Director: Marcelo Mosse

Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

BCI
João Nhampossa

João Nhampossa

JoaoNhampossanovaa220322

  1. Independência e credibilidade do Tribunal Administrativo

 

A jurisdição administrativa tem dado sinais de ser mais célere e eficaz na protecção do poder executivo e completamente morosa e ineficaz relativamente aos processos que visam a protecção jurisdicional dos grupos vulneráveis, com destaque para os pobres, vítimas de injustiça social, de abusos de autoridade e de violação dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.

 

No ano transacto, o Centro para Democracia e Direitos Humanos (CDD) intentou, no Tribunal Administrativo, um processo de suspensão de eficácia do polémico despacho conjunto dos Ministros das Obras Públicas, Habitação e Recursos Hídricos e da Economia e Finanças, que fixou as taxas de portagens e início da sua cobrança nas praças da Costa do Sol, Zintava, Cumbeza e Matola Gare, ao longo da Estrada Circular de Maputo.

 

Estranha e curiosamente, o mesmo Tribunal Administrativo, de forma inédita na história desta jurisdição, proferiu, em menos de 24 horas, uma decisão que afastou a suspensão provisória do despacho que fixou as taxas de portagens e a data de início de cobrança das mesmas, alegadamente, em protecção do interesse público que, no seu entender, seria prejudicado caso não se iniciasse a cobrança das taxas de portagens na data fixada para o efeito pelo Governo, através dos Ministérios supra mencionados.

 

Nesse mesmo caso, o CDD defendia que o interesse público a proteger era a justiça social, a liberdade de circulação e de escolha, bem como a legalidade violada no processo de instalação das portagens e das respectivas taxas. No entanto, porque o CDD já havia conseguido a suspensão provisória e automática daquele polémico despacho, o Tribunal Administrativo, em tempo ultra recorde e sem discutir e analisar a essência e o alcance do interesse público em causa que se pretendia salvaguardar, escolheu o interesse público do Governo que se traduzia em iniciar de imediato a cobrança das taxas de portagens, o que veio a acontecer em detrimento do interesse público defendido pelo povo, através do CDD.

 

Tratou-se de um caso controverso, muito debatido na praça pública, em que ficou notória a interferência do poder político sobre a jurisdição administrativa, cuja independência ficou ofuscada perante as famosas “ordens superiores”, uma espécie de poder divino do executivo que ninguém ousa confrontar.

 

Passam hoje nove (9) meses desde que, em Dezembro de 2022, a Associação Médica de Moçambique (AMM) submeteu, no Tribunal Administrativo, um processo de Intimação contra o Ministério da Saúde para se abster de conduta intimidatória e de ameaças de vária natureza contra os médicos, por estarem a exercer o direito fundamental à greve dentro do quadro da Constituição da República de Moçambique (CRM). Este é um processo de carácter urgentíssimo, com fundamento legal para o efeito. A protecção do interesse público aqui é notoriamente a saúde e a vida dos cidadãos que correm riscos enquanto o Governo não acautelar as condições salariais e de trabalho dos médicos, com destaque para as condições de tratamento dos doentes, conforme revelado no caderno reivindicativo da classe médica em greve. Não há dúvidas da urgência da decisão deste processo e que seja justa e conscienciosa.

 

Para a surpresa de todos, o processo não tem qualquer desfecho ainda e não se percebe a razão da tamanha morosidade quando o Tribunal Administrativo já provou para a sociedade ter capacidade para decidir os processos urgentes em tempo recorde, senão à velocidade da luz. Ora, o único beneficiário na morosidade deste processo é o executivo contra quem o processo foi proposto através do Ministério da Saúde. Enquanto não houver decisão, pairam dúvidas e incertezas sobre a legalidade das ameaças e intimidações de que os médicos estão a ser vítimas por exercício de um direito fundamental.

 

No entender da AMM, os contornos da morosidade no desfecho deste processo revelam falta de independência do Tribunal Administrativo e fraca protecção jurisdicional dos direitos e interesses dos administrados, em particular os grupos vulneráreis e os pobres, que é o povo. Qualquer que seja a decisão, desde que devidamente fundamentada nos termos da lei aplicável será percebida, o que não se percebe é a demora dessa decisão, atendendo à complexidade do assunto e à natureza urgente do processo.

 

Importa aqui referir que significativos processos em matéria de protecção dos direitos humanos no Tribunal Administrativo são caracterizados pela excessiva tendência proteccionista do Estado, em particular o Poder Executivo. A Ordem dos Advogados de Moçambique já publicou vários processos que revelam essa tendência proteccionista dos fortes em detrimento dos fracos, o povo, nesta jurisdição. Urge, pois, repensar a reforma do Tribunal Administrativo, cuja credibilidade está em crise.

 

  2. Garantia dos Serviços Mínimos

 

A greve dos médicos demonstrou mais uma vez a fragilidade senão vazia relativamente aos critérios para a garantia dos serviços mínimos no sector da saúde, bem como a sua definição. Afinal, o que deve ser considerado como serviços mínimos e que os define? No mesmo sentido, ficou claro que os serviços míninos não são garantidos somente com a presença dos médicos nos seus postos de trabalho, mas sobretudo com a existência de material de tratamento suficiente para responder à demanda das doenças.

 

A futura lei específica sobre o exercício do direito à greve na função pública deve definir os serviços mínimos e clarificar os termos da sua garantia, tendo em conta as características e exigências que os departamentos hospitalares e outros serviços conexos ou similares impõem.

 

A Assembleia da República deve legislar urgentemente com vista a sanar o vazio legal relativamente à lei específica sobre o exercício do direito à greve na função pública. E, para efeitos da elaboração da futura lei específica sobre o exercício do direito à greve na função pública, é importante que o legítimo exercício dos direitos, deveres e liberdades fundamentais nos termos previstos na Constituição e que impliquem ausência ao serviço por parte dos funcionários e agentes do Estado, seja, expressamente, considerado causa justificativa das faltas, uma vez que não é possível exercer o direito à greve nestes termos e, simultaneamente, se fazer presente ao posto de trabalho.

 

A futura lei específica sobre o exercício do direito à greve na função pública deve definir claramente a forma e os prazos de realização da greve, com vista a evitar greves de período ilimitado. E, embora admita que a mesma se possa realizar continuamente, deve adoptar mecanismos para a sua realização de forma interpolada, nos casos em que os fundamentos legais da greve persistam.

 

  • Aplicação de descontos nos vencimentos/salários

 

A decisão sobre a aplicação dos descontos no vencimento deve ser dada a conhecer ao funcionário ou agente do Estado visado para que o mesmo saiba das razões e implicações dessa decisão e para que possa exercer o seu direito de contraditório, querendo. Trata, pois, do direito ao contraditório a que os funcionários têm direito nos termos da lei aplicável ao caso, mormente: O Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado e respectivo Regulamento.  

 

Aliás, os descontos salariais só devem ter lugar nos casos de faltas injustificadas e os mesmos devem obedecer a uma tramitação legal própria para a sua efectivação, sob pena de carecerem de fundamento e violarem o princípio da legalidade a que deve obedecer a Administração Pública. É proibida a aplicação de descontos arbitrários e como represália por exercício de direitos e liberdades fundamentais nos termos da Constituição da República.

 

É importante notar que a Constituição da República consagra como princípio fundamental no nº 1 do seu artigo 248 o seguinte: “A Administração Pública serve o interesse público e na sua actuação respeita os direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos.” Ora, se assim deve ser, é clarividente que o MISAU, ao penalizar os visados aplicando descontos por terem faltado ao serviço em virtude do exercício deste direito fundamental, está, no fundo, a desrespeitar a garantia constitucional do exercício do direito fundamental à greve.

 

O exercício legítimo e legal do direito fundamental não deve ser objecto de penalização sob pena de limitação do mesmo, fora dos casos previstos no artigo 56 da Constituição, o qual estabelece no seu nº 2 que: o exercício dos direitos e liberdades pode ser limitado em razão da salvaguarda de outros direitos ou interesses protegidos pela Constituição e o nº 3 da mesma disposição determina que: a lei só pode limitar os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição.

 

Faltar ao serviço para o cumprimento de direitos, deveres e liberdades fundamentais dentro do quadro constitucional deve ser, indubitavelmente, considerado causa justificativa bastante da falta.

 

  3Responsabilidade pelos danos causados na saúde e vida dos cidadãos

 

Com a agudização da greve dos médicos pelas ausências ao posto de trabalho e a problemática dos critérios da garantia dos serviços mínimos de saúde, corre informação na imprensa de milhares casos de perda de vida e de deterioração do estado de saúde, sobretudo dos doentes crónicos que não tiveram assistência médica e medicamentosa em tempo útil.

