A sociedade civil moçambicana organizada, e não só, entende que a proposta de lei das organizações, a ser aprovada nos termos em que se apresenta, será um retrocesso para o exercício da liberdade de expressão no país. Que “Isto é muito mau” não restam dúvidas, sobretudo porque se receia o regresso à ditadura.
Contudo, por outro lado, há quem entenda que esta proposta será um sucesso porquanto, entre outras coisas, promoverá a indústria cultural e criativa nacional que, em abono da verdade, carece de um grande empurrão.
Sobre a plausibilidade do empurrão (a aprovação da proposta de lei em questão) Chico Buarque, cantor e compositor brasileiro, um dos recentes laureados do prémio camões, que se referindo aos tempos da ditadura no Brasil, disse: “Feliz a ditadura porque me fez poeta”. Isto em alusão ao exercício criativo de esconder o sentido das palavras nos versos das suas composições.
Nesta linha cultural, e ainda dos tempos da ditadura brasileira, é de lembrar o trecho “Pai, afasta de mim esse cálice” da música “Cálice”, um clássico de Buarque e Gilberto Gil. Por cá, tenho em mente, dos tempos da dita ditadura que se teima que regresse, uma música de Fernando Luís que a dada altura diz: “Peço um pingo de chuva para molhar a garganta seca”. De Angola, dos tempos da respectiva ditadura, o Bonga: “Comeram a fruta e caroço dela ficou no chão”.
Ora, se assim for: se esta proposta de lei das organizações, a par de outras, em forja, e no mesmo diapasão, como a da comunicação social, uma vez aprovada e implementada, venha a produzir monstros culturais do calibre dos citados acima é caso para repensar.
Oxalá, no mínimo, e para começar a reflexão, que seja convocada uma “Conferência Nacional sobre o Potencial Impacto (da proposta) da Lei das Organizações na Indústria Cultural e Criativa Nacional”. Certamente que seria um bom ponto de partida. Posso moderar (risos).
O 12 de Outubro deste ano foi um dia triplamente especial! Foi/é o Dia do Professor Moçambicano. Foi o dia em que, no distante ano de 1977, os primeiros 1200 estudantes moçambicanos partiram para Cuba para prosseguirem com os seus estudos. E, terceiro, neste ano, passam precisamente 45 anos depois da “façanha”, desse acto extraordinário protagonizado pelos governos cubano e moçambicano, dirigidos na altura, respectivamente, por Fidel Castro e Samora Machel! Neste dia, há 45 anos, os dois chefes de Estado visitaram, pela primeira vez, as “escolas moçambicanas" em Cuba. E esta foi, diga-se em abono da verdade, a primeira experiência no mundo inteiro de envio de estudantes secundários de um país para prosseguirem estudos num outro!
Conforme diria o Eng. Castigo Langa, antigo professor em Cuba, durante a visita do Presidente Fidel Castro a Moçambique, a 21 de Março de 1977, o Presidente Samora Machel solicitou ao seu homólogo o envio urgente de professores. Considerando todas as dificuldades que o país enfrentava, nomeadamente a exiguidade de infraestruturas escolares, falta de material didáctico, grande dispersão das crianças, o presidente Fidel Castro entendeu que não seria suficiente enviar professores e, por isso, ofereceu-se a abrir escolas em regime de internato, inteiramente dedicadas às crianças moçambicanas. Tratava-se de um gesto de grande nobreza, uma vez que Cuba não é um país rico. Era o profundo sentido de solidariedade para com outros povos que explicava tamanho sacrifício.
Mais pela passagem do 45० aniversário da ida dos primeiros estudantes para Cuba, houve um interessantíssimo colóquio numa das salas de conferências da cidade de Maputo, reunindo mais de 200 pessoas, entre os próprios estudantes, docentes moçambicanos que foram destacados para aquele país, antigos dirigentes e outros em exercício e convidados. Joaquim Chissano, Armando Guebuza, Graça Machel, Júlio Braga, Zacarias Kupela, Castigo Langa, Tobias Dai, Hama Thai e o actual Embaixador de Cuba em Moçambique são algumas das personalidades que faziam a sala.
