A educação é um direito fundamental e, ao mesmo tempo, um direito humano, do qual depende o livre exercício e gozo de outros direitos humanos conexos, incluindo o direito ao desenvolvimento, o direito à informação, à participação pública, o direito ao trabalho, à liberdade de pensamento e de escolha do que se pretende ser e fazer, sobretudo, profissionalmente. A educação constitui um instrumento de poder para os cidadãos que lhes permite controlar o curso das suas vidas e contribuir eficazmente para o desenvolvimento da nação. A falta de educação básica ou a má qualidade de formação afecta os conhecimentos dos cidadãos sobre o ambiente, saúde e higiene, o que impacta negativamente sobre a qualidade das suas vidas. A negação do direito à educação nas suas diversas formas, que abrange a má qualidade de ensino, é também denegação do desenvolvimento do pleno potencial dos cidadãos e da participação significativa na sociedade.
O direito à educação enquadra-se essencialmente na categoria dos direitos económicos, sociais e culturais e está plasmado no artigo 88 da Constituição da República de Moçambique (CRM) nos seguintes termos:
Por sua vez, a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (CADHP), de que o Estado moçambicano é parte, determina no n.º 1 do seu artigo 17 que: “Todas as pessoas tem direito à educação.” O artigo 22º da mesma Carta consagra o direito ao desenvolvimento nos seguintes termos:
Este direito ao desenvolvimento está em grande medida relacionado com o exercício e gozo do direito à educação que deve ser acessível, aceitável e de qualidade para a edificação de uma sociedade de justiça social, de bem-estar material, espiritual e de qualidade de vida dos cidadãos, conforme preconiza a alínea c) do artigo 11 da CRM.
A garantia e a salvaguarda dos direitos humanos, dos direitos e liberdades fundamentais cabe, em primeira linha, ao Estado, seja à luz da CRM ou dos instrumentos internacionais de direitos humanos de que Moçambique é parte.
Aliás, determina o n.º 1 do artigo 56 da CRM que: os direitos e liberdades individuais são directamente aplicáveis, vinculam as entidades públicas e privadas, são garantidos pelo Estado e devem ser exercidos no quadro da Constituição e das leis.
Da leitura e exercício hermenêutico da norma contida no n.º 1 do artigo 56 da CRM é fácil perceber a responsabilidade do Estado para com os direitos e liberdades fundamentais como é o caso do direito à educação. No mesmo sentido, a alínea e) do artigo 11 da CRM estabelece como um dos objectivos fundamentais do Estado: “a defesa e a promoção dos direitos humanos e da igualdade dos cidadãos perante a lei.” Importa também referir que o artigo 1 da CADHP impõe que os Estados partes da presente Carta reconheçam os direitos, deveres e liberdades enunciados na mesma e se comprometam a adoptar medidas legislativas e outras para aplicá-los.
Ora, há mais de dez anos que o investimento no sistema de educação tem sido insignificante para aquilo que são os objectivos do sistema nacional de educação definidos na legislação e políticas de educação. O orçamento para o sector da educação, para além de não ser de gestão transparente, revela-se problemático no concernente à alocação de fundos para a construção de escolas, que, infelizmente, tem sido reduzido à “construção de salas de aulas precárias.” A esta situação, acresce o deficiente mecanismo de aquisição do material escolar essencial e de contratação e formação de professores para um processo de ensino e aprendizagem de qualidade, particularmente no ensino primário e secundário.
Outrossim, o governo permite espaço para o consumo de bebidas alcoólicas nas escolas, cujos sistemas de segurança são altamente frágeis. A instalação de barracas e/ou bares nas proximidades das escolas cresceu bastante, constituindo um convite aos alunos e professores para o consumo de bebidas alcoólicas, enquanto frequentam as aulas. Ademais, os currículos do sistema nacional de educação não estão consolidados e não são objecto de um debate público aberto entre os profissionais da educação, encarregados de educação e sociedade civil que trabalham na área de educação e outras conexas, não obstante esses currículos sofrerem constantes alterações ou reformas em períodos muitos curtos à medida que se mudam dos dirigentes do sector da educação.
Recentemente, foi determinada a leccionação de aulas de várias disciplinas por um único professor em determinadas classes em que durante muito tempo cada disciplina tinha o respectivo professor qualificado e não se percebe as razões para tamanha transformação institucional, atendendo ao elevado padrão de qualidade de ensino que se pretende.
No mesmo sentido, os salários e incentivos para os professores, sobretudo os do ensino básico, são extremamente baixos, os livros que deviam ser de distribuição gratuita são na verdade entregues para esquemas de negociação ou venda tanto no mercado negro, como nas escolas privadas ou particulares em detrimento das escolas públicas. Curiosamente, as condições e qualidade ensino nas escolas públicas tendem a ser muito débeis, ao que parece ser para alimentar o ensino privado que é altamente lucrativo para os respectivos donos.
