Director: Marcelo Mosse

Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

BCI
João Nhampossa

João Nhampossa

Moçambique vive um cãos político e social, bem como um cenário de violência e brutalidade policial contra os cidadãos indefesos, nos últimos dias, em particular, desde o bárbaro assassinato do advogado Elvino Dias e de Paulo Guambe, mandatário do Partido PODEMOS, na cidade de Maputo, na madrugada do dia 19 de Outubro corrente, num contexto de crise político eleitoral, aliás, considerado de excessivamente fraudulento por vários actores políticos, sociais e em especial pelo povo, concretamente os jovens e grupos mais pobres da sociedade moçambicana.

 

Sem vergonha, nem ética profissional e respeito pela dignidade humana que deve caracterizar a Polícia da República de Moçambique (PRM) e as Forças de Defesa e Segurança (FDS), a Polícia está, intencionalmente, de forma recorrente e firme, a praticar execuções sumárias, ameaças, agressões físicas, detenções arbitrárias, baleamentos, com recurso a armas de fogo e uso de gás lacrimogéneo contra os cidadãos indefesos, independentemente de se tratar de manifestantes ou de estarem em situação de manifestação contra os resultados eleitorais e contra o hediondo homicídio do advogado Elvino Dias e de Paulo Guambe, respectivamente, mandatário do candidato às eleições presidenciais, Venâncio Mondlane, e mandatário do Partido PODEMOS.

 

Simultaneamente, os manifestantes do Partido no Poder, a FRELIMO, nas suas marchas de celebração da alegada vitória eleitoral, gozam, não só de plena e forte protecção das instituições da Administração Pública e da justiça, como da forte e incondicional protecção policial. Em bom rigor, a Polícia até usa balas verdadeiras e envereda pelo uso desproporcional do gás lacrimogéneo para dispersar e afugentar os filhos “ilegítimos”  de Moçambique, o povo pobre e vítima da má governação que contesta os resultados eleitorais e os assassinatos supra referidos, para não atrapalharem a celebração dos alegados vitoriosos destas eleições gerais, a FRELIMO e seu candidato à Presidência da República, conforme ficou evidente no passado fim-de-semana, com destaque para sábado, dia 27 de Outubro corrente, sobretudo no Distrito de Mecanhelas, na Província do Niassa.

 

Em menos de uma semana a Polícia exibiu e praticou em demasia a violência e brutalidade policial, sem qualquer tipo de impedimento ou de chamada de atenção por entidade competente, seja de sua gestão ou direcção, seja da fiscalização interna e externa da sua actuação.

 

Mais do que isso, é que a Polícia avisou, publicamente, que vai repelir qualquer tentativa de manifestação e decretou tolerância zero contra o exercício da manifestação, o que veio a acontecer. Mas nenhuma instituição de justiça tugiu ou mugiu para impedir qualquer acto de barbaridade contra os cidadãos ou violação dos seus direitos e liberdades fundamentais. Curiosamente, a prática ensina que repelir e tolerância zero para a Polícia significa violência e brutalidade policial que se traduz em execuções sumárias, ameaças, agressões físicas, detenções arbitrárias, baleamentos, com recurso a armas de fogo e uso desproporcional de gás lacrimogéneo contra os cidadãos indefesos.

 

A PRM e as FDS violentam e brutalizam os cidadãos em geral, com a excepção dos “cidadãos” da FRELIMO, perante inércia tanto das instituições de justiça, como da direcção desses órgãos de Polícia e segurança do Estado, com destaque tanto para o Presidente  da República, na qualidade de Comandante-Chefe das Forças de Defesa e Segurança e garante da Constituição da República, por um lado, como para o Ministério Público, enquanto garante da legalidade e detentor da acção penal, em especial em crimes públicos como os praticados pela Polícia. A Comissão Nacional dos Direitos Humanos e o Provedor de Justiça são as outras instituições relevantes que devem, dentro das suas atribuições e competências legais, tomar posições sérias e agirem de forma firme, contundente e urgente contra a actuação da Polícia.

 

Se assim aconteceu e está a acontecer, então o presente artigo coloca as seguintes questões: Quem controla os agentes da PRM e FDS para actuarem dentro do quadro constitucional em vigor em Moçambique? Quem efectivamente responsabiliza a PRM e FDS pela violência e brutalidade policial contra os cidadãos? Será que a resposta está a ser empurrada para a prática da justiça popular ou justiça pelas próprias mãos?

 

Portanto, parece que se está perante um Estado Polícia em que a PRM e as FDS controlam o Estado a seu bel-prazer e se sobrepõem a quaisquer outros do Estado, incluindo os órgãos de justiça, nomeadamente o Ministério Público e os Tribunais que demonstram temor reverencial em responsabilizar a polícia pela violação dos direitos, liberdades e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.

 

Por: João Nhampossa

 

Human Rights Lawyer

 

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

 

Jurisconsulto em Litigância de Interesse Público

Contextualização 

 

Há muitos anos que o exercício da cidadania em Moçambique é ofuscado e condicionado pelo medo que os cidadãos sentem por temerem represálias de diversa ordem, quais sejam: perda de emprego, marginalização, discriminação, intimidação, ameaças, ódio, agressão física, desaparecimento e até assassinatos, que é a situação mais grave, fundamentalmente praticado pelos chamados “Esquadrões da Morte”, “Milicianos digitais”, alguns governantes e/ou dirigentes, algumas elites do Partido no Poder, Polícia da República de Moçambique (PRM), Forças de Defesa e Segurança (FDS). Em certas situações, o medo é alimentado e espalhado através do Ministério Público e/ou Procuradoria-Geral da República e até mesmo pelos Tribunais por via de processos-crimes infundados e fabricados.