 

Neste contexto, começou uma onda de diabolização da classe médica em greve como que desumanos sem responsabilidade pelo juramento que fizeram à sua profissão. Em bom rigor, os médicos não juraram levar a cabo a sua profissão em regime de exploração e de marginalização. Mais do que isso, é que a responsabilidade pela garantia das condições de trabalho e de tratamento médico nas unidades sanitárias cabe ao Governo do dia e não aos médicos que muitas vezes são colocados em situação de cuidar de doentes sem qualquer material adequado para o efeito e obrigados a assistir de mãos atadas mortes diárias de vários utentes por falta dessas condições. Isto é que é violação dos direitos humanos dos médicos.

 

Do ponto de vista legal e com cunho constitucional e dos instrumentos internacionais de direitos humanos relevantes aplicáveis ao caso de que Moçambique é parte, cabe em primeira ao Estado a responsabilidade pela garantia do direito à saúde e dos direitos humanos no geral. Se o Estado não cria condições para o efeito, é a ele que cabe a responsabilização e não aos médicos por exercício do direito fundamental em conformidade com a Constituição.

 

Portanto, atendendo aos contornos da greve em questão, os seus fundamentos e o tempo que dura a reivindicação dos médicos, a resposta dada pelo Governo durante todo esse tempo, claro está que não há espaço para os responsabilizar sobre os danos que tiveram lugar nesse período, senão responsabilizar o próprio Estado através do seu executivo.

 

Por: João Nhampossa

Human Rights Lawyer

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

JoaoNhampossanovaa220322

A imprensa e as redes sociais têm demonstrado ao público em geral que, em certa medida, a gestão governamental sobre a greve dos médicos está a ser feita com base em ameaças de instauração de infundados processos disciplinares contra os médicos grevistas, o que inclui ordens ilegais, as chamadas ordens superiores, para marcação de faltas aos médicos que não comparecem ao posto de trabalho por estarem a exercer o direito fundamental à greve. É neste contexto que em várias unidades sanitárias, nas quais a greve se manifesta, já está em curso o processo de marcação de faltas, com ordem para os departamentos dos recursos humanos e da administração e finanças procederem aos descontos nos salários ou vencimento dos médicos grevistas, independentemente de instauração de processo disciplinar, atendendo à efectividade dos mesmos, no sentido de que as faltas pelo exercício do direito fundamental à greve em questão são injustificadas.

 

Aliás, o Governo, através do seu porta-voz das sessões do Conselho de Ministros, veio a público fazer eco da alegada ilegalidade da greve dos médicos e das ameaças de represálias de diversa natureza sobre os mesmos, incluindo intimidações de desvinculação do aparelho do Estado dos grevistas, por via da contratação de 60 novos médicos. No mesmo sentido, a Governadora de Manica veio de viva voz ameaçar os médicos que trabalham a nível daquela Província que dirige, ordenando, sem qualquer legitimidade e base legal, a marcação de faltas e instauração de processos disciplinares contra os médicos que estão a exercer o direito fundamental à greve.

 

Acresce a esses actos abusivos de poder o facto de o Governo estar a denegar renovar os contratos dos médicos grevistas, bem com em não proceder à nomeação definitiva dos mesmos, conforme revela a Associação Médica de Moçambique (AMM). A mesma AMM tem ainda denunciado outros abusos que estão a ser praticados silenciosamente com base em famigeradas ordens superiores, do tipo ameaças de transferências de local de trabalho e despromoções. Mais do que isso, é o facto de o Governo pretender levar a cabo a revisão do Regulamento do Estatuto do Médico na Administração pública com vista a retirar os direitos adquiridos em claro prejuízo do sector da saúde pela completa desmoralização dos médicos pela falta de condições salarias adequadas de trabalho.

 

Inércia do Ministério Público e da Assembleia da República face à Greve dos Médicos

 

Nos termos da Constituição da República de Moçambique (CRM) e da Lei Orgánica do Ministério Público – aprovada através da Lei n.º 1/2022, de 12 de Janeiro, o Ministério Público zela pela observância da legalidade e fiscalização do cumprimento das leis e demais normas legais. É ao Ministério Público que cabe o controlo da legalidade no ordenamento jurídico moçambicano.

 

A Greve dos Médicos tem suscitado preocupações e debades sobre a sua legalidade e sobre a garantia dos serviços míninos. E, enquanto o MISAU, ou seja, o Governo de Moçambique, assume a posição de que a presente greve é ilegal, outras instituições, como é o caso da Ordem dos Médicos de Moçambique, e diversas personalidades, sobretudo a nível das organizações da sociedade civil, defendem a posição de que a greve dos médicos é legal e que se trata de um exercício legítimo de um direito fundamental que está a ser feito dentro do quadro constitucional vigente no País.

 

Ora, esta greve dos médicos, pelas suas caracteríscas e circunstâncias em que está a ser levada a cabo, revela, indubitavelmente, tratar-se de matéria de interesse público, até porque as causas e finalidades da mesma, conforme o caderno reivindicativo que a sustenta, se enquadram no âmbito dos objectivos e políticas de desenvolvimento do Estado no sector da saúde. A greve tem mexido bastante com a questão da garantia dos serviços mínimos no sector da saúde, para além de que, directa e indirectamente, afecta negativamente os cidadãos utentes dos serviços de saúde, sobretudo os pobres, cuja satisfação e garantia cabe ao Estado em primeira linha.

 

Estranhamente, perante toda a dicussão sobre a legalidade desta greve e as consequências negativas que a mesma está a ter no desenvolvimento do sector da saúde e na vida dos cidadãos pelo deficiente acesso à saúde, incluindo os actos de ameaças, intimidações e abuso de poder praticados por vários órgãos e entidades governamentais contra a classe médica em greve, o Ministério Público não se pronuncia sobre a (i)legalidade da greve e conduta abusiva do Governo contra os médicos grevistas, tendo em conta a sua qualidade de garante da legalidade e representante dos interesses do Estado.

 

Por sua vez, a Assembleia da República, representante dos interesses do povo, conforme determina a CRM, perante o facto da Greve dos Médicos ter colocado a nú a falta de entendimento sobre o significado e alcance da garantia dos serviços mínimos, bem como o grave prejuizo do vazio legal relativamente à legislação específica sobre o exercício do direito à greve na função pública, ainda não se pronunciou sobre a alegada (i)legalidade desta greve. A Assembleia da República, sendo autora material e formal da CRM, bem como do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado e da Lei sobre a Sindicalização na Função Pública devia pronunciar-se sobre os termos do exercício do direito fundamental à greve plasmado no artigo 87 da lei mãe e dissipar equívocos de interpretação.

 

Não se percebe a razão pela qual o Ministério Público e a Assembleia da República, numa situação em que são, por lei, obrigados a intervir, se furtam ao seu papel de fiscalizar o cumprimento da lei e garantir a correcta interpretação e implementação da CRM e das demais relativas ao exercício da greve. Estranhamente, também, quase que nada fazem para educar os cidadãos e as entidades e órgãos relevantes sobre o exercício dos direitos e liberdades fundamentais em causa.

 

Morosidade processual no Tribunal Administrativo

 

Em Dezembro de 2022, a AMM interpôs, no Tribunal Administrativo, um processo de excepcional urgência para esta jurisdição administrativa intimar a direcção máxima do Ministério da Saúde a respeitar o exercício do direito fundamental à greve pela classe médica e para se abster de praticar condutas ameaçadoras, arbitrárias ou de abuso de poder ou que se traduzem em qualquer tipo de violação contra os médicos grevistas pelo facto da greve em apreço ser legal, legítima e exercida dentro do quadro da CRM.

 

No entanto, o supra referido processo urgente ainda não foi objecto de decisão por parte do Tribunal Administrativo e já revela excessiva morosidade processual, uma vez que já devia ter sido proferido o correspondente Acórdão justo e consciencioso, dada a natureza urgente do processo, para além de se tratar de direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, com destaque para os médicos e para o povo que estão a ser vítimas de falta de acesso à saúde de qualidade e em tempo útil.

 

A esperada decisão do Tribunal Administrativo sobre este caso pendente, desde que se debruce sobre o mérito da causa, irá ajudar a perceber melhor os termos do exercício do direito fundamental à greve na função pública, bem como sobre a conduta do Governo na gestão da mesma greve e se as ameaças têm qualquer base legal para o efeito.

 

No entender da AMM, a demora no desfecho do referido processo está a dar espaço para o Governo perpetuar as ameaças e outras condutas abusivas contra os médicos grevistas, para além de estar a criar um ambiente de descrédito do sistema de justiça aos olhos dos cidadãos que não entendem a razão de excessiva morosidade processual.  

