O Conselho Constitucional da República de Moçambique proferiu o Acórdão n° 5/CC/2019 de 3 de Junho referente ao Processo nº 6/CC/2017, incorporado no Processo nº 8/CC/2017 sobre fiscalização sucessiva abstracta de constitucionalidade, através do qual declarou a nulidade dos actos inerentes ao empréstimo contraído pela EMATUM,SA, e a respectiva garantia soberana conferida pelo Governo, em 2013, com todas as consequências legais. Outrossim, o Conselho Constitucional, através do Acórdão n.º 7/CC/2020, de 8 de Maio de 2020, referente ao Processo n.º 05/CC/2019 declarou a nulidade dos actos relativos aos empréstimos contraídos pelas empresas Proíndicos, SA, e Mozambique Asset Management (MAM, SA) e das garantias conferidas pelo Governo, em 2013 e 2014, respectivamente, com todas as consequências legais.
Nos termos conjugados do artigo 247 da Constituição da República de Moçambique (CRM) e do artigo 4 da Lei n.º 6/2006, de 2 de Agosto, com alterações introduzidas pela Lei n.º 5/2008, de 09 de Julho, Lei Orgânica do Conselho Constitucional (LOCC) resulta inequívoco que: “Os acórdãos do Conselho Constitucional são de cumprimento obrigatório para todos os cidadãos, instituições e demais pessoas jurídicas, não são passíveis de recurso e prevalecem sobre outras decisões.” Do n.º 2 dos ambos artigos supra referidos, está consagrado que: “Em caso de incumprimento dos acórdãos (…), o infractor incorre no cometimento de crime de desobediência, se crime mais grave não couber.” Adicionalmente, o artigo 214 da CRM estabelece que: “As decisões dos tribunais são de cumprimento obrigatório para todos os cidadãos e demais pessoas jurídicas e prevalecem sobre as de outras autoridades.” O que significa que a lei é clara sobre o valor, natureza e eficácia jurídica dos acórdãos do Conselho Constitucional.
O PROBLEMA
Nos dois Acórdãos em referência, os quais foram esperados com muita expectativa pela sociedade civil, o Conselho Constitucional fundamentou a sua decisão esgrimindo que praticados para contrair as dívidas ocultas são actos inválidos, actos administrativos nulos, por força das disposições combinadas do n.º 2, do artigo 35 da lei n.º 7/2014, de 28 de Fevereiro, e da alínea a) do n.º 2, do artigo 129 da Lei n.º 14/2011, de 10 de Agosto, com consequência jurídica nas Resoluções da Assembleia da República que pretenderam “legalizar” as dívidas ocultas em questão.
Ora, não obstante a obrigatoriedade e a irrecorribilidade das decisões do Conselho Constitucional, o Governo não se mostra cumpridor dos supra mencionados acórdãos, tanto é que avançou com a reestruturação e/ou renegociação das dívidas ocultas em causa para o seu efectivo pagamento aos seus credores, supostamente porque esses acórdãos não são válidos no plano internacional. Mas o Governo, ao contrair as dívidas ocultas, tinha de seguir procedimentos legais essenciais do ordenamento jurídico moçambicano para que as mesmas fossem válidas não só no plano nacional, mas também no plano internacional. Por isso, a seguinte inquietação: Que valor e eficácia jurídica os acórdãos em referência têm relativamente ao pagamento ou não das dívidas ocultas? O Governo está ou não em situação de violação do artigo 247 CRM e do artigo 4 da LOCC? Este artigo não responde cabalmente a estas questões, porém, procura demonstrar a quem cabe responder e por que razão.
Por um lado, o Ministério Público, na qualidade de garante da legalidade e com poderes para o exercício da acção penal devia se pronunciar sobre a problemática da violação dos acórdãos do Conselho Constitucional supra indicados, no sentido de esclarecer a sociedade em que medida esses acórdãos estão ou não a ser violados pelo Governo. A acção pela violação dos acórdãos do Conselho Constitucional cabe, em primeira linha, ao Ministério Público que também não se está a pronunciar devidamente sobre a (i)legalidade da reestruturação da dívida e seu pagamento pelo Governo no contexto dos referidos acórdãos que anulam os actos que deram lugar às dívidas ocultas.
Por outro lado, o Conselho Constitucional, entanto que “órgão de soberania, ao qual compete especialmente administrar a justiça, em matéria de natureza jurídico-constitucional,” em conformidade com o nº 1 do artigo 240 da CRM e considerando, sobretudo, a sua função educacional estipulada no artigo 212 da CRM nos seguintes termos: “Os Tribunais educam os cidadãos e a administração pública no cumprimento voluntário e consciente das leis, estabelecendo uma justa e harmoniosa convivência social”; é mister que o Conselho Constitucional venha a público, revestido da sua função pedagógica, não no sentido de dar parecer, mas explicar a sociedade o valor, eficácia jurídica, sentido e alcance das suas decisões, sobretudo quando são muito problemáticas em termos de compreensão da eficácia das mesmas à semelhança dos acórdãos que proferiu sobre as dívidas ocultas, objecto deste artigo.
Em bom rigor, não faz sentido estes acórdãos não serem percebidos do ponto de vista do valor jurídico prático quando versam sobre um problema de interesse público de grande dimensão, tendo em conta ainda que declara nulos os actos que permitiram o endividamento dos moçambicanos. Mas a nulidade de tais actos, na prática, é também “nula e de nenhum efeito”, na medida em que o avançar no pagamento das dívidas ocultas pelo Governo esvazia completamente o conteúdo dos acórdãos em questão de tal modo que se torna indiferente a existência dos mesmos.
Importa aqui referir que é difícil perceber os acórdãos do Conselho Constitucional em análise de forma isolada sem relacionar com os outros processos judiciais existentes sobre a mesma matéria no que respeita à gestão das expectativas da sociedade relativamente ao comportamento, força e integridade do judiciário como é o caso do famigerado julgamento das dívidas ocultas que se avizinha no quadro do Processo n.º 18/2019-C, com termos na 6ª Secção do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo.
CONCLUSÃO
Qual a ratio dos acórdãos do Conselho Constitucional sobre as dívidas ocultas senão decisões políticas com pele jurídica ou decisões jurídicas com conteúdo e valor político? Na verdade trata-se, pois, de uma espécie de norma jurídica “morta” e caso para dizer que “a montanha pariu um rato.” O carácter moribundo dos acórdãos em questão cria um certo cepticismo sobre a eficácia do julgamento das dívidas ocultas que inicia no dia 23 de Agosto corrente e sobre a esperança pela emanação de uma decisão justa e conscienciosa de cunho jurídico e não meramente de interesses políticos.
No que à geração vindoura de profissionais da justiça diz respeito, é complicado ensinar o valor e eficácia da jurisprudência do Conselho Constitucional com base nos acórdãos em alusão nas Escolas de Direito, senão numa vertente exclusivamente teórica.
Advogado e Defensor dos Direitos Humanos