 

Do ponto de vista jurídico constitucional, Moçambique é um Estado de Direito Democrático e de  justiça social. No mesmo sentido, a Constituição da República de Moçambique (CRM) define como objectivos fundamentais do Estado, de entre outros, os seguintes: “a edificação de uma sociedade de justiça social e a criação do bem-estar material, espiritual e de qualidade de vida dos cidadãos; a defesa e a promoção dos direitos humanos e da igualdade dos cidadãos perante a lei”;o reforço da democracia, da liberdade, da estabilidade social e da harmonia social e individual”; “a promoção de uma sociedade de pluralismo, tolerância e cultura de paz”; consagrados nas alíneas c), e), f) e g) do artigo 11 da Constituição da República, respectivamente.

 

Curiosa e estranhamente, alguns órgãos do Poder Público têm ignorado o formalismo constitucional que consagra o exercício da cidadania, da democracia, dos direitos e liberdades fundamentais como forma de ser, estar e fazer política e cultura de desenvolvimento social e económico de Moçambique. O estabelecimento do medo e terror no seio da população tornou-se o maior trunfo dos dirigentes para se manterem no poder, a todo o custo, mesmo sacrificando vidas de cidadãos inocentes e indefesos que recorrem à inteligência e à lei para que prevaleça a justiça no País.

 

Há várias evidências e de natureza grave de que a PRM tem sido campeã de violação dos direitos humanos e de abuso de autoridade, com algum destaque para o Serviço Nacional de Investigação Criminal – SERNIC, que, segundo denúncias na imprensa e mesmo nos relatórios oficiais dos órgãos de justiça, até chega a assassinar e raptar cidadãos num esquema de negócios ilegais, qualificando-se como autêntico agente do crime organizado. Outrossim, polícias do Grupo de Operações Especiais (GOE), da Força de Intervenção Rápida (FIR) ou Unidade de Intervenção Rápida (UIR), unidade anti-motim da PRM, também actuam contra os direitos humanos e semeiam medo no povo.

 

Por sua vez, as Forças de Defesa e Segurança (FDS), não obstante o seu acto patriótico relativamente à guerra em Cabo Delgado contra o terrorismo, têm sido denunciadas como agentes da violação de direitos humanos, matando indiscriminadamente e saqueando os seus bens da população, para além de os intimidar e ameaçar. Aliás, várias organizações da sociedade civil, incluindo a Amnistia Internacional, assim como a imprensa nacional e internacional, chegaram a denunciar e reportar informações que consubstanciam violação de direitos humanos por parte das FDS em Cabo Delgado, no contexto da guerra contra o terrorismo.

 

Algumas evidências de institucionalização do medo no País

 

O recente assassinato bárbaro do advogado Elvino Dias e de Paulo Guambe, mandatário do Partido PODEMOS, na cidade de Maputo, no contexto das correntes eleições gerais, atendendo às circunstâncias e modus operandi, é mais uma evidência inequívoca, não só da prática da institucionalização do medo em Moçambique como uma forma de gestão do Poder, mas também da materialização da licença para matar a cidadania, a democracia e o Estado de Direito.

 

Ainda no contexto das eleições, importa aqui lembrar que foi a força policial (GOE) que, uma semana antes das eleições gerais de 15 de Outubro de 2019, assassinou o activista social, defensor dos direitos humanos e pai de família, Anastácio Matavel, no dia 07 de Outubro de 2019, em plena luz do dia, na via pública, na Cidade de Xai-Xai, na Província de Gaza.

 

Na verdade, do ano 2015 até ao presente momento houve significativos assassinatos, agressões e outros tipos de violações graves contra os cidadãos no pleno exercício da cidadania em defesa do Estado de Direito Democrático, da legalidade, do interesse público, dos direitos humanos e da justiça. Essas violações tiveram lugar, maioritariamente, num contexto de forte crítica ao governo do dia seja pela prática da corrupção, abuso de poder, má gestão do bem público, inércia dos órgãos de justiça, má governação, fraude eleitoral a favor do partido no poder e excessiva interferência do poder executivo sobre o poder legislativo e judicial.

 

Aliás, vale lembrar que, nos últimos 10 anos, os cidadãos foram praticamente proibidos, arbitrariamente, de exercer o direito à liberdade de manifestação e com o beneplácito dos órgãos da justiça, mormente a Procuradoria-Geral da República que nunca tomou qualquer posição, enquanto garante da legalidade, para permitir o exercício da cidadania e da democracia, pela efectivação do direito à liberdade de manifestação nos termos da lei, por um lado, e para garantir a responsabilização dos que violam o direito à liberdade de manifestação, por outro.

 

Igualmente, os cidadãos têm sido vítimas de violação dos seus direitos humanos tão somente pelo exercício da liberdade de expressão, que na prática ficou excessivamente limitada quando se trata de criticar a má gestão do Estado, a má governação, o abuso de poder, a corrupção e violação dos direitos humanos.

 

Mais do que isso, é que o exercício da liberdade de imprensa e a liberdade de associação, nos termos constitucionalmente consagrados, não escapa a essa violação, limitação infundada e intimidação de quem exerce essas liberdades.