O processo de elaboração e aquisição dos livros escolares tem sido obscuro e não chegam ao País em tempo útil, nem apresentam a devida qualidade de conteúdo para um eficaz e eficiente processo de ensino e aprendizagem, com vista à realização do direito à educação no quadro da Constituição da República em vigor.
Distribuir livros com erros ortográficos e de conteúdo graves é um atentado ao direito à educação, que dá a entender que se trata de um plano obscuro de destruição do sistema nacional de educação e a consequente denegação do direito ao desenvolvimento dos cidadãos e do Estado moçambicano, considerando que estão em prática vários mecanismos e/ou acções que demonstram se estar perante um processo sistemático de debilitação e violação do direito à educação em Moçambique.
Portanto, é notório que o Estado, através do seu governo, não está a cumprir com os seus deveres legais de respeitar, promover, proteger e realizar o direito à educação e, nessa vertente, está, igualmente, a denegar o direito ao desenvolvimento aos cidadãos, pelo que urge uma advocacia e atitude para mudança e eliminação de todas as barreiras ao acesso à educação de qualidade, num contexto de adopção de processos de tomada de decisão transparente e com a participação pública abrangente dos interessados no sector em questão.
Por: João Nhampossa
Human Rights Lawyer
Advogado e Defensor dos Direitos Humanos
A própria baía em si perdeu a beleza, dando lugar a um matagal sem sentido, que tomou o lugar de veraneio da urbe, tirando assim o direito aos banhistas e a todos aqueles que já não podem contemplar uma maravilha que nos punha em contacto visual com toda esta paisagem exuberante que inclui a península de Linga-Linga e o arquipélago de Mucucune – por um lado - e a soberba do coqueiral que se ergue do outro lado, onde a Maxixe perdeu também, ao longo da orla marítima, a sua liberdade, por conta das construções que nunca obedeceram a nenhuma regra.
Os bancos de areia têm nome, todos eles, cada um com o seu potencial pesqueiro e seus tabus, porém – apesar desse diferencial - o que havia neles de comum era a fartura. Por isso mesmo, homens e mulheres, em maré vaza, atravessavam em pequenos barcos à vela, na demanda do abundante pescado que incluia a apanha de carangueijo e moluscos e camarão, e não havia dúvidas de que os cestos voltariam mais do que abarrotados, para gáudio de famílias inteiras que nunca souberam o que é fome.
“Boni” será - provavelmente - o banco mais conhecido e se calhar o mais produtivo e o de maior extensão territorial. Em dias de pesca e de apanha e de arrasto, as pessoas eram desembarcadas aos magotes e espalhavam-se como baratas assustadas, mas era mentira, levavam dentro delas a certeza e a alegria de que voltariam para casa abastecidas. E todo aquele trabalho que faziam – muitas vezes debaixo de frio intenso e chuva – dáva-lhes prazer por saberem que os resultados seriam por demais compensadores.
Os bancos de areia da baía de Inhambane eram uma música, repetida na cidade e nos subúrbios, num ritmo que ressurgia com fulgor em cada refeição ou em cada petiscada nas bebedeiras de sura. Também eram uma jazida interminável que proporcionava renda a muitos e, por tudo o que representaram na economia e na sociedade, nunca vão deixar de ser património valioso.
Mas hoje ninguém fala dessas fontes de energia, pouca gente as procura, porque já não têm nada para dar, ou têm muito pouco. Há uns que dizem que aqueles bancos de areia e as suas circundantes águas misteriosas outrora promissoras, foram profundamente exploradas até a exaustão. Foram esvaziadas. Todavia, há aqueles que defendem outro pensamento. Segundo eles, foi o próprio Deus que diminuiu as bençãos, por ira. E, como todos nós sabemos, depois da Palavra de Deus, não há outra palavra. Assim, o mito morreu, e com ele a nossa esperança.
Comemorando os 100 Anos de José Craveirinha, Poeta-mor!
Desde que partiste
Não parámos de gritar
Pois diferente de outrora
Quando vivo entre nós estavas
Hoje mais negros nos tornamos
E nosso patrão é nosso conhecido-irmão
E como antigamente, ainda somos carvão!
Desde que partiste, ó nobre Mestre
Ainda somos arrancados do chão
Como minas de Moatize e outras geografias
Somos explorados sem auditoria honesta
Não apenas por Vales que das nossas terras nos baldeiam
Mas também por aqueles que dizem sacrificialmente lutar
Para nos proporcionar o sonho que nos fez batalhar
Contra a escravidão de brancos e pretos embranquecidos!
Desde que partiste
Quem explora a nossa mina
É o nosso irmão, mas hoje um ferino patrão
E nós, ó nobre Mestre, continuamos mais pretos, carvão!
Desde que partiste
O irmão que nos deixaste
Com o tempo, como um génio camaleão
Camufladamente, ao olho nu, foi-se revelando
Um autêntico capitalista, um supremo-patrão!
Desde que partiste, ó nobre Mestre
Nossas estradas ganharam novos donos
E mesmo abarrotas de valas comuns
Que escondem sangue de gente inocente
Até dentro da cidade, não muito longe de Mafalala
Pagamos quotas para à vontade circular!
