Guerra do Iraque) sem sentido, apenas destinada a servir a sua vaidade de se proclamar "um Presidente de guerra", mas também “… são a nação que é capaz de, num instante, mobilizar os meios e a determinação para acorrer a uma tragédia com a dimensão do Haiti e fazê-lo de forma eficaz, profissional e humana”.
Por cá – a Pérola do índico – a generosidade do amor americano, a título de exemplo, ficou patente no projecto “USA for África”, na primeira metade dos anos 80, cuja música, com o mesmo título, reunindo, na altura, o melhor que existia na nata musical americana. No pacote do projecto (do povo americano para o povo moçambicano) veio o leite em pó, o milho/farinha amarela, roupas das calamidades e as carrinhas azuis que são marcas passadas e indeléveis da presença - em terras do índico - dessa namoradinha do mundo que é a América. Outras passagens e mais recentes foram as registadas no quadro do processo de implementação do Acordo Geral de PAZ (1992) sob a égide da ONUMOZ, Cheias do ano 2000 e mais recentemente (2019) aquando dos ciclones IDAI e Keneth e ainda a propósito das “dívidas ocultas”.
Nesta e longa relação, a América ainda foi e é das nações que mais apoia os sectores privado e da saúde, neste destacando os esforços do combate ao HIV-SIDA. E pelos tempos que correm, a América é uma das esperanças para o futuro do país por conta de avultados investimentos das suas empresas na área de hidrocarbonetos. Registar que nos últimos tempos, a América está cada vez mais próxima e mais preocupada com a sua beleza. Ademais a concorrência está à vista, em particular a presença de uma velha e milenar asiática, disfarçada de uma gostosa “quatorzinha” - adoentada por estes dias - que todo o mundo a quer “paquerar”.
Contudo, e desde a primeira troca de olhares, nem sempre a relação foi um mar de rosas. A América, em algum momento da relação, relegou a Pérola do Índico para a categoria de indesejável e a Pérola, bem machão, já considerou a América uma “persona non grata” (pessoa não agradável). Os motivos? não interessa lembrar de momento. Quiçá num outro texto e com um título adequado. Entretanto, quem quiser saber pode ligar para a América, mas antes aconselho ao interessado a “tchekar” o respectivo cadastro pessoal.
E por falar em cadastro, lembro-me das marchas de 2003 - pelo mundo fora e por cá - contra a invasão americana ao Iraque. Foi interessante reparar que os marchantes aliviavam a sede com uma coca-cola e no mínimo cada um trajava pelo menos um dos seguintes itens: Jeans, óculos de sol Ray-Ban, fones da Bose, sapatilhas e boné da Nike. Os mais abastados até que se fizeram à concentração em meios circulantes de marca americana.
E é também por estas e outras razões que a América – amada e odiada - é a tal nação indispensável que no passado dia 14 de Fevereiro, o dia dos namorados, o meu amigo presenteou-a com um buquê de rosas e defronte à embaixada americana, a plenos pulmões, sucessivamente, gritava: “Soy Loco por ti América!”
Há poucos dias, compulsando caixotes de arquivo, achei o original do livro “O Processo Histórico” de Juan Clemente Zamora que prometera oferecer a Marcelino dos Santos, histórico nacionalista, poeta e político moçambicano. A decisão de oferta foi em resposta a curiosidade dele em conhecer a minha biblioteca, manifestada durante uma de duas longas reuniões em que eu participara com ele e outros convidados no mês de Janeiro de 2007. Recordei-me da promessa no texto “Por onde andas, Kalungano?” escrito e publicado, em Maio de 2019, por ocasião da celebração do seu 90º aniversário natalício.
Na publicação do texto, um dos comentários dizia: “Há que saldar igualmente a promessa oculta” (oculta no sentido de que Marcelino não sabia de tal promessa). Confesso que me arrependo por não tê-lo feito e hoje, 11 de Fevereiro de 2020, com a sua morte, a dívida - fazer chegar “O Processo Histórico” a Marcelino dos Santos, também Kalungano, Lilinho Micaia ou ainda “Dôs Santos”- ainda continua por saldar. Segundo Óscar Monteiro, outro nacionalista moçambicano, o “Dôs Santos” era o toque francês pelo o qual o mundo chamava a Marcelino dos Santos nos corredores das conferências internacionais.
Enquanto penso numa alternativa à física para a entrega do livro e fora os episódios dos “meus encontros” com Marcelino dos Santos, narrados no texto a que me referi acima, vêem-me à memória outros momentos e circunstâncias, não tão importantes, mas interessantes, que têm em Marcelino dos Santos o foco central.