 

Os jornalistas, órgãos de comunicação social independentes e organizações da sociedade civil são muitas vezes perseguidos pelo regime do dia e muitas vezes silenciados sem qualquer base legal. Até há casos flagrantes de recurso à reforma legal para intimidar ou silenciar os jornalistas, activistas sociais e organizações da sociedade civil. São exemplos disso: a reforma da legislação sobre o branqueamento de capitais e combate ao terrorismo, a reforma do Código Penal e do Código do Processo Penal, a recente reforma da lei eleitoral, que até intimida e marginaliza as atribuições e competências dos juízes e tribunais eleitorais do Distrito; a forma maquiavélica e arbitrária com que se pretendia levar a cabo a revisão da Lei n.º 8/91 de 16 de Julho (Lei das Associações) e do processo da revisão da lei de imprensa (lei nº18/91, de 10 de Agosto), cuja denominação se pretende Lei da Comunicação Social, que está a ser demasiado criticado principalmente pelos próprios profissionais da comunicação social e pela sociedade civil que se sentem marginalizados e traídos pelo conteúdo da proposta de revisão da lei de imprensa, que até procura criminalizar a actividade jornalística como forma de intimidar a liberdade de imprensa.

 

Muitas das violações contra os críticos do sistema no poder, contra os activistas sociais, jornalistas, órgãos de comunicação social, organizações da sociedade civil e académicos, etc., têm lugar num contexto de forte prática de discurso de ódio contra os mesmos, pelos chamados “Lambe-botas do Governo e Milicianos Digitais”. O discurso de ódio é feito com recurso às redes sociais e imprensa pública, que serve mais ao regime do dia ao invés do interesse público. 

 

Importa notar que hoje, 21 de Outubro de 2024, as crianças não vão à escola por ser dia de “terror” contra o exercício do direito à liberdade de manifestação tanto pelo assassinato do Advogado Elvino Dias e do mandatário do Partido Podemos, Paulo Guambe, como pelas denúncias de fraude eleitoral. Nesse prisma, as crianças já sabem que a PRM e sua UIR e as FDS vão violentar os manifestantes, prendê-los arbitrariamente e até matar, se for o caso. Trata-se, em bom rigor, de um processo de interiorização do medo e terror em tenra idade.

 

Conclusões

 

São significativas as evidências e sinais do processo e prática da institucionalização do medo sobre o povo moçambicano, como forma de gestão do Estado. As maiores vítimas são os que pensam diferente e/ou contrariamente ao regime no poder,

 

A arbitrariedade, o abuso de poder e “gangsterismo Estadual”, muitas vezes com recurso ilegal à força policial e militar, são os mecanismos ou práticas mais usadas para a institucionalização do medo, com a apatia dos órgãos de justiça e de protecção dos direitos humanos, que são fortemente influenciadas pelo poder executivo.

 

O País só poderá desenvolver, conhecer a paz, boa governação e materialização dos direitos humanos com a eliminação da barreira da instituição do medo que é praticada pelos três poderes do Estado, com destaque para o poder executivo que, actualmente, controla os outros poderes e não é responsabilizado pelas atrocidades e destruição da estabilidade social e sonhos dos moçambicanos de viverem numa sociedade de pluralismo, tolerância, bem-estar, de cultura da paz e do respeito pelos direitos humanos, independentemente da opinião de cada um.

 

Para o efeito, compete ao Governo assegurar a administração do País, garantir a integridade territorial, velar pela ordem e pela segurança e estabilidade dos cidadãos, promover o desenvolvimento económico, implementar a acção social do Estado, desenvolver e consolidar a legalidade e realizar a política externa do País. É o que dispõe o n.º 1 do artigo 202 da CRM.

 

A função constitucional da PRM é a de garantir a lei e ordem, a salvaguarda da segurança de pessoas e bens, a tranquilidade pública, o respeito pelo Estado de Direito Democrático e a observância estrita dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, conforme estabelece o n.º 1 do artigo 253 da CRM.

 

O artigo 261 da CRM determina o seguinte: “A política de defesa e segurança do Estado visa defender a independência nacional, preservar a soberania e integridade do País e garantir o funcionamento normal das instituições e a segurança dos cidadãos contra qualquer agressão armada.”

 

Por sua vez, o n.º 1, do artigo 262 da CRM estabelece que: “As forças de defesa e os serviços de segurança subordinam-se à política nacional de defesa e segurança e devem fidelidade à Constituição e à Nação.” No mesmo sentido, o n.º 2 deste mesmo artigo dispõe que: “O juramento dos membros das forças de defesa e dos serviços de segurança do Estado estabelece o dever de respeitar a Constituição, defender as instituições e servir o povo.”

 

Por: João Nhampossa

 

Human Rights Lawyer

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

Por razões ainda obscuras, o Instituto Nacional de Comunicação de Moçambique – INCM decidiu pelo aumento das tarifas sobre os serviços de voz, SMS e dados móveis (uso de internet), através da Resolução n.º 1/INCM/2024, de 19 de Fevereiro, o que não foi bem recebido na sociedade moçambicana, tendo gerado indignação e contestação generalizada, incluindo acções de manifestação popular, na via pública, em quase todas as capitais provinciais. Paralelamente, houve interpelação formal ao INCM e acção judicial contra a supra mencionada Resolução, tudo com vista à revogação desse diploma legal emanado pelo INCM.

 

Na sequência das acções de manifestações contra a Resolução n.º 1/INCM/2024, de 19 de Fevereiro, que fixa os limites mínimos das tarifas de telecomunicações, o Conselho de Ministros, na sua 17ª Sessão Ordinária, realizada no dia 28 de Maio de 2024, decidiu orientar, ou seja, ordenou o INCM, entanto que Autoridade Reguladora das Comunicações em Moçambique, a suspender a Resolução em referência. Essa ordem foi supostamente acatada pelo INCM em conformidade com o comunicado de suspensão da Resolução n.º 1/INCM/2024, de 19 de Fevereiro.