Desde que partiste
Ao longo das nossas estradas malfeitas
Brotaram empreendedores de combustíveis
Especialistas em economia de mercado lobista
Similares a Mestres de Kung fu e Karaté
A cada página de estrada vazia de alcatrão
Apertam o cinto da miséria dos teus pobres irmãos!
Desde que partiste, ó nobre Mestre
Os mesmos velhos que deixaste a governar
Pululam pelas pontas vermelhas, governamentais e municipais
Desta pobre terra de cabo do norte queimado
Como especialistas em inovações químico-laboratoriais
Intoxicam o povo com políticas que dizem a todos beneficiar
Mas sabemos que seus planos e suas estratégias, é tutu mafia!
Desde que partiste
O custo de vida não parou de subir
E a subida de que profeticamente escreveste
Não é só do pão, óleo, carvão, transporte
Não é só da educação, saúde, formação
Nosso batimento cardíaco também subiu
Pois o salário mínimo apenas sobe alguns degraus
Quando já há um plano vampírico para sem dó o tirar!
Desde que partiste, ó nobre Mestre
A educação que nos podia educar
É feita por lobistas designados professores
E os livros que nos podiam iluminar
São malandramente produzidos para nossos filhos deformar
E banhados de ignorância, perdermos o norte que nos podia salvar!
Desde que partiste
Nossa Constituição, aquele livro legal sagrado
Tem sido folheado por cientistas-pecadores
Como um manual de empreendimentos laboratoriais
Para garantir mandatos e a todos controlar!
Desde que partiste, ó nobre Mestre
Até governadores pelo povo eleitos
Como estudantes e funcionários estagiários
Têm supervisores faz-tudos directamente da base central
Afinal, o que deve prevalecer não é a vontade do teu povo irmão
Porém decisões superiores dos famosos Grandes e Eternos Chefes!
Desde que partiste
O que mata os nossos irmãos
Não são guerras, fomes, secas, doenças ou ciclones
É a ganância pintada de coragem de um irmão insatisfeito
Que em revolta, sem coração, prefere inocentes trucidar
Para sua voz ecoar mais alto e sua superioridade declarar!
Desde que partiste, ó nobre Mestre
Pouco se escreve para o povo iluminar
Mas páginas em branco, de livros e manuais, se enchem
E murais de redes sociais espalhados na internet se inundam
Com deformações históricas, geográficas, económicas
Sociais, políticas, religiosas, repletas filosofias sanguessugas
Para deturpar o caminho da educação, saúde e salvação!
Desde que partiste
Ainda somos carvão
Ainda se consome nossa combustão
Mas como abertamente disseste
Arder eternamente, não patrão!
Não poderemos continuar a arder
Ser a mina explorada de um patrão- irmão
Que ontem garantiu até seu sangue derramar
Para nossas vidas economicamente melhorar
E devolver o sangue que por séculos nos foi sugado!
Portanto, ó nobre Mestre
Temos que continuar a arder
E com a chama da nossa combustão
Queimar tudo que malandramente nos sufoca
E com temperos de políticas e má governação
Nosso presente e futuro dos nossos filhos na terra inferniza!
Desde que partiste
Mesmo nascidos em terra consagrada independente
E governados por gente que diz democracia defender
Hoje ainda somos um futuro cidadão
Mas como abertamente disseste
Arder eternamente, não patrão!
Conforme fez ontem saber a sempre solícita porta-problemas, aliás, porta-voz do Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano, os graves erros contidos no livro de Ciências Sociais da sexta classe serão mitigados por via de erratas, o que, pela abundância de gralhas, será, certamente, ineficaz.
Entretanto, acho que uma “errata” de fundo e muito urgente se impõe: desenvolver institucionalmente o Instituto Nacional de Desenvolvimento da Educação (INDE), criando, de entre outros, condições para que possa atrair e reter dos melhores quadros que o país possui. Até onde sei, esse não é o caso neste momento.
Grande parte dos quadros do INDE, maioritariamente formados domesticamente e com cursos de pós-graduação nas melhores universidades do mundo, largaram a instituição à procura de melhores condições (o que é normalíssimo!), estando grande parte deles a trabalhar, actualmente, em projectos de educação sob a égide de Organizações Não-Governamentais (ONGs), como gestores e oficiais seniores.
Naturalmente que se os decisores políticos de topo olhassem, em termos de pacotes salariais, para o INDE como olham para instituições como Gabinete de Informação Financeira de Moçambique (GIFIM) e Banco de Moçambique (BM), o INDE não estaria, hoje, muito enfraquecido em termos de qualidade de recursos humanos.
Ou aqueles que acham que 25 de Junho é “Dia dos Heróis” não encontram, actualmente, “refúgio” no INDE? Permitam-me o exagero, mas é necessário ir para além do aparente.
Ou esta é uma “errata” que não procede por o INDE não ter receita própria?