 

Provedor de Justiça e Comissão Nacional dos Direitos Humanos

 

A função primordial do Provedor de Justiça e da Comissão Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) consiste na garantia dos direitos e liberdades dos cidadãos, na defesa da legalidade e da justiça, bem como na promoção dos direitos humanos. Todavia, estes dois órgãos de justiça extrajudicial não se têm manifestado sobre a problemática do exercício do direito à greve dos médicos, nem sobre a denegação do direito à saúde pelo Estado pela não resolução do problema que levou os médicos a enveredarem pelo exercício do direito fundamental à greve. Ou seja, enquanto o Governo não satisfaz as reivindicações dos médicos, o efeito directo dessa teimosia é a violação do direito à saúde dos cidadãos, sobretudo os pobres. Não faz sentido e é preocupante o silêncio do Provedor de Justiça e da CNDH perante um assunto tão complexo e de interesse público prioritário que se enquadra nas atribuições e actuação desses mesmos órgãos da Justiça.

 

Concluindo

 

Do acima dito, é notório que o sistema de justiça moçambicano está cada vez mais distante ou alheio aos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, aos direitos humanos e à realização da almejada justiça para os pobres, senão proteger o Governo, independentemente das violações que pratica contra os cidadãos. Trata-se, pois, de mais um caso flagrante da dita “justiça mais forte com os fracos e fraca com os fortes”, o que já é apanágio do sistema de justiça moçambicano. Portanto, está na hora das instituições de justiça competentes responsabilizarem as entidades e órgãos da Administração Pública pelas ameaças e aplicação de represálias aos funcionários e agentes do Estado por exercício legítimo do direito à greve e do associativismo no quadro da Constituição.

JoaoNhampossanovaa220322

Os contornos da contínua Greve dos Médicos têm revelado falta de capacidades administrativas em respeitar, com transparência e rigor, a Constituição da República de Moçambique (CRM) e demais leis e normas ordinárias, para a efectivação do direito à greve e direitos fundamentais conexos. No mesmo sentido, chama à reflexão sobre a fragilidade das políticas públicas de incentivos aos profissionais de saúde para a melhoria da prestação de serviços públicos de saúde aos principais beneficiários, que são os cidadãos. 

 

A greve da classe médica em curso só teve e está a ter lugar depois de várias tentativas insatisfeitas de negociação entre os médicos, através da AMM, e o executivo, particularmente o Ministério da Saúde (MISAU), para a melhoria das condições salariais e de trabalho, conforme apresentado no respectivo caderno reivindicativo, tornado público. A insatisfação da classe médica é real, elevada, abrangente e o processo de negociação com as autoridades competentes para a solução do diferendo já dura há bastante tempo, sem produzir resultado satisfatório. Por isso, os médicos em questão não viram outra saída para além de efectivar o direito fundamental à greve nos termos previstos na CRM e de forma contínua, como forma de pressionar o Governo a resolver o problema.

 

Esta greve sempre foi legítima e legal, mas muito combatida com recurso ao abuso de autoridade e a arbitrariedades. Aliás, a greve chegou a ser suspensa na expectativa de que os acordos alcançados com o Governo seriam devidamente respeitados pelas partes, de boa-fé e nos termos da lei. 

 

Importa compreender que o direito fundamental à greve não carece, necessariamente, de lei específica para ser exercido, uma vez que a Constituição da República não condicionou o exercício deste direito à vigência de qualquer diploma legal, embora o mesmo possa melhor facilitar os seus procedimentos. Assim, a não existência de lei específica sobre a greve na função pública não impede o seu exercício, pois, é um direito fundamental exequível por si próprio, conforme se percebe do disposto no artigo 87 conjugado com o artigo 56, ambos da CRM. E, além disso, é preciso compreender que a Constituição da República está em vigor e não faz depender o exercício dos direitos e liberdades que consagra na entrada em vigor de qualquer lei ordinária, conforme se depreende do disposto no seu artigo 313. A jurisprudência do Tribunal Administrativo sobre o direito à greve na função pública exprime o mesmo entendimento.  

 

O direito fundamental à greve pode ser exercido sempre de boa-fé e por quem tenha legitimidade, desde que se respeite os limites constitucionais previstos nos artigos 56 e 87 da CRM. No caso da Greve dos Médicos, ao faltarem ao serviço para o efeito e nas circunstâncias em que o fizeram ou fazem, os profissionais de Saúde não violam nem a Constituição da República, nem qualquer outra norma infraconstitucional que trate da matéria relativa à greve na função pública. 

 

Logo, o exercício do direito fundamental à greve ou de quaisquer outros direitos e liberdades fundamentais em respeito à Constituição e que impliquem a falta ao serviço deve ser considerado causa justificativa dessa falta ao serviço. Além disso, nenhum cidadão deve ser penalizado ou ameaçado por exercer um direito, dever ou liberdade fundamental à luz do artigo 56 da Constituição.

Faltar ao serviço para o cumprimento de direitos, deveres e liberdades fundamentais dentro do quadro constitucional deve ser, indubitavelmente, considerado causa justificativa bastante da falta.

Contudo, enquanto dura a greve dos médicos liderada pela AMM, o Governo moçambicano tem demonstrado uma conduta conflituosa que se traduz em ameaças e intimidações aos médicos em greve, com destaque para a marcação de faltas tanto para a instauração de processos disciplinares, como para injustamente efectuar descontos nos salários dos mesmos, o que significa dar espaço para o enriquecimento sem causa de quem vai ficar com o valor descontado. 

 

Quanto à possibilidade de instauração do procedimento disciplinar

O procedimento disciplinar deve ser feito à luz do disposto nos artigos 108 e 157, respectivamente, do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado (EGFAE), aprovado pela Lei n.º 4/2022, de 11 de Fevereiro e do Regulamento do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado (REGFAE), aprovado pelo Decreto n.º 28/2022, de 17 de Junho. Este procedimento deve ser resultado de elementos ou indícios factuais bastantes de cometimento de infracção disciplinar. 

Não havendo sinais ou indícios bastantes de cometimento de infracção disciplinar na conduta praticada pelo funcionário ou agente do Estado, não há fundamento legal par dar seguimento a um processo desta natureza, sob pena de se criar espaço para insegurança jurídica, acusações infundadas e colocar os funcionários e agentes do Estado numa situação de vulnerabilidade pela abertura de canais para perseguições através de processos disciplinares sem base legal. Não basta, pois, entender que qualquer conduta possa configurar infracção disciplinar, é preciso que haja indícios objectivos e suficientes que possam levar a essa suspeita de cometimento de infracção disciplinar, caso contrário, a lei não permite que a Administração Pública instaure procedimento disciplinar.

Do EGFAE e do REGFAE resulta que a instauração de processo disciplinar deve ser resultado do não cumprimento dos deveres do funcionário ou agente do Estado, ou seja, do cometimento ou existência de infracção disciplinar por partes destes. Pelo que, não existindo infracção, como é o caso da Greve dos Médicos por estarem no pleno exercício de um direito fundamental, não é razoável, nem justo e nem legal que se instaure processo disciplinar para sancionar uma conduta que se traduz no exercício de direito fundamental.

O processo disciplinar não deve ser instaurado de má-fé, nem ser contrário aos princípios de justiça e dos direitos humanos, tão pouco deve ser usado como instrumento de intimidação, de ameaça ou de abuso de poder por parte das autoridades, conforme está a acontecer no caso da greve dos médicos.

As disposições legais supra, do EGFAE e do seu Regulamento, trazem consigo requisitos essenciais a que devem ser obedecidos para a legalidade e validade do procedimento disciplinar. É sobre esses requisitos que a AMM se deve concentrar para se defender e exigir responsabilidades das autoridades que abusarem do poder ou praticarem arbitrariedades com vista à instauração de processos disciplinares ou aplicação de sanções e represálias contra os médicos por exercício de direito fundamental.

É importante notar que a Constituição da República consagra como princípio fundamental no nº 1 do seu artigo 248 o seguinte: “A Administração Pública serve o interesse público e, na sua actuação, respeita os direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos.”

Portanto, a lei estabelece, na Administração Pública, as regras para a efectivação das consequências das faltas injustificadas a que o órgão da Administração Pública em causa deve obedecer. O exercício legítimo e legal do direito fundamental não deve ser objecto de penalização sob pena de limitação do mesmo, fora dos casos previstos no artigo 56 da Constituição, o qual estabelece no seu nº 2 que: o exercício dos direitos e liberdades pode ser limitado em razão da salvaguarda de outros direitos ou interesses protegidos pela Constituição e o nº 3 da mesma disposição determina que: a lei só pode limitar os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição. 

PS:

 

Este artigo constitui também um contributo para o debate público sobre a necessidade de existência duma lei ordinária específica que regula o exercício do direito fundamental à greve na função Pública, no pleno respeito à Constituição e aos Instrumentos Internacionais de protecção dos direitos humanos de que Moçambique é parte, com vista a evitar equívocos de interpretação e má aplicação da lei que possa perpetuar a violação deste direito e outros conexos.  