 

No entanto, o INCM não deu a conhecer o instrumento através do qual suspendeu a Resolução n.º 1/INCM/2024, de 19 de Fevereiro, tampouco tornou pública a data da entrada em vigor dessa suspensão e os efeitos práticos da mesma. O que revela um comportamento fraudulento com o intuído de acalmar os ânimos da população que se tem rebelado contra a Resolução em questão.

 

Esse acto de suspensão proferido pelo INCM, se existe, não tem qualquer eficácia, uma vez se desconhecer o período da sua vigência, para além de que as operadores continuam a aplicar a Resolução n.º 1/INCM/2024, de 19 de Fevereiro, considerando que as novas tarifas fixadas continuam funcionais em prejuízo dos direitos e interesses legalmente protegidos dos consumidores dos serviços de voz, SMS e dados móveis (internet), os quais continuam a apagar valores elevados e injustos para se beneficiarem desses serviços.

 

É, pois, fácil notar a tendência enganadora do INCM pelos termos em que foi emanada a polémica suspensão e o seu carácter obscuro no que concerne ao período da sua vigência e efeitos práticos que da mesma se pretende, atendendo à contestação dos consumidores dos serviços em causa. 

 

Estranha e curiosamente, a mesma suspensão refere-se que decorrem estudos, em coordenação com as operadoras de telefonia, no sentido de dar seguimento às recomendações do Conselho de Ministro. Ora, esta é, indubitavelmente, uma prova inequívoca de que os fundamentos e estudos metodológicos que serviram de base para a aprovação da Resolução n.º 1/INCM/2024, de 19 de Fevereiro são, de facto, tenebrosos.

 

Assim, do acima exposto, dúvidas não restam de que o INCM está a agir contrariamente às normas e princípios da actuação da Administração Pública previstos na Lei n.º 14/2011, de 10 de Agosto (Lei do Procedimento Administrativo), mormente:

 

  1. O princípio da boa-fé que obriga o INCM, entanto que órgão ou instituição da Administração Pública, a actuar e relacionar-se com os administrados de acordo com as regras da boa-fé no desempenho da actividade administrativa em todas as suas formas e fases. Ao enganar o povo relativamente aos termos da Resolução n.º 1/INCM/2024, de 19 de Fevereiro e da sua suspensão, o INCM age tendencialmente de má-fé. Na verdade, os cidadãos são consumidores de um serviço público precário e baseado na má-fé pelo INCM
  2. Princípio da Transparência, na medida em que o INCM não colocou no domínio público a data da entrada em vigor da suspensão e os efeitos práticos da mesma relativamente à contínua operacionalização das taxas das tarifas de telecomunicações, fixadas em alta.
  3. Princípio da colaboração da Administração Pública com os administrados – de acordo com este princípio da actuação da Administração Pública, o INCM deve prestar informações, bem como esclarecimentos que lhe foram solicitadas sobre a Resolução n.º 1/INCM/2024, de 19 de Fevereiro e sobre o acto da suspensão da mesma, o que não está a acontecer por pura arrogância e abuso de poder por parte do INCM.
  4. Princípio da participação dos administrados, segundo o qual o INCM deve promover a participação e defesa dos interesses dos administrados, na formação das decisões que lhes disserem respeito. Todavia, tal não está a ser observado e respeitado, na medida em que os administrados, entanto que consumidores dos serviços de telefonia móvel, estão a ser vítimas de exclusão nos processos de tomada de decisão em causa, para além de que vêem os seus direitos e interesses prejudicados em privilégio das operadoras e alguma elite.

 

Importa lembrar que o artigo 248 da Constituição da República de Moçambique (CRM) estabelece o seguinte relativamente aos princípios fundamentais da Administração Pública:

 

  1. A Administração Pública serve o interesse público e na sua actuação respeita os direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos.
  2. Os órgãos da Administração Pública obedecem à Constituição e à lei e actuam com respeito pelos princípios da igualdade, da imparcialidade, da ética e da justiça.

 

A novas tarifas não foram fixadas no interesse público, nem em coordenação com os operadores, senão no interesse obscuro próprio do INCM, para além de violar direitos fundamentais como a igualdade e não discriminação, o direito à informação, direito à educação, direito ao desenvolvimento, direito à liberdade de expressão e de imprensa.

 

No mesmo sentido, os termos tanto a Resolução n.º 1/INCM/2024, de 19 de Fevereiro, como o acto da sua suspensão violam a imparcialidade, a ética e o princípio da justiça que devem nortear e caracterizar a actuação da Administração Pública.

 

Portanto, no caso em apreço, urge a conformação do INCM com os princípios da actuação da Administração e a responsabilização do Presidente do Conselho de Administração do INCM pelas violações supra, abuso de poder e dos direitos e interesses legalmente protegidos dos consumidores dos serviços de telefonia móvel, especialmente os dados móveis.

 

Por: João Nhampossa

 

Human Rights Lawyer

 

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

“A República de Moçambique é um Estado de Direito, baseado no pluralismo de expressão, na organização política democrática, no respeito e garantia dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos.” É o que estabelece o artigo 3 da Constituição da República de Moçambique (CRM), sob a epígrafe “Estado de Direito Democrático”, como um dos princípios fundamentais que norteia o Estado moçambicano.