Enquanto não se empreende uma “errata” tal, talvez seja tempo de se “aplicar racionalmente” a cláusula de “adjudicação directa” que integra o regulamento de contratação pública, ou de “concurso dirigido” (Universidade Pedagógica, UEM, etc.), para a dimensão produção de conteúdos do livro escolar…
Não quero com este artigo proceder à Revisão pontual ou errata dos livros da 6.ª Classe do nosso ensino. Deixemos essa tarefa para quem de direito. O que me faz redigir este artigo é a aparente certa falta de humildade mostrada pelo Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano no que se refere às suas atribuições concernente à produção de livros escolares para o ensino básico.
Cria-me grande desconforto quando me apercebo que os livros que os nossos filhos estão a usar para a sua educação estão repletos de erros, imprecisões, desconexões e, ainda, com falhas sem tamanho.
Um livro escolar é uma ferramenta de importância sem tamanho para a educação dos nossos mais novos. A escolaridade e a educação são a base do desenvolvimento. Daí que o Ministério que tutela a componente educacional deixou de ser simplesmente Ministério da Educação, passando a chamar-se igualmente Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano. É desta premissa que todo o enredo de descontentamento com a conduta deste Ministério começa.
Ainda ontem assistimos a uma Conferência de Imprensa convocada por este Ministério em que, após reconhecerem as gralhas dos livros (um pouco tarde, claro), vieram anunciar a produção de ERRATAS para todos os livros e, ainda, a criação de uma Comissão de Revisão para todos os livros de distribuição.
Até aí tudo bem!
Mas o que me perturba o sono é saber que um Ministério daquela dimensão (dimensão educacional, diga-se) não conseguiu proceder com a revisão de um livro(inho) de pouquíssimas páginas (se compararmos com o número de páginas de um simples romance).
Será que era tão difícil para este Ministério criar uma Comissão de Revisão antes da impressão do livro?
Qual, então, seria a responsabilidade jurídica do Ministério perante os alunos (e não só) que foram mal informados ou, então, puramente desenformados?
Não é admissível que os nossos petizes andem por aí a aprender matérias escolares com base em erros crassos.
Mais ainda, engana-se o Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano se pensa que as crianças e jovens de hoje sofram de alguma “miopia académica”.
Os tempos mudaram. A juventude de hoje tem acesso a telemóveis com internet. Isto é, ao invés de convocar Comissões de Revisão para analisarem os erros dos livros, o Ministério deve, pelo contrário, convocar os próprios alunos (crianças e jovens) a proceder a tal revisão, pois que, só com os seus telemóveis e com acesso ao Google ou Wikipedia, qualquer estudante ou aluno é capaz de proceder com a revisão e a contra-prova das informações contidas em qualquer livro ou manual académico.
É inaceitável que, neste século XXI em que nos encontramos, ainda existam livros para estudantes e de consulta obrigatória para o ensino geral que venham repletos de erros e de matérias duvidosas ou não socialmente aceitáveis (como o caso da educação sexual dos livros da 3.ª classe).
Os tempos são outros.
Quando anos atrás nos queixávamos da falta de informação, em que a informação era apenas transmitida por via dos livros e acessível apenas às pequenas elites, hoje a problemática é bem diferente: assistimos à democratização e excesso de informação ou informação em excesso (se assim se preferir).
Os telemóveis das crianças e jovens estão repletos de vária informação, o que faz com que, hoje, o que se necessite ter é a capacidade de apreensão de informação útil e a rejeição das “fake-news”.
Hoje em dia existem até aplicativos em telemóveis que permitem fazer o que se designa “checkagem” da informação, onde qualquer pessoa pode, em fracção de segundos, verificar a veracidade de uma informação somente apontando a câmara do seu “smartphone” para a informação duvidosa.
O Ministério da Educação de hoje não se compara ao de ontem a que, essencialmente, competia apenas imprimir livros com informação sedimentada e não sujeita ao contraditório. Os livros de hoje são sujeitos à actualização dia após dia, mês após mês e ano após ano. As informações variam recorrentemente, daí que se mostra necessário que o Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano se redimensione e se adapte ao fenómeno das novas tecnologias que trazem consigo novos desafios e responsabilidades.
Mais ainda, é preciso ter-se em conta que a própria sociedade sofreu significativa alteração evolutiva. Quando antes um simples pedido de desculpas nas câmaras de televisão numa Conferência de Imprensa resolvia o problema, hoje, com uma sociedade juridicamente educada, não basta aparecer na televisão, rádio ou jornal e proceder a pedidos de desculpas. Pode ainda esta sociedade exigir alguma quota de indemnização pelos danos causados na componente educacional. Fiquem espertos senhores do Ministério, as coisas mudaram e…
…Cabeças podem rolar!