O leit-motiv do evento foi, como bem disse o Professor José Castiano, um “cubano” por excelência também, olhar para o passado com os olhos postos no futuro. E a questão fulcral foi: qual é o legado deste “glorioso” passado para as gerações futuras? Sobretudo quando, como diria Aniceto Dimas, Coordenador da Comissão Organizadora das Celebrações dos 45 anos da Criação das Escolas Moçambicanas em Cuba, esta geração espreita a terceira idade!
O gosto pela pesquisa e o inconformismo na conquista do saber; o sentido de missão, de cumprimento do dever; o amor ao trabalho; o patriotismo, saber viver para a Pátria, ser útil à sociedade através da elevação da consciência política; a solidariedade, o desenvolvimento da empatia; o colectivismo, espírito de equipe, coesão de grupo; e o internacionalismo são alguns dos valores supremos que os 17 mil moçambicanos que se fizeram às terras de Fidel Castro trouxeram/trazem como legado para o país, nas palavras de Dimas. Valores que, de uma ou de outra maneira, vão lamentavelmente escasseando na nossa actual Sociedade.
Para o Professor Eduardo Sitoe, a relevância e especificidade do modelo adoptado nas escolas moçambicanas em Cuba radica na clara visão da UNESCO de que “devemos aproximar as pessoas e reforçar a solidariedade intelectual e moral da humanidade, através da compreensão mútua e do diálogo entre culturas”. Outrossim, o cerne desta filosofia residiu na ideia de ter professores cubanos e direcção cubana, mas escolas moçambicanas e a formarem estudantes moçambicanos, uma formação humana integral que garante o desenvolvimento humano em todas as suas dimensões.
E o impacto é claramente incomensurável, segundo o Professor Sitoe. Os moçambicanos formados em Cuba estão em todos os cantos deste país, em diversas áreas de actividade e em diferentes níveis de responsabilidade; todos os estudantes moçambicanos em Cuba são PATRIOTAS; e Samora queria que a oportunidade de ir estudar fosse dada a crianças, pobres mas promissoras, filhos de operários e camponeses. A ideia era deixar a mensagem de que, com a Educação, é possível mudar o destino de crianças e das suas famílias e, por via disso, transformar para melhor o nosso destino colectivo, como Nação e como País.
O debate e contribuições foram imensas e riquíssimas - pena que a cobertura jornalística foi parca e desfocada. Quase todas as figuras de proa intervieram e deram as suas ideias, valiosíssimas, sublinhe-se. Uma das ideias foi a do Dr. Edgar Cossa de construção de uma lápide no Parque de Campismo, local onde todos os 1200 estudantes provenientes de todos os distritos do país se concentraram e se despediram do Governo a caminho de Cuba.
Intervenção mais emotiva foi a da… Mamã Graça Machel… doutro modo não seria!... Naquela sua sempre voz sibilante e sem papas na língua, declarou-se vigorosamente discordante da colocação de que a "geração cubana”, estando a espreitar a terceira idade, tem somente que transmitir o legado, entregar o testemunho. “Nao aceito isso… o país tem desafios muito grandes, a pobreza absoluta graça em 45 por cento dos moçambicanos; ainda temos regionalismo e tribalismo devastando este país… e vocês falam de estar a entrar para a terceira idade… eu tenho 77 anos, mas ainda estou a lutar e vocês… Vocês, com toda força que têm: estão em todos os distritos do país; estão formados em várias áreas de saber; ocupam diferentes cargos e posições em várias áreas da vida do país… não, não! Não aceito… isso me atravessa a garganta! Vamos lá continuar a dar o nosso contributo a este país!"
Uma mensagem muito clara, concisa e directa, inspirada, talvez, em Marcelino dos Santos, o poeta Kalungano, que uma vez disse: “Enquanto houver revolução por fazer, não há tempo nem espaço para morrer”!
Muito obrigado, Mamã Graça, pela mensagem cristalina! Fazemos dela nossa!