 

Por seu turno, o n.º 3 do artigo 2 da CRM estabelece: “O Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade.”

 

O Estado de Direito é um princípio fundamental complexo de protecção dos direitos humanos, da democracia e de realização da justiça por meios justos, com destaque para a igualdade, não discriminação e respeito pelas leis justas em contraposição com a aplicabilidade ou prevalência de condutas arbitrárias e de abuso de autoridade na administração do Estado nas suas vertentes política, social, económica e cultural.

 

Para a protecção do Estado de Direito Democrático joga papel importante a função jurisdicional, ora consagrada no artigo 211 da CRM, nos seguintes termos:

 

  1. Os tribunais têm como objectivo garantir e reforçar a legalidade como factor da estabilidade jurídica, garantir o respeito pelas leis, assegurar os direitos e liberdades dos cidadãos, assim como os interesses jurídicos dos órgãos e entidades com existência legal.
  2. Os tribunais penalizam as violações da legalidade e decidem pleitos de acordo com o estabelecido na lei.

 

No entanto, estranha e curiosamente, o Acórdão n.º 48/CC/2023, de 23 de Novembro, referente ao processo n.º 61/CC/2023 sobre a Validação dos Resultados Eleitorais Autárquicos de 2023, proferido pelo Conselho Constitucional, entanto que Instância Contenciosa Eleitoral Suprema, conforme se outorga, furta-se à sua função jurisdicional na protecção do Estado de Direito Democrático. Primeiro, na medida em que encobre ilegalidades graves praticadas no processo eleitoral, sobretudo pela Comissão Nacional de Eleições. Segundo e mais grave ainda, na medida em que o próprio Conselho Constitucional pratica actos fora das suas competências, ao proceder à recontagem dos votos de forma obscura e ao alterar os resultados eleitorais, em clara violação dos princípios da liberdade eleitoral, justiça eleitoral e da transparência eleitoral. Aliás, o Conselho Constitucional vai mais longe no seu acto de “execução sumária” do Estado de Direito Democrático ao não respeitar o princípio da fundamentação das suas decisões vertidas no Acórdão em questão e abusar do seu poder jurisdicional sob a capa de que os seus Acórdãos são irrecorríveis.

 

Por definição, nos termos do disposto no artigo 240 da CRM, “o Conselho Constitucional é o órgão de soberania, ao qual compete especialmente administrar a justiça, em matéria de natureza jurídico-constitucional.” Ora, no caso vertente, a democracia, o Estado de Direito Democrático, a liberdade e justiça eleitoral são matérias de natureza jurídico constitucional que carecem de protecção jurisdicional efectiva quando ameaçados ou violados. Infelizmente, esses princípios mostram-se violados pelo Acórdão n.º 48/CC/2023, de 23 de Novembro do Conselho Constitucional sobre a Validação dos Resultados Eleitorais Autárquicos de 2023.

 

Nessa perspectiva, a questão que se coloca é a seguinte: Quando um Acórdão do Conselho Constitucional, que é irrecorrível, viola a democracia ou o Estado de Direito Democrático, como garantir e efectivar a protecção jurisdicional da mesma democracia ou do Estado de Direito Democrático? Será esse Acórdão juridicamente válido?

 

De acordo com o n.º 1 do artigo 247 da CRM, “os Acórdãos do Conselho Constitucional são de cumprimento obrigatório para todos os cidadãos, instituições e demais pessoas jurídicas, não são passíveis de recurso e prevalecem sobre outras decisões.”

 

Em bom rigor, ainda que o Acórdão do Conselho Constitucional seja irrecorrível, para que o mesmo seja de cumprimento obrigatório deve ser válido, o que não é possível quando o conteúdo desse Acórdão viola a democracia ou o Estado de Direito Democrático e é proferido com violação das competências legais do seu autor. Doutro modo, é assumir existência de grave fragilidade na protecção jurisdicional da democracia e do Estado de Direito Democrático no ordenamento jurídico moçambicano. E, mais do que isso, é atribuir um cheque em branco ao Conselho Constitucional para, querendo, abusar do poder ou da sua função jurisdicional nas suas decisões com a alegação de que os seus Acórdãos são irrecorríveis, conforme é o caso em apreço, o que é juridicamente incoerente ou um absurdo jurídico à luz do princípio da justiça, último fim do Direito.

 

Nenhuma decisão judicial é válida, intocável, inalterável e prevalecente quando viola sobremaneira os princípios fundamentais consagrados na Constituição da República, conforme é o caso do Estado de Direito Democrático, “sumariamente executado” no Acórdão supra referido do Conselho Constitucional por razões ora desconhecidas, até porque parte significativa do mesmo Acórdão carece de fundamento legal sobre as decisões tomadas.

 

O princípio da irrecorribilidade dos Acórdãos do Conselho Constitucional ou de qualquer outro órgão jurisdicional não se sobrepõe aos alicerces constitucionais da República de Moçambique, entanto que Estado independente, soberano, democrático e de justiça social, sob pena de legalização da hipoteca do Estado moçambicano. A título de exemplo, não há, pois, como o Conselho Constitucional proferir um Acórdão na língua inglesa e o mesmo prevalecer como válido, porque irrecorrível, uma vez estar em causa a violação do princípio fundamental previsto no artigo 10 da CRM que estabelece: “Na República de Moçambique, a língua portuguesa é a língua oficial.”