Não é incomum, na juventude, termos encontros decisivos. Muitos escritores conheceram, quando debutantes, os seus precursores. Eu cheguei à casa do Poeta José Craveirinha com menos de 20 anos. Tive o privilégio de ser amigo e de conviver com ele e com outros nomes - ia dizer numes e não estaria longe da verdade -, que iluminam e distinguem a literatura moçambicana desde a sua fundação. Aliás, José Saramago, único escritor de língua portuguesa, laureado com o Prémio Nobel, disse-me, um dia, ao ver a cumplicidade que tinha com José Craveirinha, Noémia de Sousa, Rui Nogar, Rui Knopfli, ou Aníbal Aleluia, que eu estava a conviver com os meus antepassados literários.
José Craveirinha era uma grande personagem antes de ser um soberbo Poeta. Tenho pensado ao longo destes anos que ele talvez fosse uma verdadeira figura de romance. Não iludo que merecesse uma empenhada biografia literária e de vida. Uma biografia de grande fôlego. Como somos um país que preza a desmemória ou a amnésia, o desconhecimento ou a desconsideração, reiteramos vacuidades e não nos detemos a estudar e conhecer os nossos grandes intérpretes. Craveirinha foi um grande tradutor do ser moçambicano. Esta minha devoção pelo passado e este culto dos mais velhos resulta, em muito, do meu convívio com este Poeta e Mestre: “Nelson: Procura ser um fiel servo da Memória de todos os tempos para que a tua voz se faça ouvir no teu tempo.”
Também por isso, por essa incumbência, recordo-o com emoção sempre. Ele era, como escreveu no poema “Auto-efígie”: “Irmão sincero dos mais fiéis amigos”. Ouvi-lo era fascinante. Tinha, ou praticava, uma fala pausada, enganosamente hesitante, com aquela sua ironia acerba, falsamente inocente. Era cortante quando abominava. Um sábio, tinha um conhecimento enciclopédico, mas era despretensioso intelectualmente. O seu arcaboiço histórico e cultural era incomensurável. Por isso, não gosto de o ver retratado como folclorista, pese embora se tenha debruçado sobre o folclore moçambicano. Era muito mais do que isso. Um verdadeiro sociólogo da cultura. Um historiador. Um grande conhecedor de Moçambique e das suas idiossincrasias. Cultivava a memória das personagens de uma época que já não existia e que tinha sido a sua ou da sua formação. Falava-me do seu ontem e das figuras desse passado. Era um intrémulo defensor da nossa identidade e da nossa história e memória histórica, longe de todos os maniqueísmos sectários e ideológicos. Tinha as suas birras, as suas zangas, as suas querelas, as suas implicâncias. Mas era um génio e tinha direito a tê-las.
É, indubitavelmente, a figura literária moçambicana mais importante de sempre. Como jornalista defendeu causas, causas nobres. Quando Samora Machel e seus colegas enfermeiros o procuraram, encontraram nele um intrépido defensor das suas lutas. Defendeu-os e denunciou a discriminação que sofriam no hospital. Chegou a ter, por essa razão, o seu posto como redactor no “Notícias” em risco, contudo Malé Vaz, filha do fundador do matutino, foi firme a defendê-lo. O amigo Samora não se esquecerá jamais desse préstimo. Mesmo nos tempos de acirrada intolerância, quando alguns dos seus companheiros foram submetidos a purgas, Craveirinha foi poupado. Rui Nogar e Malangatana cumpriram o opróbrio da reeducação e dos excessos da revolução. Lendo os seus escritos dessa época percebe-se que ele nunca deixou de ser um intelectual crítico, lúcido e arrojado. Perante a arrogância de um dirigente (“Sua Excia”) que antes “se desvertebrava” (grade mestre da ironia, Zé Craveirinha!) para o cumprimentar no Bilene e na companhia do Presidente, ele seria indómito: “É o resultado da irrevogável ausência / do meu amigo Samora.”
Todas as semanas eu ia vê-lo à sua casa da Mafalala. Ficava horas a escutá-lo. Falava baixinho, quase sussurrava. Como nos segredasse o mundo. Muitas vezes ali alcandorados no seu muro, fitando o final da tarde e o rumor que se encaminhava para a fronteira do asfalto, como diria o seu amigo Luandino Vieira. Outras tantas na sua sala e na companhia dos seus pintores electivos. As suas paredes estavam preenchidas de quadros: da Bertina ao Chichorro, do Malangatana a José Júlio, de António Bronze a José Pádua, entre tantos outros. As escadas com esculturas. Por vezes, subia para o seu escritório, num dos quartos, onde se atafulhavam os seus papéis, as fotografias, as suas memórias, as suas musas, os seus duendes, as suas assombrações.