 

Por: João Nhampossa

Human Rights Lawyer

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

Nos termos do nº 1 do artigo 240 da Constituição da República: “o Conselho Constitucional é o órgão de soberania, ao qual compete especialmente administrar a justiça, em matéria de natureza jurídico-constitucional.” No mesmo sentido, determina a alínea a) do n.º 1 do artigo 243 da Constituição da República: “Compete ao Conselho Constitucional declarar a inconstitucionalidade das leis e a ilegalidade dos actosnormativos dos órgãos do Estado.” A mesma norma consta da alínea a) do n.º 1 do artigo 6 da Lei n.º 2/2022, de 21 de Janeiro(Lei Orgânica do Conselho Constitucional). O que significa que para além da competência em matéria de declaração de inconstitucionalidade, ao Conselho Constitucional também compete apreciar e declarar a ilegalidade dos actos normativos dos órgãos do Estado, os quais incluem, entre outros, os regulamentos, normalmente aprovados por decretos visando regulamentar determinada lei.

 

Ora, curiosamente, o artigo 101 da Lei n.º 7/2014, de 28 de Fevereiro (Lei que regula os Procedimentos Atinentes ao Processo Administrativo Contencioso – Lei do Contencioso Administrativo) sob a epígrafe – “Natureza e finalidade da impugnação de normas” - estabelece o seguinte:

 

1. A impugnação de normas tem por finalidade a declaração de ilegalidade, com força obrigatória geral, de normas emitidas no desempenho da função administrativa.
 
2. Ficam excluídas do regime de impugnabilidade regulado no presente capítulo as situações previstas na alínea a) do n.º 1, do artigo 243 da Constituição da República, na parte aplicável. 
 

Tendo em atenção as supra referenciadas normas da lei do Contencioso Administrativo é fácil de perceber que a jurisdição administrativa tem competência para apreciação e declaração de ilegalidade dos actos normativos, mas que originam da função administrativa. Parece tratar-se de uma competência excepcionalrelativamente à competência do Conselho Constitucional concernente à declaração de ilegalidade dos actos normativos dos órgãos do Estado.

No entanto, a alínea a) do n.º 1 do artigo 243 e o artigo 244,ambos da Constituição da República, não limitam a competência do Conselho Constitucional sobre os actos normativos dos órgãos do Estado, quando sejam emitidas no desempenho da função administrativa. O que significa que se forem emanadosactos normativos no desempenho da função administrava que sejam contrários à lei, o Conselho Constitucional tem competência para a declaração de ilegalidade se for chamado a apreciar o caso. Só não terá tal competência se o acto não for normativo. Importa aqui lembrar que os actos não normativos emitidos no desempenho da função administrativa também não cabem nos processos de impugnação de normas prevista no artigo 101 e seguintes da Lei do Contencioso administrativo.

 

Parece haver aqui um conflito de competências em razão da matéria entre o Conselho Constitucional e o Tribunal Administrativo relativamente à apreciação para a declaração de ilegalidade actos normativos emitidos no desempenho da função administrativa, entanto que órgãos do Estado, que precisa ser legalmente clarificado com vista a evitar mal entendidos, usurpação de competência, incoerência jurídico-legal em prejuízo dos direitos e liberdades dos cidadãos, do interesse público e da realização da almejada justiça, senão vejamos:

 

Um decreto do Conselho de Ministros ou um regulamento de um determinado Ministério que estabelecem normas sobre aplicabilidade de uma certa lei constituem, regra geral, normas emanadas no desempenho da função administrativa até porque se trata simultaneamente de órgãos do Estado e administrativo, ou seja, da Administração Pública. Resta saber se, na emissão dos decretos ou regulamentos, o Conselho de Ministros ou os Ministérios estão ou não no âmbito da função administrativa e até que ponto as normas emitidas no desempenho da função administrativa não enquadram os actos normativos dos órgãos do Estado sobre os quais o Conselho Constitucional tem competência para declaração de ilegalidade!?

 

A problemática que aqui se levanta dá a entender que, se a jurisdição administrativa apreciar um processo sobre a impugnação de determinadas normas emitidas no desempenho da função administrativa e negar declarar a ilegalidade das mesmas, nada obsta que as mesmas normas sejam submetidas ao crivo do Conselho Constitucional para a declaração de ilegalidade, o que cria uma confusão jurídica, uma vez não se tratar de um processo de recurso da decisão da jurisdição administrativa para a jurisdição constitucional. Da Constituição República e da Lei Orgânica do Conselho Constitucional não sevislumbra qualquer limitação da competência do Conselho Constitucional em declarar a ilegalidade das normas emitidas no desempenho da função administrativa desde que preencham o requisito essencial de actos normativos dos órgãos do Estado.

 

Portanto, ainda que se diga haver equívoco no exercício hermenêutico do autor do presente artigo relativamente aos limites da competência do Conselho Constitucional e da jurisdição administrativa em razão da matéria sobre a declaração de legalidade de normas emitidas no desempenho da função administrativa, a verdade é que tais limites definidos como regra geral na Constituição da República e na Lei Orgânica do Conselho Constitucional e como excepção na Lei do Contencioso Administrativo são tenebrosos, de tal sorte que carecem de melhor definição ou determinação na reforma ou revisão que se pretende levar a cabo desta última Lei.

 

PS: Este artigo constitui um singelo contributo para a reforma da Lei n.º 7/2014, de 28 de Fevereiro (Lei do Contencioso Administrativo).

Por: João Nhampossa

Human Rights Lawyer

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

 JoaoNhampossanovaa220322

Há muito que corre o debate público informal sobre a relevância da proibição da produção, uso e venda da cannabis sativa, vulgarmente conhecida por suruma, no Estado moçambicano. Esta planta é classificada como droga, substância psicotrópica, pela Lei n.º 3/97 de 13 de Março, que define e estabelece o regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, Precursores e Preparados e outras substâncias de efeitos similares e cria  Gabinete Central de Prevenção e Combate à Droga. O artigo 34 da presente Lei determina o seguinte:

 

Quem, sem se encontrar autorizado, cultivar a planta “Cannabis Sativa”, vulgarmente conhecida por suruma, será punido com a pena de 3 dias a 1 ano de prisão.

 

Moçambique apresenta vastíssima terra fértil propícia ao cultivo da suruma e vezes sem conta as autoridades policiais desmantelaram várias e extensas plantações da suruma a nível nacional para além de terem apreendido e incinerado várias quantidades da mesma planta, em cumprimento da supracitada Lei.

 

Nos termos do n.º 1 do artigo 103 da Constituição da República de Moçambique, a agricultura é a base de desenvolvimento nacional.

 

Alguns estudos científicos no domínio público revelam a importância da Cannabis Sativa tanto para fins medicinais, como para a produção de óleos, tecidos, loção ou cremes para tratamento da pele humana, chás, etc. Por essa razão, a produção, utilização e comercialização da Cannabis Sativa é largamente permitida e impulsionada para o desenvolvimento da economia de vários países, incluindo os integrantes da SADC, de que Moçambique é parte integrante. A lei não especifica de forma exaustiva, esclarecedora e convincente em que medida a planta Cannabis Sativa deve ser considerada droga maléfica à sociedade e contrária à prática da agricultura, entanto que base do desenvolvimento nacional, conforme preconizado na Constituição da República.

 

Em bom rigor, atendendo às suas qualidades para a vida humana e economia do País, bem como o facto de haver milhões de hectares de terra fértil para a produção, comercialização, exportação e industrialização da Cannabis Sativa em Moçambique, dúvidas não restam de que o cultivo desta planta constitui também matéria bastante para responder e materializar o desiderato constitucional de que a agricultura é a base do desenvolvimento nacional.

 

Do acima explanado, é fácil perceber sinais de que a Lei n.º 3/97 de 13 de Março, sobre o  tráfico e consumo de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, está em contradição com a Constituição da República no que diz respeito à proibição e criminalização do cultivo, produção, comercialização, exportação da Cannabis Sativa. Trata-se, pois, de uma Lei que prevê normas que impedem e criminalizam determinada forma ou tipo de cultivo ou de agricultura como a base de desenvolvimento nacional, sem, no entanto, explicar em que medida a planta em questão é prejudicial a ponto de ser banida e a sua prática criminalizada nos tempos contemporâneos da Constituição da República.

 

Ora, se a Cannabis Sativa é uma planta que pode ser cultivada a bem da sociedade e do desenvolvimento nacional e para fins lícitos que se coadunam com a dignidade humana incluindo a saúde e o bem-estar e, ainda, harmónico com determinados objectivos fundamentais do Estado definidos nos artigos 11 e 103 da Constituição da República, então é manifesta a contradição entre a Lei n.º 3/97 de 13 de Março, sobre o tráfico e consumo de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas para com Constituição.