 

Em jeito de conclusão, vale aqui deixar a seguinte citação adaptada: “Quando tudo isto falhar, então já não há Estado de Direito. Ter-se-ão posto em causa todos os fundamentos do Estado de Direito. Na verdade, num Estado de Direito não é admissível, seja por que motivo for, que o judiciário se recuse a respeitar os princípios fundamentais da República. O judiciário não pode nem se deve colocar acima ou fora do Direito e isto acontece quando se recusa a materializar o Estado de Direito Democrático. Nos Estados de Direito modernos, isto é tido como uma aberração, um atavismo que a História se recusa a repetir. Ao se atingir este estádio patológico de nada servirão os discursos políticos de ocasião nem a existência de pseudo-instituições democráticas e jurisdicionais porque todos os alicerces do Estado, da sociedade civil e política estarão minados e destruídos. Os tempos de “L’ État c’est moi” servem apenas como exemplos de História, não se admitindo a existência de esclarecidos ou déspotas que a tudo comandam e dirigem a seu bel-prazer e situados acima ou fora das balizas do Direito.” Adaptado do livro de Alfredo Chambule, As garantias dos Particulares, Volume I, Imprensa Universitária, 2002, pag. 209.

 

Por: João Nhampossa

 

Human Rights Lawyer

 

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

O n.º 1 do artigo 144 da Lei n.º 14/2018 de 18 de Novembro, que altera e republica a Lei n.º 7/2018, de 3 de Agosto  (Lei Eleitoral) estabelece:

 

“A votação em qualquer mesa da assembleia de voto e a votação em toda a área da autarquia local só são julgadas nulas, desde que se haja verificado ilegalidades que possam influir substancialmente no resultado geral da eleição.”

 

Da análise minuciosa do Acórdão n.º 48/CC/2023, de 23 de Novembro, referente ao processo n.º 61/CC/2023 sobre a Validação dos Resultados Eleitorais Autárquicos de 2023, é fácil perceber uma série de ilegalidades e/ou irregularidades que caracterizam este processo eleitoral, até mesmo praticado pelo próprio Conselho Constitucional, em certa medida. Na verdade, deste órgão de soberania de natureza jurisdicional, que se intitula de Instância Contenciosa Eleitoral Suprema em matéria eleitoral, o povo muito esperava que materializasse o desiderato do Estado de Direito Democrático, pelo respeito e aplicação dos principais princípios que norteiam as eleições em Moçambique, com cunho constitucional, mormente: Liberdade, justeza e transparência – eleições livres, justas e transparentes.

 

Quanto à deliberação da Comissão Nacional de Eleições (CNE) de 26 de Outubro

 

O Acórdão do Conselho Constitucional sobre a validação dos resultados eleitorais em questão, de entre outros aspectos relevantes, teve por base a deliberação da CNE de 26 de Outubro atinente à Centralização Nacional e Apuramento Geral dos Resultados Eleitorais das Sextas Eleições Autárquicas de 11 de Outubro de 2023.

 

No entanto, esta deliberação da CNE é deveras contestada por várias razões, incluindo o facto de ser emanada num contexto tanto de pendência de processos judiciais de contestação dos resultados eleitorais em determinadas assembleias de votos ou autarquias, como de falta de editais originais e em certas situações não assinadas, o que põe em causa a integridade das eleições, particularmente a liberdade, justeza e transparência das mesmas. Não há, pois, dúvidas sobre a gravidade da CNE proceder ao apuramento geral dos resultados sem a totalidade dos editais originais, nos termos da Lei Eleitoral.

 

Era mister que o Conselho Constitucional se pronunciasse, detalhadamente, sobre a consequência jurídica, senão a validade da deliberação da CNE submetida ao Conselho Constitucional com uma série de irregularidades desde a falta de editais originais e desconsideração de processos judiciais pendentes sobre estas eleições. Um autêntico abuso ao poder judicial.

 

Mais do que isso, é que a deliberação da CNE atinente à Centralização Nacional e Apuramento Geral dos Resultados Eleitorais das Sextas Eleições Autárquicas de 11 de Outubro de 2023 foi proclamada num contexto de alegações fundamentadas de aparecimento de boletins de voto (às vezes pré-votados), provenientes de entidades estranhas ao pessoal da administração eleitoral, conforme faz referência o Conselho Constitucional no seu Acórdão de Validação dos Resultados Eleitorais Autárquicos de 2023. Aliás, casos houve em que as actas e os respectivos editais não foram imediatamente publicados no local de funcionamento, através da cópia original, devidamente assinada e carimbada pelos membros das mesas, conforme manda a Lei Eleitoral, aquando do apuramento parcial nas mesas das assembleias de voto.

 

Ora, a deliberação da CNE em questão foi feita num contexto de ilegalidades, de falta de transparência e de desrespeito ao interesse público que é o norte do Estado de Direito Democrático que caracteriza Moçambique. Mesmo o processo de subscrição da deliberação e acta do apuramento geral dos resultados destas eleições autárquicas foi problemático e obscuro, deixando a CNE em total descrédito aos olhos dos cidadãos.

 

Em bom rigor, a CNE furtou-se ao apuramento geral das irregularidades e ilegalidades eleitorais e à avaliação da gravidade das mesmas com vista a proferir uma deliberação sobre a Centralização Nacional e Apuramento Geral dos Resultados Eleitorais das Sextas Eleições Autárquicas de 11 de Outubro de 2023 que espelha a justiça eleitoral, a transparência eleitoral e a liberdade eleitoral.