Nos preparativos das duas e longas reuniões citadas anteriormente, o interlocutor destacado por Marcelino dos Santos contou-me um episódio de ambos quando da participação de Marcelino dos Santos - como convidado e orador - numa conferência internacional em Paris, França, algures em meados da década de 2000. Creio que foi por ocasião da celebração cinquentenária de um encontro internacional da nata intelectual de nacionalistas e poetas africanos, e não só, que se realizara igualmente em Paris no qual Marcelino esteve presente. Aliás, nessa celebração ele seria um dos ainda vivos participantes desse memorável encontro. Na preparação do discurso, o interlocutor conta que Marcelino dos Santos estava relutante em usar uma certa frase por si recomendada, mas no final aceitou-a. Na apresentação, essa frase foi muito apreciada o que levou Marcelino dos Santos a comunicar ao interlocutor que ele, o interlocutor, passaria a citá-lo quando a empregasse.
Numa recente viagem a Angola, visitei, em Luanda, o Majestoso Mausoléu Agostinho Neto, nacionalista e 1º presidente de Angola. Na sequência de fotografias emblemáticas que passam numa tela gigante vi o inconfundível “Dôs Santos” nos tempos passados e de esforços nacionalistas para as independências africanas. Emocionado, enchi-me de orgulho e ao virar para os lados por pouco dizia aos outros visitantes: aquele é meu “amigo, meu camarada, meu líder!”.
Muitos países africanos exaltam os seu líderes históricos. O Senegal, Gana e a África do Sul aclamam Senghor, Nkrumah e Mandela, respectivamente, e Moçambique aclama Marcelino dos Santos, correligionário das mesmas andanças nacionalistas. Nelson Mandela, o líder histórico sul-africano, um pouco depois de ser liberto (por coincidência no dia 11 de Fevereiro de 1991) perguntara por Marcelino dos Santos num dos primeiros encontros que tivera com delegações moçambicanas. Aliás existem fotografias que testemunham um encontro de Mandela com “Dôs Santos” antes de Mandela ser encarcerado por 27 anos e até da Frelimo ser criada em 1962.
Fora as recordações habituais de ocasião , Marcelino dos Santos também deixa outras facetas para serem lembradas. Uma delas, a de temido dirigente, foi eternizada na sua passagem pela Beira, na qualidade de Dirigente-residente/Governador da Província de Sofala. Há poucos dias, essa faceta foi recordada a reboque de um suposto recrutamento militar à moda da temida “operação tira-camisa”, atribuída a ele nessa passagem pela Beira nos anos de 1983 à 1986 .
Uma outra faceta que retenho era a sua veia desportiva e solidária. Ir a um recinto desportivo , fosse qual fosse a modalidade, e cruzar-me com Marcelino dos Santos era tão normal que passou a ser uma regra. Uma das vezes, nos anos 80, num domingo de futebol, não me cruzei com ele, mas senti inveja de adolescente por causa da sorte de um amigo que pedira e apanhara boleia de Marcelino dos Santos no seu carro protocolar, do centro da cidade até ao Estádio da Marchava.
Ainda no campo das múltiplas e conhecidas facetas de Kalungano , uma a registar é a de boémio. No livro “O meu coração está nas mãos de um negro: uma história da vida de Janet Mondlane”, escrito por Nadja Manguezi , uma das passagens se refere a essa particularidade. A propósito testemunho que as noites de Maputo não eram indiferentes para ele. No início dos anos 90, numa dessas noites e na febre das festas nas flats, cruzei-me com Lilinho Micaia. No decurso da festa e a pretexto de apanhar ar, eu procurava, no espaço comum do prédio, um lugar recatado para trocar algumas palavrinhas. Feito o diagnóstico e enquanto me aproximava, oiço uma voz poética e familiar pronunciando: “Olha para o outro discreto”. Foi bem baixinho, mas o suficiente para que eu ouvisse e partisse para uma outra freguesia.
Com a sua morte - a partida de Kalungano, Lilinho Micaia, “Dôs Santos” - acredito que o vazio que deixa será preenchido por inúmeros testemunhos que imortalizarão Marcelino dos Santos. Um Homem cuja dimensão e trajectória a História deve o seu registo do mesmo jeito que me cabe ainda cumprir a promessa oculta: oferecer a Marcelino dos Santos o original do livro “O Processo Histórico” de Juan Clemente Zamora.
O dia 11 de Fevereiro de 2020, será apenas o de partida terrena de Marcelino dos Santos. Em jeito de despedida, chamar à colação uma das suas célebres frases: “Enquanto houver revolução por refazer, não há tempo para morrer!”. E a propósito da frase e da pergunta “Por onde andas, Kalungano?” o país inteiro responde: “Estou aqui!”
Saravá, “Dôs Santos”!