O Zé nascera - num domingo, gostava de o lembrar, por isso era Sonto ou Sontinho - numa casa de madeira e zinco na Estrada do Zixaxa à entrada do Xipamanine. “Eu teu neto Sontinho ou José” escreve em “À Minha Avó”. Do ramo dos Mpfumos. Tem um poema “À Memória do meu Bisavô Pfumo” que diz: “Meu respeitável bisavô Pfumo / não sabia ler nem escrever / mas sabia que a cidade não é urinol”. Toda a sua vivência fora suburbana e eram as personagens do subúrbio que povoam as nossas conversas mansas na pacatez dos dias. Houve um interregno quando foi viver, com o pai e a madrasta que viera de Portugal, na 24 de Julho. Mas nunca deixou de pertencer ao subúrbio. Foi nesse tempo que deixou de falar a língua ronga. Proibiram-no. O pai recusava, no entanto, o epíteto “português”. Considerava-se “algarvio”. “Os algarvios estão mais perto de África, dos árabes, do que da Europa. Eu passei por Lisboa para vir para aqui”. A mãe era negra. “E fica a tua prematura beleza afro-algarvia / quase revelada nesta carta elegia para ti / meu resgatado primeiro extra-português / número UM Craveirinha moçambicano” (“Ao meu belo Pai ex-emigrante”).
O pai de Craveirinha era poeta, não publicou nenhum livro, mas era conhecido e reconhecido na cidade como poeta. Fazia parte dos repentistas. Os que faziam quadras ao desafio. Dizia de cor Camões. O Poeta leu, a partir dos 10 anos, Guerra Junqueiro, Antero do Quental, Victor Hugo ou Émile Zola. Outros autores que eram frequentes em casa: Almeida Garrett, Gil Vicente ou Ramalho Ortigão. Ele e o irmão aprenderam a dizer de cor “Os Lusíadas”.
Quando o pai se reformou, Zé não teve condições de prosseguir com os estudos no liceu. Aprendeu através dos livros e das explicações do irmão. Uma professora, Gracinda do Carmo Silva, dava-lhe aulas pro bono. O pai aprendera inglês sozinho. O irmão ensinou-lhe francês. O seu tio António também é uma figura decisiva na sua vida: “Tristes / flores na mão de minha mulher / e novamente no funeral do Tio António / consagro a tua memória ressuscitando-te / genuíno outra vez no sangue intencionalmente / ex-algarvio do teu irmão / optando como tu, meu Pai.”
A Estrada da Circunvalação separava o mundo do subúrbio e o da cidade branca. Era a linha de fronteira. Craveirinha estudava na Primeiro de Janeiro (ligada à Maçonaria) e os amigos na Paroquial, que era para os mais humildes. Mesmo quando vivia na 24 de Julho não se apartou mundividência dos subúrbios. Quando foi preso, em meados dos anos 60, a PIDE não entendia por que razão um mulato, filho de branco, tinha a predileção pelos amigos pretos. Muito menos percebiam a razão que levava Rui Nogar, branco, a atravessar a Circunvalação e mergulhar no outro lado da fronteira. Estes dois mundos irão enformar a poesia de Craveirinha: “E eis que num espasmo / de harmonia como todas as coisas / palavras rongas e algarvias ganguissam / neste satanhoco papel / e recombinam em poema”.
Escreveu sonetos inicialmente. Ricardo Rangel, amigo de então, que debutara numa casa de fotografia da então Consiglieri Pedroso e fazia uns biscates para o “Notícias” levou o caderno de sonetos para António Rosado, que também era poeta. O jornalista era igualmente desportista e foi, curiosamente, treinador de Zé Craveirinha no Desportivo, mas nunca relacionou o autor daqueles sonetos com o exímio futebolista. Quando o jornalista morreu não se recuperaram mais os versos nem as métricas do jovem poeta. Entretanto, Craveirinha desiste de fazer sonetos e começa a escrever os poemas que o tornariam célebre. Colabora no “Brado Africano”. Ao tempo, a jovem Noémia irrompia com os seus poemas e a sua voz tonitruante.
Lembra-se de ver o poeta Rui de Noronha, de o ver passar todos os dias a uma determinada hora. Lembra-se do seu ar triste. Era uma figura taciturna, melancólica. Mesmo nos ambientes de festa. Morreu aos 34 anos num dia de Natal de 1943. Mais tarde convive com Noémia de Sousa, a sua irmã Carol, que vivia ali perto, depois da família mudar-se da Catembe, a quem dedicará alguns dos seus poemas mais emblemáticos, sobretudo quando esta foi coagida a emigrar – “Dó sustenido por Daíco” é um deles. Também falava de Karel Pott, o primeiro advogado não branco em Moçambique. Contava o impacto que tivera o facto de ele reivindicar a sua identidade africana e fazer gáudio em passear, no seu carro descapotável, a sua mãe negra, vestida de capulana e com tatuagens. Era um desaforo ao regime.
Noémia de Sousa levou-me, anos mais tarde, a conhecer Cassiano Caldas. Fomos visitá-lo à sua casa e ele foi de uma grande gentileza. Os ventos da revolução açoitaram até aquele a quem muito devemos. “Sangue Negro” é dedicado a Cassiano Caldas e a João Mendes. Cassiano foi o indutor ideológico de Craveirinha e da sua geração, ministrou as primeiras aulas políticas, contribuiu para a sua afirmação ideológica, orientou-os. Era a figura tutelar desta geração. A isto acresce o facto de, no mundo suburbano, haver uma plêiade de figuras emblemáticas na afirmação da alteridade. Personagens que pareciam emergir dos romances de Jorge Amado. Daíco antes de todas. Mas também Zagueta, Vicente Langara, Xico Albasini, Brandão, Mundapana ou Fahla-Fahla.