ME Mabunda
“Qualquer ser humano, antes de ser julgado, merece ser ouvido e, por aquilo que se sabe, Cristiano Ronaldo retratou-se dia seguinte ao incidente e, segundo o “Lance”, pediu desculpas ao técnico Erik Ten Hag, no dia 24 de Outubro de 2022, pedindo sua reintegração no grupo de trabalho. Os pronunciamentos de certas pessoas, como é o caso do Técnico Português do Roma, José Mourinho, não merecem qualquer tipo de consideração. Vamos apoiar a reintegração de Ronaldo na equipe do United!”
Adelino Buque
“Após ser afastado do Manchester United por conta de um acto de indisciplina, Cristiano Ronaldo teve uma conversa com o técnico Erik Ten Hag. Segundo o "Mirror", o atleta pediu desculpas e busca ser reintegrado ao grupo. O veterano de 37 anos quer melhorar sua forma física para ajudar o clube e, consequentemente, chegar bem à Copa do Mundo. Os Red Devils ainda têm mais seis compromissos antes do torneio no Qatar.
Apesar do pedido de desculpas, Cristiano Ronaldo não tem o apoio da comissão técnica e do elenco. O Manchester United abre as portas para que o atacante encontre uma nova equipe para actuar a partir de Janeiro.
In Lance de 24 de Outubro de 2022
Na esteira do que escrevi no meu Post anterior e reitero, não sou fã do Cristiano Ronaldo, mas admiro o seu comprometimento com a profissão de futebolista, a entrega ao trabalho, quer colectivo quer de forma individual. A busca por autossuperação, entre outras, foram sempre as características deste veterano de 37 anos, hoje, na situação de quase abandono por conta de um acto que, na minha opinião, merece uma repreensão ou processo disciplinar e nada mais!
Como escreve o “Lance” de 24 de Outubro de 2022, o próprio Cristiano Ronaldo, ao contrário do que vieram a público falar muitas pessoas ligadas ao futebol, procurou entendimento com o Técnico por entender que terá agido mal naquele dia do Jogo contra o Tottenham, pedindo desculpas e sua integração na equipe principal. Notar que uma das pessoas que veio a público falar mal é o Técnico Português do Roma, José Mourinho.
Consciente ou não, José Mourinho, com os seus pronunciamentos, pode ter prejudicado o Cristiano Ronaldo. É preciso aceitarmos que todos temos um lado “animal” e “irracional” que actua uma vez a outra sem o nosso consentimento. Aliás, o Cristiano Ronaldo, na sua conta pessoal, um dia depois do incidente se retratou, aos que quiseram ouvir e entender o seu lado emocional naquele momento e naquele dia.
Por aquilo que o Cristiano Ronaldo representou, mesmo para o Manchester United, antes de se transferir para o Real Madrid, e agora, merece o perdão, sobretudo quando, por iniciativa própria, se retrata e pede desculpas e sua reintegração no grupo de trabalho. Por aquilo que Cristiano é e representa, é natural que muitos o queiram ver pelas costas, contudo, sou da opinião que se lhe dê oportunidade e a frente é o caminho. Repito, escrevo esta reflexão em reconhecimento do trabalho deste homem e das suas origens sociais. Ele pode e deve errar, mas não o perdoar seria o pior erro dos amantes de futebol.
O Governo submeteu há dias à Assembleia da República um projecto de lei que cria o Fundo Soberano, na expectativa de o ver debatido e aprovado ainda nesta sessão que começou na primeira semana de Outubro corrente.
Está de parabéns o Executivo, porquanto a pressão do tempo era/é enorme: este mesmo mês de Novembro, Moçambique vai começar a receber os primeiros valores decorrentes da exploração dos seus recursos naturais, especificamente do gás natural da chamada Bacia do Rovuma e não existe até ao momento qualquer instrumento que norteia a aplicação desses valores, bem como dos valores decorrentes de mais valias em diferentes situações de exploração dos nossos recursos, como os casos de vendas ou trespasses de acções entre as multinacionais exploradoras dos nossos recursos. Já tivemos trespasses na Bacia do Rovuma e em Tete e muitos de nós não estão informados sobre a aplicação desses fundos.