 

Quanto à relevância das constatações dos Observadores Eleitorais

 

O Acórdão em referência reconhece que “os observadores eleitorais são um mecanismo que ajuda a aumentar a confiança da comunidade nacional e internacional nos processos eleitorais, promovendo a transparência, a participação cidadã e a condução democrática das eleições...” No entanto, não se refere em que medida os relatórios dos 133 observadores, dos quais 76 estrangeiros e 57 nacionais, informaram e influenciaram o Conselho Constitucional a validar os resultados das eleições autárquicas de 11 de Outubro de 2023 nos termos em que o fez.

 

Aliás, vale aqui lembrar que alguns desses observadores denunciaram situações de irregularidades e ilegalidades eleitorais graves no processo da votação e de apuramento da votação, para além de terem procedido à contagem paralela dos votos que mostra tendência diversa da Comissão Nacional de Eleições (CNE) e do próprio Conselho Constitucional. Assim, era desejável e obrigatório que o Conselho Constitucional se pronunciasse sobre essas irregularidades e contagem paralela se de facto os Observadores Eleitorais ajudam na promoção da transparência, participação cidadã e condução democrática das eleições conforme refere, expressa e inequivocamente, no seu Acórdão supra indicado.

 

Atendendo aos princípios da transparência, liberdade e justeza que norteiam todo o processo eleitoral, o Conselho Constitucional  tinha a obrigação legal de se pronunciar sobre a veracidade e/ou sustentabilidade das alegações de irregularidades e ilegalidades trazidas pelos Observadores Eleitorais, tomando posição sobre em que medida as mesmas preenchem o requisito de ilegalidades que possam influir substancialmente no resultado geral da eleição, conforme previsto no n.º 1 do artigo 144 da Lei Eleitoral.

 

Quanto à recontagem de votos pelo Conselho Constitucional

 

Da análise do Acórdão de Validação dos Resultados Eleitorais Autárquicos de 2023 proferido pelo Conselho Constitucional, nota-se que este órgão de soberania procedeu à recontagem dos votos em determinadas autarquias, na medida em que concluiu, alegadamente, com base em elementos probatórios suficientes, alterar os resultados do apuramento geral dos municípios da Matola-Rio, de Quelimane, de Chiúre, de Alto-Molócuè, de Xai-Xai, da Matola, de Marracuene, de Vilankulo e da Cidade de Maputo. Curiosamente, não são do domínio público tais elementos probatórios suficientes.

 

No entanto, por uma questão de materialização da transparência e justiça eleitoral, é estranho e inaceitável que o Conselho Constitucional não faça referência à base legal da competência para alteração dos resultados do apuramento geral, mesmo sabendo que as suas competências devem resultar expressa e inequivocamente da lei, sem qualquer espaço para presunção de competências.

 

A alteração dos resultados na medida feita pelo Conselho Constitucional,  nos municípios supra referidos, não deixa margem de dúvidas de existência de irregularidades e ilegalidades graves no processo do apuramento dos resultados que influíram substancialmente  no resultado geral da eleição e que devia dar lugar à nulidade das eleições e a consequente repetição, em respeito ao artigo 144 da Lei Eleitoral, uma vez haver elementos objectivos para o efeito. A alteração de mandatos eleitorais nos termos, ilegalmente, feitos pelo Conselho Constitucional é reveladora de cometimento de ilegalidades graves que alteram substancialmente o resultado geral da eleição.

 

Mais grave ainda é o facto de o Conselho Constitucional vir declarar o Partido RENAMO como vencedor de determinadas autarquias e não justificar a razão pela qual não declarou a nulidade das eleições nesses municípios ao abrigo do artigo 144 da Lei Eleitoral, uma vez que as ilegalidades constatadas influem substancialmente no resultado geral da eleição, chegando ao ponto de se declarar um novo vencedor!

 

Afinal, os requisitos previstos no artigo 144 da Lei Eleitoral para a nulidade e repetição das eleições devem ser analisados com base em critérios objectivos ou subjectivos?  O Conselho Constitucional dá a entender que se trata de critérios subjectivos ao optar pela via subjectiva de forma atabalhoada e ilegal?

 

Concluindo

 

O Acórdão n.º 48/CC/2023, de 23 de Novembro referente ao processo n.º 61/CC/2023 sobre a Validação dos Resultados Eleitorais Autárquicos de 2023 do Conselho Constitucional, mais do que violar os princípios da liberdade, justeza e transparência eleitoral de forma gravosa, não materializou do desiderato constitucional do Estado de Direito Democrático e não assegurou que os resultados espelhem a vontade do eleitorado.Ademais, o Acórdão em causa violou o disposto no artigo 144 da Lei Eleitoral que determina:

  1. A votação em qualquer mesa da assembleia de voto e a votação em toda a área da autarquia local só são julgadas nulas, desde que se haja verificado ilegalidades que possam influir substancialmente no resultado geral da eleição.
  2. Declarada nula a eleição de uma ou mais mesas da assembleia de voto, os actos eleitorais correspondentes são repetidos até ao segundo Domingo posterior à decisão, em data a fixar pelo Conselho de Ministros, sob proposta da Comissão Nacional de Eleições.

 

Há, pois, elementos bastantes que justificam a invalidade do Acórdão do Conselho Constitucional em ataque por estar inquinado de vício de nulidade ou de inexistência jurídica, com as devidas consequências. Trata-se na verdade de um Acórdão que envergonha as escolas de Direito, descredibiliza o judiciário e o sistema de justiça e dá sérios golpes ao princípio do Estado de Direito Democrático ao premiar abusos ao processo eleitoral e à democracia.