O desaparecido Comoreano, os concursos de dança, mais tarde a distinção da culinária dita indígena que não chegava à cidade branca, o desporto, a Associação Africana, o Munhuanense Azar, o Muhafil Issilamo ou João Albasini. Os concertos de Djambo, João Domingos ou conjunto Harmonia. A afirmação, a reivindicação, não era apenas através da poesia. Aliás, José Craveirinha, Noémia de Sousa, Dolores Lopes e Ricardo Rangel, numa escadaria da Polana, fingindo um piquenique, redigiram um documento, muito antes dos movimentos libertários, a exigir a independência de Moçambique. Foi na época em que escreveu “Poema do futuro cidadão”. Entre a década 40 e 50.
A Casa dos Estudantes do Império publica, à sua revelia, “Chigubo”, em 1964. A PIDE, quando o prende, apresenta-lhe o livro como libelo acusatório. Companheiros de prisão: Rui Nogar, Malangatana Valente e Luís Bernardo Honwana são os nomes mais conhecidos. Armando Pedro Muiuane, seu compadre e mais tarde colega na Imprensa Nacional, é também companheiro de prisão. Companheiro de sempre. Uma das rusgas e consequente prisão ocorre após uma reunião na casa de Muiuane no Xipamanine. Com Honwana troca, nos calabouços, correspondência vária, que graças a guardas que eram infiltradas, não é interceptada pela PIDE. Era importante este contacto para que coincidissem nos depoimentos. Parte desta correspondência ficará à guarda do advogado Carlos Adrião Rodrigues. Em Itália, no entanto, publicam-lhe “Canto a um dio de catrame”, em 1966. Ele só vem a saber mais tarde. José Luís Cabaço, que lá estudava, será quem lhe trará o livro. Estava ele em liberdade condicional.
“Karingana ua Karingana”, provavelmente a sua magnum opus, estava para publicação antes do golpe militar que mudou o regime em Portugal. Craveirinha e Nogar, que redigira o prefácio, queriam arriscar. Mas o editor teve receio. No entanto, dá-se o 25 de Abril e o livro segue livre curso para o prelo. Sem o texto do Nogar, que viria a integrar a segunda edição como posfácio. Quando o livro é dado à estampa, o autor está na Tanzania, na companhia de Samora e da direcção da FRELIMO. Pouco antes, Costa Gomes, que fazia parte da Junta de Salvação Nacional, e que chegaria a ser presidente da República portuguesa, de visita a Moçambique, procurara Craveirinha para o convencer a formar um partido político que dialogasse com as autoridades portuguesas para a transição. Queriam obviar o movimento libertário. O Poeta recusa-se a ir ao encontro desacompanhado e só aceita encontrar-se com o futuro marechal português quando teve a companhia de Malangatana Valente e Rogério Djawana. É intransigente na posição: único partido que tem a legitimidade de assumir o poder só poderia advir da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique). Costa Gomes pede-lhe então que seja portador de uma mensagem das autoridades portuguesas para conversações sobre a transmissão de poder.
“Cela 1”, publicado em 1980, são escritos de prisão ou sobre a prisão. “Poema do alfinete mágico”: “Com um inofensivo alfinete mágico / nós os miseráveis sonhadores moçambicanos / de cerrados maxilares invocamos os desejos / e suspendemos os corações nas janelas / donde a lua e o sol quando entram / entram gradeados.” É o testemunho de uma “vida a injúrias engolidas a seco”. O belíssimo poema “Reflexões no dia dos meus anos”, que poderia ser a epígrafe deste texto, é publicado neste volume: “Faço anos. / Quantos já não interessa. / Por uma questão de glândulas / infalivelmente na barba e nas têmporas / aos poucos e poucos envelheço”. Este livro é o primeiro inédito que edita após à independência.
Entre a edição desta obra e a reedição de “Xigubo” (mudou-lhe a grafia) e “Karingana ua Karingana” avulta a aparição de “Maria”, em 1988. Rui Knopfli aplaude, no prefácio, “o grande poema do amor conjugal”. Maria é personagem central na vida do Poeta. Há poemas belíssimos não só de evocação mas sobretudo de admiração. “Santa / minha esposa Maria de Lurdes / mãe dos meus filhos” (em “Karingana ua Karingana”). “Maria. Salmo Inteiro”: “Minha tão bela esposa Maria / cinquentenária jovem isenta de frívolos aniversários. / Minha mais amada por mim do que as frívolas / raparigas de provocantes fémures desnudos”.
“Maria”, que haveria de ter uma nova edição, é um poema pungente. Belo e pungente. Digo poema porque o conjunto tem esse condão de ser uma espécie de poema único. Tem momentos cintilantes, outros tantos arrebatados. Muitas vezes denuncia a dureza da solidão e o frio da ausência. Mas sempre a beleza na evocação: “Esposa Maria / a cada minha veleidade / sabendo-se nunca preterida. // E com meus defeitos e suas qualidades / compúnhamos o mais incongruente invejado casal perfeito”.