 

Tanto o objectivo fundamental do Estado que consiste na promoção do desenvolvimento equilibrado, económico, social e regional do País e o objectivo fundamental que se traduz no desenvolvimento da economia e o progresso da ciência e da técnica, conforme resultam, respectivamente, das alíneas d) e h) do artigo 11 da Constituição da República, não deixam margem de dúvidas de que a proibição e criminalização do cultivo da Cannabis Sativa constitui uma das barreiras à materialização desses objectivos fundamentais do Estado e de que o Estado moçambicano está de certa maneira a negar priorizar a agricultura como a base de desenvolvimento nacional, por razões ora desconhecidas.

 

Mais do que isso, é que o n.º 2 do artigo 103 da Constituição, ao tratar da agricultura, determina que: O Estado garante e promove o desenvolvimento rural para a satisfação crescente e multiforme das necessidades do povo e o progresso económico  social do País. O cultivo da Cannabis Sativa pode ser um bom ponto de partida para a industrialização e comercialização da agricultura em grande escala. Mas até que ponto a proibição e criminalização do cultivo da Cannabis Sativa materializa esta norma constitucional? Não estará o Estado a fazer o contrário?

 

Portanto, sendo Moçambique rico na cultura da Cannabis Sativa há muitos anos e o facto da mesma ser, indubitavelmente, fonte de produção de material benéfica à sociedade, à vida humana e para desenvolvimento nacional no quadro do previsto na Constituição da República, urge a revisão e harmonização da Lei n.º 3/97 de 13 de Março, que define e estabelece o regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, Precursores e Preparados e outras substâncias de efeitos similares e cria  Gabinete Central de Prevenção e Combate à Droga para com a Constituição da República e, sobretudo, por não haver matéria bastante para a referida criminalização. No mesmo sentido, há espaço para interposição de acção de inconstitucionalidade das normas que proíbem e criminalizam o cultivo e comercialização da planta em questão.

 

Por: João Nhampossa

 

Human Rights Lawyer

 

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

JoaoNhampossanovaa220322

O Ministério Público é um dos principais garantes da legalidade no Estado moçambicano. De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 233 da Constituição da República de Moçambique (CRM) e no n.º 1 do artigo 1 da Lei Orgânica do Ministério Público e  Estatuto dos Magistrados do Ministério Público aprovada através da Lei n.º 1/2022, de 12 de Janeiro, o Ministério Público constitui uma magistratura hierarquicamente organizada, subordinada ao Procurador-Geral da República.

 

De entre outras funções, o Procurador-Geral da República presta informação anual à Assembleia da República (AR) sobre o estado geral do controlo da legalidade no País. O que deve fazer em conformidade com o disposto no n.º 3 do artigo 238 da CRM, dos n.ºs 1 e 2 do artigo 20 da Lei n.º 1/2022, de 12 de Janeiro e artigo 204 da Lei n.º 17/2013, de 12 de Agosto, que aprova o Regimento da Assembleia da República de Moçambique.

 

Nos dias 19 e 20 de Abril de 2023, a Procuradora-Geral da República foi à Assembleia da República prestar informação sobre o estado geral da legalidade e, quiçá, da justiça em Moçambique referente ao ano de 2022.

 

No âmbito da prestação da informação anual à Assembleia da República sobre a actividade do Ministério Público, a Procuradora-Geral da República deve, nos termos do n.º 2 do artigo 20 da Lei n.º 1/2022, de 12 de Janeiro, abordar o estado geral do controlo da legalidade focando essencialmente, entre outras, as seguintes matérias:

 

a) Aspectos específicos relativos ao controlo da legalidade e direitos humanos;

 

b) Índices de criminalidade, medidas de prevenção e seu combate;

 

c) Aspectos relevantes das funções do Ministério Público no âmbito da administração da justiça, com salvaguarda do segredo de justiça;

 

d) As reformas necessárias para uma maior eficácia da acção da justiça;

 

Perspectivas para o melhor desenvolvimento do Ministério Público;

Importa aqui lembrar que há vários anos e com tendência crescente que pairam na sociedade muitas questões complexas e polémicas sobre a legalidade das limitações sobre o livre exercício da cidadania, com destaque sobre o exercício do direito à liberdade de manifestação contra a má governação e gestão do bem público no geral e contra as violações dos direitos humanos.

 

Facto estranho e preocupante é que a Informação Anual da Procuradora-Geral da República à Assembleia da República quase que ignora a referência de aspectos e situações preocupantes da sociedade relativamente à violação da legalidade que tem sido não apenas recorrente, mas gritante, chegando a representar violação de direitos e liberdades fundamentais no contexto da limitação ilegal do direito à liberdade de manifestação, em que a brutalidade policial está praticamente institucionalizada como a forma mais eficaz do Estado para reprimir os cidadãos que ousam manifestar contra a má gestão do bem público e violação de direitos humanos.

 

Curiosamente, a Informação Anual da Procuradora-Geral da República à Assembleia da República parece mais uma acção de natureza política pouco séria em que basta a apreciação positiva dos deputados do partido no poder na Assembleia da Repúblico para que se considere uma informação anual que responde à questão da legalidade e da justiça no País. Não parece que a Procuradora-Geral da República esteja, de forma responsável, a prestar contas ao povo vítima das grosseiras ilegalidades e injustiças.

 

Na verdade, são sobejamente conhecidos os inúmeros casos de restrição ilegal ou arbitrária do exercício do direito à liberdade de manifestação e da liberdade de expressão com recurso ao abuso de poder por parte das autoridades, nos quais se destacam a Polícia da República de Moçambique (PRM) e os municípios, sobretudo os governados pelo partido no poder, em que se destaca o Conselho Municipal de Maputo.

 

Na sequência desses actos arbitrários e abusivos contra o direito à manifestação e liberdade de expressão e de imprensa, os cidadãos foram vezes sem conta detidos, vítimas de agressão física, baleados e sujeitos a maus tratos. Esses casos sempre foram objecto de diversos debates públicos nos órgãos de comunicação social, incluindo nas redes sociais, fundamentalmente a título de denúncia para que quem de direito pudesse agir em conformidade, neste caso o Ministério Público, considerando as suas funções constitucionais de garante da legalidade.

 

Ora, não obstante o direito à liberdade de manifestação, que está intimamente ligado à liberdade de expressão, enquadrar o leque dos direitos humanos, na vertente dos direitos políticos e civis e, acima de tudo, estarem constitucionalmente consagrados como direitos e liberdades fundamentais conforme se vislumbra dos artigos 48 e 51 da CRM e nos principais instrumentos internacionais de direitos humanos de que Moçambique é parte; o Ministério Público não revela no seu informe anual dados esclarecedores sobre a sua vigorosa actuação no sentido de repor a legalidade violada e efectivamente responsabilizar as autoridades que arbitrariamente limitaram os direitos e liberdades em referência, pela violação de outros direitos humanos e da legalidade, o que tem alimentando a impunidade com uma espécie de chancela do Ministério Público, que pouco faz para a promoção e protecção do direito à liberdade de manifestação.

 

Não são conhecidas as acções concretas e fortes deste órgão de justiça, garante da legalidade, para acabar com o abuso de poder, intimidação e outras formas de limitação ilegal do direito à manifestação e da liberdade de expressão por parte do Governo, das autoridades policiais e municipais.

 

Aliás, é curioso que até ao momento em que a Procuradora-Geral da República apresenta o seu informe anual sobre a actividade do Ministério Público no controlo da legalidade, é manifesto no debate público a indignação dos cidadãos sobre a proibição infundada do direito à manifestação como se Moçambique fosse uma Estado ditatorial ou Estado de Polícia em detrimento do Estado de Direito Democrático.

 

Urge o Ministério Público tomar uma posição pública sobre a onda de violência e brutalidade policial contra o exercício do direito à manifestação  e intimar o Governo, as autoridades policiais e municipais para se conformarem com a lei e nesse sentido não agirem de modo a limitar ou proibir os cidadãos de exercerem o direito à liberdade de manifestação sem fundamento bastante nos termos da lei aplicável ao caso.

 

De acordo com o artigo 4 da Lei n.º 1/2022, de 12 de Janeiro, as competências do Ministério Público incluem as seguintes, no que releva para o controlo da legalidade para a salvaguarda dos direitos e liberdades supra:

 

  • Defender o interesse público e os direitos indisponíveis; (al. b) do artigo 4);

 

  • Zelar pela observância da legalidade e fiscalizar o cumprimento da Constituição da República, das leis e demais normas legais; al. g) do artigo 4);

 

  • Providenciar consulta jurídica, mediante a emissão de pareceres jurídicos em matéria de estrita legalidade, por determinação da lei ou solicitação dos órgãos do Estado; al. l) do artigo 4);

 

  • Realizar inquérito, inspecções e sindicâncias, ou solicitar a sua realização pelos órgãos da Administração Pública, nos termos da lei; al. v) do artigo 4);

 

Considerando as competências supra, na sua informação anual à Assembleia da República sobre o estado geral do controlo da legalidade, a Procuradora-Geral da República deveria demonstrar em que medida o Ministério Público pôs em prática as suas competências para garantir a legalidade na salvaguarda do exercício do direito à liberdade de manifestação, da liberdade de expressão e de imprensa.