Portanto, é imperioso que haja um instrumento que oriente a aplicação dos valores que vão ser recebidos com a exploração dos nossos recursos naturais, sejam receitas de exploração, ou impostos e ou mais valias decorrentes de transações diversas. E este instrumento orientador devia/deve reflectir a vontade colectiva dos moçambicanos. O mote aqui é que os recursos naturais pertencem aos moçambicanos, a todos os moçambicanos e, assim sendo, devem/deviam ser estes a estabelecerem a geometria da sua exploração, bem como da aplicação dos dividendos decorrentes dessa exploração. A lei do Fundo Soberano deve ser inclusiva, albergar as aspirações de todos nós, e não apenas daqueles que neste momento estão no comando, pois, como estamos todos de acordo, os recursos naturais, bem como os proventos da sua exploração, são de todos nós moçambicanos e, assim sendo, devem beneficiar a todos os moçambicanos e às gerações vindouras.
Talvez devido à pressão do tempo, o Governo tenha apressadamente esboçado o draft da referida lei e submetido ao parlamento. Aceito que houve auscultação a diferentes sensibilidades nacionais, mas acho que deve haver mais auscultação e, se possível, haver explicação pública de como tal auscultação foi realizada, quais essas sensibilidades e como foi o processo. Inclusão e participação, é tudo quando se apela. Não podemos somente ver no jornal que há um seminário sobre isto e aquilo e que… o Banco de Moçambique vai apresentar isto mais aquilo!
Olhando para o draft propriamente. A justificativa do draft submetido devia ser mais bem trabalhada. Como está, só espelha grandemente a pressa que se tem em encontrar um instrumento legal que balize as nossas actuações. A parte introdutória deve ser de uma grande solidez, abrangente, universalizante, bem alinhavada, apontar de forma clara e inequívoca que se trata de um instrumento que visa regrar sobre os proventos da exploração dos recursos naturais de Moçambique no seu todo e não apenas da dos blocos A ou B “e outros” ou “etc.”
Em termos de conteúdo. Julgo aceitável a ideia de que os proventos devem ser divididos pela utilização presente e futura. Isto é, uma parte reforçar o orçamento do Estado actualmente e a outra ser conservada e ser aplicada em empreendimentos virados para o futuro. Não abono é a ideia de que todos os valores deveriam ir para o Fundo Soberano. O nosso Orçamento de Estado ainda é deficitário e, por isso, financiado ou apoiado por instâncias estrangeiras, o que de alguma forma cerceia a nossa independência, soberania e autonomia. As nossas necessidades são imensíssimas e, portanto, não seria de uma mente sadia que, estando-se a passar fome numa casa e obtendo-se alguma renda, esta seja conservada para gerações vindouras.
Onde tenho sérios problemas é no que diz respeito à utilização do exacto Fundo Soberano. O draft da lei sobre o Fundo Soberano fala de uma "política de investimento do Fundo Soberano” a ser definida pelo Governo… Ou seja, vai ser aberta uma conta do FS no Banco de Moçambique na qual se vai depositar uma parte dos fundos provenientes da exploração dos recursos naturais, os quais serão utilizados de acordo com a “política de investimentos” a ser delineada pelo Executivo. Discordo.
Minha visão é que devemos definir aqui e agora o que fazemos com o Fundo Soberano, a parte que irá para a conta a ser aberta no Banco de Moçambique. A lei sobre o Fundo Soberano deve estar completa e estar completa significa que deve também especificar o destino dos valores a entrarem. Não acho que devamos ser como a maioria dos criadores de gado do nosso país, que se contenta apenas em contemplar a quantidade de cabeças que tem no curral e está à espera de ver o que vai fazer com elas… tipo nós que só vamos ver o saldo da nossa conta e não temos ideia clara do que fazer com aqueles fundos… que até são magros… estamos à espera de decidir o que fazer com eles. Não. Esta questão tem que estar fechada já. Tomarmos uma decisão colectiva e consensual sobre onde aplicar os fundos provenientes da exploração dos recursos naturais.
Já agora: acho que o Fundo Soberano deve ser aplicado na construção e reabilitação de infra-estruturas, só e somente só. Por infra-estruturas, quero dizer estradas estratégicas e estruturantes, isto é, as primárias e secundárias, pontes estratégicas, nacionais, regionais e provinciais; linhas férreas regionais e nacionais; e barragens e centrais eléctricas de âmbito nacional e regional. Penso que um país com excelentes infra-estruturas será um bom “legado” para as gerações vindouras.