Zé Craveirinha era um homem só. Aliás, proclamava-o. Não posso afirmar que ele amasse a solidão, mas posso dizer que ele era um homem solitário. Sobretudo quando foi vítima do descaso ou hostilizado. Comovia-lhe a lembrança dos outros, mas sabia que não podia partilhar com ninguém o que quer que fosse. Apenas com Maria. Daí esse insulamento ao qual estava mergulhado: “o mais mudo sotaque do último chão”. Isto é de uma beleza dilacerante. Só um poeta eleito é capaz de um verso como este. Encontrei-o muitas vezes nesse estado de prostração e ficava a ouvi-lo numa espécie de solilóquio. Muitas vezes ficávamos em silêncio e assim nos entendíamos.
Quando fui estudar a Portugal, em 90, continuei a vê-lo, sobretudo quando ele ia a Lisboa. Ou nas viagens que fizemos para Londres ou Sevilha na companhia de Rui Nogar, Rui Knopfli, Noémia de Sousa ou Eugénio Lisboa. Acompanhei-o nos dias jubilosos em que recebeu o Prémio Camões. Recordo-me da tristeza e da solidão quando se encontrava só no hotel. O Zé Craveirinha era um homem taciturno. Extremamente elegante no trato, sardónico muitas vezes, mefistofélico quase sempre. Nunca vi alguém melhor do que ele a zombar daqueles que desdenhava. Apoucava-os com cortante sarcasmo. Era o mestre do deboche. Quanto aos amigos, era indefectível.
Craveirinha foi um poeta avaro. Não foi sequer um poeta bissexto. Publicou muito pouco. Um dia pediu-me para eu lhe apresentar uma obra. Fiquei perplexo, aturdido, estupefacto. Era o “Babalaze das Hienas” e foi em 1997. O Mestre está com 75 anos, o discípulo tem 30. O livro é um cortante testemunho sobre a guerra. Eu tentei cumprir a missão o melhor que podia. Estou certo da imperfeição do texto ou da improficiência do meu discurso na ocasião, contudo, não obstante, a minha admiração inequívoca e a minha afeição e estima pelo poeta foram indubitáveis.
Este foi o seu último título de poesia. Muitos dos seus poemas inéditos circulam, no entanto, de mão e mão e são ditos em saraus de poesia. Anabela Adrianopoulos, Calane da Silva, Gulamo Khan, Tomás Viera Mário, entre outros, emprestam as suas vozes à inconfundível dicção do Poeta. Gulamo celebriza as “Saborosas Tanjarinas d´Inhambane”, um poema anti-épico. Mas também ainda reverbera na memória as “Rumbas de violas no Comoreano” ditas por ele: “Ah é bom nascer assim mulato? / Ah nascer negro assim é bom?” Naquele tempo, e digo isto com nostalgia, a palavra ditava o nosso destino. A palavra poética presidia o sonho moçambicano.
Craveirinha é um poeta de belíssimas imagens, de inesperadas imagens, de poderosas imagens. Poeta da insurreição, poeta nunca agrilhoado, poeta solitário, poeta solidário, poeta que canta o seu tempo e os homens do seu tempo, poeta condoído muitas vezes, poeta que vaticina o futuro, poeta que canta os momentos sombrios como os da guerra, poeta do mundo, poeta da boémia intelectual, poeta da língua que esplende, poema do amor, sempre. Como escreveu, em “O Arco e a Lira”, o poeta mexicano e Prémio Nobel Octavio Paz: “voz do povo, língua dos escolhidos, palavra do solitário”.
Os investigadores
em nome da verdade histórica
inventarão virtudes que nunca tive.
E com irretorquíveis teses
irão ao exaustivo pormenor freudiano
de misturar minha vocação pelas raparigas
com a liberdade dos povos oprimidos.
(José Craveirinha)
Hoje passam 100 anos sobre o dia em que nasceu José Craveirinha. A Pátria deu-lhe o préstito da praça e uma ominosa rua. Execráveis ditadores estrangeiros nomeiam largas avenidas. Quase não o lemos, citamo-lo sem o ler. Exilamo-lo na pátria do olvido. Agora o lembramos nestas efemérides, mas acto contínuo virá a nossa amnésia, a nossa desatenção, a nossa negligência e o nosso desprezo vibrar sobre ele e o devir moçambicano com todo o seu esplendor. Quanto a mim, cabia-me hoje este tributo, devolvendo-lhe a honra da láurea que me concedeu com a sua amizade, o seu exemplo e a sua poesia. “Bom têto! Sia-Vuma! Bayete mufana!” – escrevia-me. Aqui fica o meu penhor. Também lhe devo muito, ou quase tudo, do que sou.
Bayete, Zé Craveirinha!
SIA-VUMA!
KaMpfumo, 28 de Maio de 2022