 

Representar o Estado e defender os interesses que a lei determina significa fundamentalmente prosseguir o interesse público no pleno respeito à lei, ao Estado de Direito e aos direitos e liberdades dos cidadãos, uma vez que o interesse público e o respeito pela legalidade são interesses do Estado, isto é, interesses que o Estado visa e deve prosseguir. Representar os interesses do Estado é defender a prossecução do interesse público, de tal sorte que se o Estado através dos seus agentes, serviços ou órgãos não respeita a prossecução do interesse público deve ser denunciado e demandado para respeitar o interesse público.

 

O Ministério Público nas suas funções deve sempre e incondicionalmente, de forma isenta, objectiva, imparcial e legal, defender ou salvaguardar interesse público nos termos da lei e pautar pela justiça mesmo que para o efeito tenha de denunciar comportamentos ilícitos, ilegais do Estado que prejudicam o interesse público ou direitos e liberdades dos cidadãos.

 

Assim, relativamente aos critérios de legalidade, objectividade, isenção e exclusiva sujeição à lei a que o Ministério Público está sujeito no exercício das suas funções em conformidade com o disposto no n.º 2 do artigo 233 da Constituição da República, pelo menos no que respeita às garantias de protecção do exercício do direito à liberdade de manifestação, dúvidas não restam de que a informação anual da Procuradora-Geral da República não espelha a aplicação desses critérios na actuação do Ministério Público.

 

Por: João Nhampossa

 

Human Rights Lawyer

 

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

JoaoNhampossanovaa220322

I. O Problema

 

Apesar de no sistema jurídico moçambicano existirem significativas instituições de justiça que directa ou indirectamente defendem e protegem a Constituição da República de Moçambique (CRM), é inquietante o deficiente mecanismo de protecção da mesma, dando espaço até para abuso por parte de quem tem o dever primordial de a proteger, sem qualquer responsabilização. Neste artigo, é demonstrada alguma gravidade da vulnerabilidade a arbitrariedades da Constituição em contradição com os princípios que a norteiam, com destaque, por um lado, para o princípio da legalidade previsto no n.º 3 do artigo 2, que determina que o “Estado se subordina à Constituição e funda-se na legalidade.” E, por outro, o princípio do Estado de Direito previsto no artigo 3 da mesma Constituição e que determina: “A República de Moçambique é um Estado de Direito, baseado no pluralismo de expressão, na organização política democrática, no respeito e garantia dos direitos e liberdades fundamentais do cidadão.”~

 

II. Como o Conselho Constitucional (des)protege a Constituição da República

 

O Conselho Constitucional é por definição o órgão de soberania, ao qual compete especialmente administrar a justiça, em matérias de natureza jurídico-constitucional, conforme resulta do disposto no n.º 1 do artigo 240 da CRM. Da leitura desta definição em paralelo com as competências do Conselho Constitucional, que constam do artigos 243 e 244 da CRM, bem como do artigo 6 da Lei n.º 2/2022, de 21 de Janeiro (Lei Orgânica do Conselho Constitucional), não restam dúvidas sobre a função do Conselho Constitucional que se traduz na salvaguarda da CRM. No entanto, para o efeito, é estranho e incompreensível que o acesso a este órgão de soberania seja deveras limitado pelos cidadãos que só conseguem se forem conjuntamente o mínimo de dois mil cidadãos nacionais com assinaturas devidamente reconhecidas por notário, o que revela sérias restrições ao acesso à justiça constitucional pelo cidadão e difícil protecção da Constituição por iniciativa do cidadão individualmente considerado ou em pequenos grupos e associações.

 

Mais do que isso, é que o Conselho Constitucional não actua oficiosamente ou por iniciativa própria em defesa da Constituição, senão esperar interposição de competentes processos de quem tem legitimidade para o efeito. Ora, por mais que o Conselho Constitucional tenha conhecimento de abusos contra a Constituição da República, ele não intervém de qualquer forma senão foi interpelada pelos restritos mecanismos previstos na lei para tal e por quem tem essa legitimidade.

 

Desde já, tem legitimidade para pedir a protecção da integridade constitucional, por via de acções de inconstitucionalidade das leis e da ilegalidade dos demais actos normativos dos órgãos do Estado, apenas os seguintes órgãos ou entidades de acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 244 da CRM conjugado com o n.º 2 do artigo 64 da Lei Orgânica do Conselho Constitucional: O Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República, um terço, pelo menos, dos deputados da assembleia da República, o Primeiro Ministro, o Procurador-Geral da República, o Provedor da Justiça e dois mil cidadãos. No mesmo sentido, tem legitimidade, por via de recursos, para, obrigatoriamente, solicitar a apreciação da inconstitucionalidade pelo Conselho Constitucional os juízes, quando se recusem a aplicar qualquer norma com base na sua inconstitucionalidade, conforme o artigo 246 da CRM.

 

Estranha e curiosamente, não obstante serem manifestos e significantes os actos e casos de violação da Constituição da República, os órgãos supra referidos raramente interpelam o Conselho Constitucional sobre questões de inconstitucionalidade em defesa da Constituição da República, o que fragiliza a protecção da mesma em caso de violação, uma vez que o Conselho Constitucional está legalmente proibido de agir por iniciativa própria ou de tomar o impulso processual de per si em defesa da Constituição. Os cidadãos e organizações da sociedade civil, que revelam ter grande apetência para a defesa da Constituição, tem grandes barreiras de ordem legal, com cunho constitucional, para aceder ao Conselho Constitucional para a salvaguarda da Constituição da República.

 

Mais do que isso, é que nem toda a prática, acto ou norma contrária à Constituição enquadra o conceito de leis ou de actos normativos dos órgãos de Estado para que o Conselho Constitucional seja competente, em razão da matéria, para apreciar e decidir em protecção da Constituição da República. Esta questão vem a propósito do facto de caber ao Conselho Constitucional, nos termos do nº 1 do artigo 244 da CRM, apreciar e declarar, com força obrigatória, a inconstitucionalidade das leis e a ilegalidade dos demais actos normativos dos órgãos do Estado. Nesse sentido, havendo um comportamento estadual, acto administrativo, acto político, ou conduta de qualquer outra natureza que viole a Constituição, mas que não se enquadra no conceito de leis ou actos normativos dos órgãos do Estado, o Conselho Constitucional não é competente para solucionar o problema. Isto, não obstante a questão ser matéria jurídico-constitucional do qual o Conselho Constitucional é o órgão especial para dirimir conflitos que daí derivam, conforme resulta do nº 1 do artigo 240 da CRM ao determinar: “o Concelho Constitucional é o órgão de soberania, ao qual compete especialmente administrar a justiça, em matéria de natureza jurídico-constitucional.”

 

A exclusão de algumas matérias de natureza jurídico constitucional das competências do Conselho Constitucional, mas que relevam para a defesa e protecção da Constituição da República, constituiu um significativo paradoxo e incoerência jurídica atendendo a qualidade e definição do Conselho Constitucional. Vale aqui lembrar que, infelizmente e em bom rigor jurídico processual, não há, por exemplo, um contencioso constitucional dos actos administrativos e políticos na ordem jurídica moçambicana. A questão que não quer calar é: Para os casos de violação da Constituição da República em que o Conselho Constitucional não tem competência para intervir, a quem cabe a protecção da Constituição?

 

Acresce ainda que o Conselho Constitucional, pelo menos em matéria de apreciação de (in)constitucionalidade, é simultaneamente a primeira, última e a única instituição jurisdicional a quem cabe decidir sobre protecção da Constituição por via da inconstitucionalidade, ainda que com as limitações supra referidas, o que fragiliza a protecção da Constituição pelos outros órgãos jurisdicionais que, ao não aplicarem uma norma com fundamento na inconstitucionalidade da mesma, devem remeter as suas decisões ao Conselho Constitucional para que se pronuncie decidindo sobre essa protecção da Constituição com fundamento na inconstitucionalidade.

 

Actualmente, pairam dúvidas na sociedade sobre a constitucionalidade do acto que cria a Comissão de Reflexão sobre a Viabilidade da Realização das Eleições Distritais em 2024 (CRED), até porque a mesma parece, na verdade, uma comissão para a revisão pontual da Constituição no que diz respeito à norma constitucional que estabelece: “As primeiras eleições distritais, nos termos previstos na Constituição da República, têm lugar no ano de 2024.” No entanto, neste caso, o Conselho Constitucional não tem possibilidade legal de ser chamada a intervir. A CRED pode chegar à conclusão de que as eleições distritais para 2024 não são viáveis, chancelando a posição pública do Presidente da República, o que poderá determinar a materialização da vontade política, aparentemente egoísta, de revisão da Constituição. Este é mais um exemplo da fragilidade da protecção da Constituição da República.