Espero que a Assembleia da República lime bem esta parte. Não pode ficar em aberto onde aplicar o Fundo Soberano. E a AR pode, igualmente, proceder a uma auscultação mais alargada a complementar a já feita pelo Governo, mesmo que isso implique que a lei venha no próximo ano.
ME Mabunda
É essa a sensação que me fica. Diferentemente de John Lenon, o rapaz de Liverpool que partiu inesperadamente, deixando os seus companheiros chorando, cada um no ombro do outro, Arão jamais terá o conforto de Hortêncio Langa e Adérito Gomate, cúmplices das músicas cantadas com a esperança de que repercutiriam em cada coração de todos aqueles que os esperavam, e acreditavam neles. Já tinha perdido o conforto de João Cabaço, o grande músico que, depois de longas caminhadas, e antes da sua morte, já se tinha afastado do grupo.
Seria injusto, porém, continuar a dizer que Arão Lithsuri não tem a quem chorar, pois seria uma injúria ao Childo e ao Celso Paco, pedras firmes da banda Alambique, mas foi com Hortêncio Langa e João Cabaço, que todas as marés enquinociais invadiram a terra, e que até hoje, com a maré parcialmente vaza, a areia continua molhada por dentro, lembrando um conjunto que aglutinava três nomes.
Seja como for, Arão Lithsuri, autor de Nhina dzame, belíssima música de um jazz por vezes subtil, outras vezes explícito, não será propriamente um homem taciturno, depois da razia que lhe faz tremer nas bases, mas ele precisa de criar outras fortalezas para sobreviver e defender-se do vazio, Arão nunca existirá sem as claves, e na vida de um músico o vazio não existe.
Nunca falei com ele para saber o que vai acontecer daqui para frente, depois de ser despido daquilo que lhe dava sentido à vida. A vida para Arão Lithsuri não será apenas a música, mas o aconchego daqueles que lhe ajudavam a dar valor à manifestação espiritual que tem o condão de aglutir povos inteiros. É esse o dilema subjacente, advindo da partida sem volta dos seus amigos. Então, urge remover as cinzas, e buscar dentro delas a força da esperança e do futuro.
É isso que se espera de Arão: a capacidade de superar a dor, sem esperar o agora improvável sinal do Adérito Gomate, o machuabo estiloso sentado ao piano com dedos finos, calçando “Botas a Beatles” bem engraxadas. Também não haverá mais o sinal da guitarra de Hortêncio Langa, que parecia crescer em cada espectáculo, embora fosse já um músico maduro. Arão Lithsuri também nunca parou de crescer, por isso não faz sentido olhar para trás. Só se for para buscar as melhores lembranças, que vai precisar, com certeza, para as novas batalhas.
Por enquanto vai um abraço profundo.
Recentemente, a Autoridade Tributária e a Polícia da República de Moçambique (PRM) levaram a cabo a apreensão de várias quantidades de bebidas alcoólicas, alegadamente, por serem objecto de fuga ao fisco ou de comercialização sem respeitar o processo de tributação e selagem a que as mesmas estão sujeitas para o efeito.
No entanto, a maneira como as supra referidas autoridades estaduais agiram, conforme demonstram os vídeos e fotos que circulam nas redes sociais, não deixa dúvidas de que se trata de apreensão abusiva dos bens dos vendedores informais, cujo rendimento para o sustento das suas famílias advém desse negócio de venda de bebidas alcoólicas.
Aquando da apreensão dos bens em questão, as autoridades estaduais em referência não procederam, no local, ao registo das quantidades das bebidas apreendidas, nem dos legítimos donos de modo a melhor identificar os bens e seus titulares para efeitos do contraditório, reclamação, pagamento dos impostos e multas devidas e recuperação dos bens.