 

III. Chefe do Estado o garante da Constituição?

 

Um outro órgão de soberania relevante para a protecção directa da Constituição é o Presidente da República, entanto que garante da Constituição na sua qualidade de chefe de Estado, conforme dispõe o n.º 2 do artigo 145 da CRM. É, pois, nessa vertente que, dentro das suas competências de promulgação e veto plasmados no artigo 162 da CRM, tem elementos bastantes para não promulgar leis que põem em causa a Constituição da República, tendo, nesse sentido, a prerrogativa de requerer ao Conselho Constitucional a verificação preventiva da constitucionalidade de qualquer diploma legal que lhe seja enviado para promulgação. O Presidente da República é o único órgão com essa possibilidade de requerer fiscalização preventiva da constitucionalidade das leis. Mas não é obrigado a requerer, depende da sua vontade, o que também constitui um mecanismo frágil de protecção da Constituição da República por via da verificação da constitucionalidade preventiva. É facto bem assente que o Presidente da República não tem o hábito e o cuidado de requerer essa fiscalização, mesmo perante leis muito polémicas por manifestos sinais de inconstitucionalidade que promulgou, como são os casos da recente legislação sobre o combate ao branqueamento de capitais e financiamento ao terrorismo, bem como o Código Penal e o Código de Processo Penal em vigor.

 

Importa referir que pelo facto do Presidente da República nomear o presidente do Conselho Constitucional e por haver sinais de controle ou forte interferência política sobre o Conselho Constitucional, parece dar lugar a uma espécie de temor reverencial por parte deste órgão relativamente ao Presidente da República de tal maneira que fica difícil contrariá-lo em defesa da integridade da Constituição perante leis que parecem prosseguir objectivos políticos obscuros em violação da Constituição, coerência constitucional. Aliás, o debate público em torno do polémico Acórdão n.º 03/CC/2022, de 17 de Junho referente ao processo n.º 02/CC/2021 sobre a fiscalização sucessiva abstracta da constitucionalidade de determinadas normas do Código do Processo Penal, ora em vigor, com destaque para as normas sobre prisão preventiva, no qual o Conselho Constitucional, num contexto político perturbador do judiciário, negou declarar a inconstitucionalidade dessas normas, com declaração de voto vencido de dois renomados juízes conselheiros, o que apimentou mais a fragilidade da decisão do Conselho Constitucional.

 

São raros os casos de intervenção do Chefe do Estado em defesa e protecção da Constituição da República mesmo perante situações de actos de violação à Constituição, em especial dos direitos humanos, por órgãos como o Governo e as Forças de Defesa e Segurança do qual o Presidente da República é o chefe máximo.

 

IV. Concluindo

 

Portanto, os mecanismos de protecção directa da Constituição da República mostram-se deficientes e muitas vezes ineficazes. O monopólio dessa protecção pelo Conselho Constitucional e Presidente da República é problemático pelas várias limitações acima apresentadas e, também, por haver muito espaço legal que impede a intervenção desses órgãos em defesa da Constituição por iniciativa própria, para além de que no caso de o Presidente não existir situações que seja legalmente obrigatório remeter as leis à fiscalização preventiva da constitucionalidade antes da promulgação.

 

A Constituição da República é muito vulnerável a violações pelos actos administrativos e políticos, com difíceis mecanismos de defesa e protecção.

 

Por: João Nhampossa

Human Rights Lawyer

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

JoaoNhampossanovaa220322

“As primeiras eleições distritais, nos termos previstos na Constituição da República, têm lugar no ano de 2024.” É o que estabelece o n.º 3 da Constituição da República de Moçambique (CRM). Trata-se, pois, de uma consagração constitucional resultante da revisão da Constituição havida no ano de 2018, através da Lei n.º 1/2018 de 12 de Junho, a qual introduziu o polémico pacote de descentralização, incluindo a figura do Secretário do Estado na Província.

 

Ora, dúvidas não restam de que se operou uma alteração profunda da Constituição de 2004, na medida em que foi modificado o direito de sufrágio universal e de participação política no que as autarquias locais diz respeito, bem como da organização do poder político, para além de ter posto em causa a salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias fundamentais relativos à democracia ou ao processo da democratização do País à luz do princípio do Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 3 da CRM. Isto significa que as alterações dessas matérias constituições não deviam ter lugar sem a realização de referendo, o que foi completamente ignorando em violação do n.º 2 do artigo 300 da CRM que determina os limites matérias de revisão constitucional.

 

Em boa verdade, é preciso reconhecer que a revisão da Constituição de 2004 através da Lei n.º 1/2018 de 12 de Junho foi resultado da vontade e acordo de duas pessoas, nomeadamente Presidente da República, Filipe Jacinto Nyusi e o então Presidente da RENAMO, Afonso Dlhakama, sem qualquer participação pública relevante nos termos da lei para o efeito e em clara violação as regras previstas para a revisão constitucional daquela envergadura. Foi uma revisão constitucional alegadamente sustentada na urgência do problemático acordo de paz assinado entre Nyusi e Dlhakama, atendendo as eleições autárquicas e gerais realizadas em 2018 e 2019, respectivamente. Tratou-se, em bom rigor, de uma revisão constitucional completamente refém da vontade e ambição política e que de entre outros aspectos para o referido acordo de paz e de partilha de poder político previu a introdução de eleições distritais para o ano de 2024.

 

Correntemente, ouve-se, recorrentemente, a voz do comando presidencial que se opõe fortemente contra a realização das eleições distritais constitucionalmente previstas para o ano de 2024, no sentido de adiá-las para um outro período, alegadamente por falta de condições, sobretudo, materiais e financeiros, assim como falta de ambiente político e social favorável.

 

No entanto, não são apresentados estudos e evidências inequívocas ao público em geral que alimentam essa posição contra a materialização das eleições distritais em 2024. Curiosamente, para a efectivação dessa posição e vontade presidencial, há que se proceder com a revisão pontual da Constituição da República o que, do ponto de vista temporal, se  mostra possível, apesar de revelar fragilidade da Constituição no que diz respeito a maneira como é revista e a forma irresponsável como é usada para firmar compromissos políticos dúbios e amainar os ânimos das forças políticas como parece estar a acontecer com o processo de constitucionalização de eleições distritais e a pretensão da anulação da sua funcionalidade e operacionalização no período constitucionalmente previsto.

 

Ainda que aparentemente possam estar preenchidos os requisitos para uma revisão pontual da Constituição da República de modo que esteja adiada a realização das eleições distritais, tal não deixa de representar uma grande traição à integridade constitucional para satisfazer a “líbido” política, considerando que há violação das expectativas criadas no seio do povo relativamente a governação descentralizada a nível do distrito, bem como violação da coerência e segurança jurídica no que os preceitos constitucionais dizem respeito, para além de se estar a desvalorizar e banalizar a CRM.

 

Mais preocupante ainda, é o facto de haver no sistema jurídico moçambicano deficiente mecanismo de protecção da integridade da CRM que é, vezes sem conta, pontapeada para alimentar interesses políticos, num contexto de quase ausência de debate público franco e profundo sobre a salvaguarda da Constituição mesmo a nível da academia e das principais instituições de justiça, incluindo o judiciário, com destaque para o Conselho Constitucional que é por definição o órgão de soberania, ao qual compete especialmente administrar a justiça, em matérias de natureza jurídico-constitucional, conforme resulta do disposto no n.º 1 do artigo 240 da CRM. Em bom rigor jurídico, o Conselho Constitucional mostra-se de mãos atadas para proteger a Constituição de tal modo que as suas atribuições e competências para esse efeito são, na verdade, cosméticas. Pior ainda, é o facto de não haver ousadia bastante, no estrito respeito pela lei e ética científica, para contrariar a vontade ou posição do Presidente da República, mesmo que essa posição esteja a pôr em causa a integridade da CRM.

 

Portanto, há necessidade urgente de adoptação de mecanismos mais claros de protecção da Constituição da República e garantir que a mesma não seja usada para expedientes políticos não sérios e que a sua revisão seja razoável, respeitosa dos requisitos definidos para tal e que seja feita mediante uma participação pública transparente. No mesmo sentido, urge melhor justificação para o adiamento das eleições distritais agendadas para 2024 com evidências inequívocas e objectivas. Mais do que isso, é preciso explicar a sociedade a real razão de se ter estabelecido constitucionalmente a realização das primeiras eleições distritais para o ano de 2024.

 

Por: João Nhampossa

 

Human Rights Lawyer

 

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

JoaoNhampossanovaa220322

Os cidadãos, fãs e seguidores do Azagaia, considerado herói do povo, decidiram organizar uma marcha nacional agendada para o dia 18 de Março, que, em princípio, terá lugar em todas as capitais provinciais, em homenagem ao rapper, ícone do hip hop lusófono.

 

No entanto, há bastante tempo que, do ponto de vista prático, os cidadãos não são permitidos exercer o direito à liberdade de manifestação, sobretudo os do tipo marcha, na via pública. Aliás, para o efeito da denegação dessa liberdade aos cidadãos, o governo de Moçambique, recorrentemente, através da sua força policial, impede ilegalmente o exercício do direito à manifestação pacífica pelos cidadãos ou grupos sociais, seja por via de ameaças, intimidação, detenções arbitrárias, agressão física, baleamentos, tortura e outros maus tratos que consubstanciam violação dos direitos humanos, para além de argumentos infundados nos termos da lei, de que a manifestação não foi autorizada, quando a realização da manifestação não carece de qualquer autorização pelos órgãos da administração pública. Neste quesito, a Ordem dos Advogados de Moçambique elaborou e publicou um caderno sobre o exercício do direito à liberdade de manifestação que muito bem explica os cidadãos os passos legais para o seu exercício e limitação pelas autoridades.

 

Curiosa e estranhamente, são apenas permitidas as manifestações que visam exaltar ou bajular o governo do dia, especialmente o Presidente da República e o partido no poder.

 

Perante essa situação, preocupa a “vista grossa” que fazem as instituições de justiça relevantes nesta matéria, com destaque para o Ministério Público, entanto que garante da legalidade, sem, no entanto, ignorar o papel da Comissão Nacional de Direitos Humanos e o Provedor da Justiça que, pelas suas atribuições e competência em matéria de direitos humanos e realização da justiça, deveriam ser mais interventivos e incisivos com vista a garantir o respeito pelo exercício da liberdade de manifestação nos termos da lei.

 

A morte e o legado do Azagaia, conforme ficou notório pela enchente e manifestação de diversa natureza no seu funeral, abriu uma grande janela senão uma grande porta mesmo para o despertar do povo relativamente à salvaguarda dos seus direitos e liberdades fundamentais, bem como para o efectivo exercício dessas liberdades contra a má-governação, abuso de poder, opressão, corrupção, discriminação e violação dos direitos humanos em busca da almejada justiça e bem-estar social de todo o povo.

 

Assim, amanhã, dia 18 de Março, será o primeiro grande teste dos cidadãos face ao combinado com o Azagaia: Povo no Poder! Todavia, será que este povo há muito intimidado pelas autoridades terá a coragem de levar a cabo a marcha nacional em homenagem ao seu herói, independentemente de autorização da marcha pelas correspondentes autoridades, o que não é condição legal para o efeito? E se for impedida a marcha sem fundamento legal, será que esse povo está preparado para demandar sobre várias formas a administração pública em causa e exigir responsabilidades em tempo útil? Será que os cidadãos que pretendem marchar pacificamente amanhã em homenagem a este ícone do hip hop lusófono têm a necessária coragem deste para não se deixar intimidar em lutar pelos seus direitos e liberdades fundamentais?

 

Azagaia morre e deixa riquíssimos ensinamentos de revolução e combate contra a opressão num contexto de excessiva limitação do espaço cívico, de violação dos direitos humanos e de perseguição dos activistas sociais, dos críticos da má-gestão do bem público e da prática cada vez mais acentuada do discurso de ódio contra as organizações da sociedade civil e liberdade académica.

 

Portanto, pela euforia popular e vontade de colocar um basta nos abusos de direitos e liberdades, bem assim no cada vez mais empobrecimento dos mais pobres, Azagaia torna-se numa espécie de Jesus que morreu para nos salvar. Será que temos mente liberta bastante para perceber o sentido e o alcance do princípio constitucional de que a soberania reside no povo e assumir esse poder? Veremos no teste de amanhã…

 

Por: João Nhampossa

 

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Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

JoaoNhampossanovaa220322

Uma excepcional escola de democracia e activismo de urgente implementação 

 

Das letras das músicas do Azagaia e das suas posições públicas nas entrevistas que concedeu sempre ficou claro que este ícone do hip hop da lusofonia tinha claro conhecimento e domínio dos objectivos fundamentais do Estado consagrados no artigo 11 da Constituição da República, quais sejam:

  • a) a defesa da independência e da soberania;

 

  • b) a consolidação da unidade nacional;

 

  • c) a edificação de uma sociedade de justiça social e a criação do bem-estar material, espiritual e de qualidade de vida dos cidadãos;

 

  • d) a promoção do desenvolvimento equilibrado, económico, social e regional do país;

 

  • e) a defesa e a promoção dos direitos humanos e da igualdade dos cidadãos perante a lei;

 

  • f) o reforço da democracia, da liberdade, da estabilidade social e da harmonia social e individual;

 

  • g) a promoção de uma sociedade de pluralismo, tolerância e cultura de paz;

 

  • h) o desenvolvimento da economia e o progresso da ciência e da técnica;

 


  • i) a afirmação da identidade moçambicana, das suas tradições e demais valores sócio-culturais;

 

  • j) O estabelecimento e desenvolvimento de relações de amizade e cooperação com outros povos e Estados.

 

Dúvidas não restam de que os objectivos fundamentais do Estado supra mencionados foram muito bem interpretados e divulgados por Azagaia através das suas letras musicais, com base em linguagem simples e directa pela crítica contra a má-governação e injustiça social.

 

Em boa verdade, Azagaia cantou no quadro do Estado de Direito Democrático e foi combatido pelo poder público por praticar a democracia e respeitar a Constituição da República. Foi concebido pelos “vampiros” como uma espécie de criminoso e antipatriota por alertar toda a colectividade para não ignorar o princípio fundamental de que a soberania reside no povo, conforme sua célebre proclamação musical “Povo no Poder” entanto que lema que visa democratizar e libertar a consciência do cidadão para não ser injustamente explorado e de qualquer forma oprimido.

 

As músicas de intervenção política e social de Azagaia constituem uma verdadeira e excepcional escola de democracia e de exercício da cidadania para a realização da justiça, respeito ao próximo, tolerância e boa gestão do bem público. Por isso, há necessidade de perpetuar a sua visão e activismo através de um processo bem estruturado e institucionalizado de ensino e aprendizagem para a actual e futura geração. Contudo, só os amigos do Azagaia e o povo que o venera e que o declarou seu herói podem e devem concretizar a instituição Azagaia.  O poder público tem a oportunidade de humildemente render-se ao legado do Azagaia para a prossecução do interesse público, apanágio do Estado.

 

O trabalho do Azagaia problematiza o tradicional e convencional estabelecimento da heroicidade em Moçambique e sobre onde efectivamente devem jazer os heróis do povo. Pelo seu activismo corajoso, sobretudo, a bem da justiça social e, particularmente, por conseguir dar esperança ao povo de um Moçambique melhor e de inclusão face aos abusos dos três poderes do Estado – Judicial, Executivo e Legislativo, incluindo os abusos perpetrados pelos Municípios - Azagaia foi declarado herói do povo pelo próprio povo.

 

Nesse contexto, ressaltam actualmente questões como: Será que é imperioso ser declarado herói por decreto ou lei para ser considerado como tal, num contexto em que o povo pacificamente e por consenso assim considera? Será que é obrigatório que o herói jaze na cripta da Praça dos Heróis para que fique chancelada essa qualidade quando o povo que reconhece essa heroicidade não tem acesso à Praça dos Heróis?

 

Trata-se, pois, de um debate interessante que nos permite reflectir sobre o tratamento a dar a um herói escolhido pelo povo por consenso com evidências claras de actos de coragem e abnegação no activismo pela justiça dos moçambicanos de forma honesta, consistente, coerente e pública. No mesmo sentido, embora seja um debate antigo, permite reflectir sobre a utilidade da Praça dos Heróis, considerando que em termos práticos está fechada a uma elite partidária tanto para os que lá jazem como para os que visitam aquele local que devia ser histórico cultural normalmente aberto ao público.

 

Ora, desde que Azagaia pereceu fisicamente a sua estátua está a ser erguida em todas as praças públicas de Moçambique e em alguma praça pública internacional com destaque para os países da lusofonia, onde se tornou ícone do hip hop. Não há, pois, como negar a implementação da escola Azagaia no sistema de ensino nacional e nas artes e cultura em especial, uma vez que a sua grandeza transcende as cores partidárias e exalta a moçambicanidade nas várias dimensões: política, social e cultural.

 

Portanto, com o seu nacionalismo e exercício da cidadania suis generis, Azagaia conseguiu sobrevir a sua própria morte e com a sua alma continuar a conscientizar os moçambicanos sobre o que combinaram após a sua morte: Povo Poder!

 

PS: Texto baseado numa conversa de facebook com Emerson Chiloveque sobre a grandeza do Azagaia e a atribuição de título honorífico de herói da República de Moçambique.

 

Por: João Nhampossa

 

Human Rights Lawyer

 

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

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