A apreensão não obedeceu a critérios legais previstos para o efeito no âmbito da actuação da Administração Pública, a qual deve reger-se pelo princípio da legalidade e da justiça conforme estipula a Constituição da República (CRM), no seu artigo 248 nos seguintes termos:
Por sua vez, a Lei n.º 2011, de 10 de Agosto[1], determina nos n.ºs 1 e 2 do seu artigo 4, respectivamente: “A Administração Pública deve actuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites e fins dos poderes que lhe sejam atribuídos por lei.” “Os poderes da Administração Pública não devem ser usados para a prossecução de fins diferentes dos atribuídos por lei.”
A Autoridade Tributária e a PRM não deram a conhecer as quantidades e o destino das bebidas apreendidas. No mesmo sentido, não deram a conhecer os critérios de apreensão desses produtos de modo a garantir a transparência e legalidade da apreensão.
É verdade que o Estado deve arrecadar receitas com os produtos objecto de comercialização, mas tal não deve ser feito arbitrariamente, senão de forma legal e em respeito à justiça social que o Estado deve prosseguir. Aliás, as autoridades em questão estavam em condições de registar os bens, os respectivos donos e de fixar o necessário prazo para o pagamento dos impostos e multas devidas, sem necessidade de apreender os bens, senão nos casos extremos como a da impossibilidade de identificação dos titulares. Dessa maneira, ia permitir a continuação da venda dos produtos em causa, uma vez que se trata de mercadoria que é simultaneamente o capital e lucro das vítimas da apreensão aqui em discussão.
Nestes termos, estaria salvaguardada a justiça social e o princípio da proporcionalidade que foram violados e daria oportunidade para as vítimas terem dinheiro com a venda das bebidas para pagar os impostos e multas devidas.
Em bom rigor, é estranho e curioso o facto de num contexto de venda desordenada e irresponsável de bebidas alcoólicas na via pública e nos mercados informais, sobretudo de bebidas espirituosas de duvidoso fabrico, proveniência e qualidade para o consumo, a Autoridade Tributária e a PRM apenas se tenham deslocado, na sua acção de “busca e apreensão”, para locais de venda de bebidas alcoólicas caras e de significativa qualidade sem proceder ao devido registo nos termos da lei.
Parece que as autoridades estaduais em causa estavam preocupadas em saquear as referidas bebidas para o benefício próprio ou para fins inconfessáveis que sejam alheios aos interesses do Estado.
Sem transparência na apreensão, é difícil saber que destino foi dado às bebidas e faz desconfiar que foi para benefício de um grupo de pessoas que usaram ilegalmente a força do Estado para o efeito.
Os factos demonstram que a alegada apreensão afinal se tratou de roubo para empobrecer os cidadãos vítimas da referida apreensão arbitrária dos seus produtos. São ilustrativos disso as imagens e vídeos desse saque que se propalam nas redes socias. Será que o Estado está numa campanha de consumo abusivo de bebidas alcoólicas dos vendedores informais, com recurso arbitrário dos instrumentos do poder de autoridade? Dá que desconfiar e é o que a voz popular diz: “Estão a levar nossas bebidas para eles mesmos a custo zero.”
Ora, embora seja legítima a arrecadação de receitas através dos impostos pela comercialização de produtos de diversa índole, incluindo as bebidas alcoólicas, a sanção ou método de apreensão dos bens em causa mostra-se injusta, irrazoável e não proporcional , para além de que viola parte dos objectivos fundamentais do Estado moçambicano, quais sejam: “a edificação de uma sociedade de justiça social e a criação do bem-estar material, espiritual e de qualidade de vida dos cidadãos; a defesa e a promoção dos direitos humanos e da igualdade dos cidadãos perante a lei”; consagrados nas alíneas c) e e) do artigo 11 da CRM, respectivamente.
Portanto, não é compreensível, nem aceitável, num Estado de Direito Democrático conforme é Moçambique, que a Administração Pública enverede por mecanismos obscuros e dúbios no uso da força pública. A acção do Estado, mais do que legal e transparente, deve acima de tudo ser pedagógica e justa.
1Esta Lei regula a formação da vontade da Administração Pública, estabelece as normas de defesa dos direitos e interesses dos particulares.
Por: João Nhampossa
Human Rights Lawyer
Advogado e Defensor dos Direitos Humanos