 

Infelizmente, trata-se de um assunto sensível e que por estar ligado a questões de Poder num contexto político violento que é Moçambique dá lugar à violação de direitos humanos, incluindo intimidações e morte por assassinato. Mas o debate civilizado, sereno e abrangente sobre o Estado de Direito Democrático e justiça eleitoral não deve parar de modo que os objectivos fundamentais do Estado constante do artigo 11 da Constituição da República sejam materializado, designadamente:  

 

a) a defesa da independência e da soberania;

 

b) a consolidação da unidade nacional;

 

c) a edificação de uma sociedade de justiça social e a criação do bem-estar material, espiritual e de qualidade de vida dos cidadãos;

 

d) a promoção do desenvolvimento equilibrado, económico, social e regional do país;

 

e) a defesa e a promoção dos direitos humanos e da igualdade dos cidadãos perante a lei;

 

f) o reforço da democracia, da liberdade, da estabilidade social e da harmonia social e individual;

 

g) a promoção de uma sociedade de pluralismo, tolerância e cultura de paz;

 

h) o desenvolvimento da economia e o progresso da ciência e da técnica;

 

i) a afirmação da identidade moçambicana, das suas tradições e demais valores sócio- culturais;

 

j) o estabelecimento e desenvolvimento de relações de amizade e cooperação com outros povos e Estados.

 

Por: João Nhampossa

 

Human Rights Lawyer

 

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

Nos recentes acórdãos do Conselho Constitucional (CC) relativamente ao contencioso eleitoral atinente às sextas eleições autárquicas de 11 de Outubro de 2023, este órgão de soberania diz, de forma expressa e equívoca, ter competência exclusiva para invalidar os resultados das eleições em Moçambique, entanto que Instância Contenciosa Eleitoral Suprema.

 

Em bom rigor, trata-se de alegada competência exclusiva do CC em razão da matéria e da hierarquia, excluindo-se assim, nessa competência, os tribunais judiciais eleitorais, conforme se depreende, a título de exemplo, do Acórdão n.º 15/CC/2023 de 23 de Outubro referente ao Processo n.º 26/CC/2023 – Recurso Eleitoral, em que é Recorrente a Comissão Distrital de Eleições de Chókwè e Recorrido – o Tribunal Judicial Distrital de Chókwè.

 

O CC alicerça a sua posição nos termos do disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 243 da Constituição da República de Moçambique (CRM), a qual determina que cabe ao Conselho Constitucional: “apreciar, em última instância, os recursos e reclamações eleitorais, validar e proclamar os resultados eleitorais nos termos da lei.” (O sublinhado é nosso).

 

Da supracitada norma constitucional não resulta claro e inequívoco que o CC tenha competência exclusiva para validar ou invalidar os resultados eleitorais em Moçambique, senão em última instância. O que significa que há possibilidade legal de apreciação de casos de ilegalidades que relevam para a nulidade ou invalidação dos resultados eleitorais pelos tribunais judiciais, em primeira instância. Aliás, parece que essa alegada competência exclusiva do CC tampouco resulta de qualquer norma em legislação eleitoral ordinária em vigor.

 

O CC teria competência exclusiva se, por exemplo, a norma constitucional supra mencionada estipulasse que cabe ao CC apreciar como instância única ou primeira e última instância a validação/invalidação dos resultados eleitorais nos termos da lei.

 

As competências do CC não se presumem, resultam, expressa e inequivocamente, da lei. Neste contexto, vale a pena notar que, da norma constitucional supra mencionada, não é possível perceber, senão por presunção forçada, essa competência exclusiva de validar ou invalidar as eleições que o CC alega ter nos seus acórdãos relativamente aos recursos eleitorais das decisões dos tribunais judiciais de distrito, como é o caso do acórdão acima indicado do Tribunal Judicial Distrital de Chókwè.

 

No mesmo sentido de não se atribuir qualquer competência exclusiva ao CC para validar ou invalidar os resultados de uma eleição em Moçambique nos termos na alínea d) do n.º 2 do artigo 243 da CRM; a norma contida no n.º 1 do artigo 144 da Lei n.º 14/2018 de 18 de Novembro, que altera e republica a Lei n.º 7/2018, de 3 de Agosto  (Lei Eleitoral), não confere competência exclusiva em razão da matéria e da hierarquia ao CC sobre a validação ou invalidação dos processos eleitorais no ordenamento jurídico moçambicana.

 

Ora, o n.º 1 do artigo 144 da Lei Eleitoral estabelece o seguinte:

 

“A votação em qualquer mesa da assembleia de voto e a votação em toda a área da autarquia local só são julgadas nulas, desde que se haja verificado ilegalidades que possam influir substancialmente no resultado geral da eleição.” Como é fácil compreender, também desta norma não resulta que o CC é órgão que tem a competência exclusiva para a declaração da invalidade das eleições por nulidade.

 

Pelo contrário, a competência para julgar nulo o processo de votação, em sede do contencioso eleitoral, é dos tribunais judiciais de distrito em primeira instância e do CC em última instância nos termos da lei. Igualmente, não resulta do n.º 1 do artigo 144 da Lei Eleitoral que somente o CC tem a competência de verificar que as ilegalidades praticadas possam influir substancialmente no resultado geral da eleição.

 

Nenhuma norma da legislação eleitoral em vigor veda a possibilidade de recursos aos tribunais de primeira instância relativamente às irregularidades eleitorais assacadas durante a eleição. Se assim é, os tribunais judiciais exercem completamente a função jurisdicional sobre os casos que lhes são apresentados, penalizando as violações da legalidade, garantindo o respeito pelas leis, assegurando os direitos e liberdades dos cidadãos, assim como os interesses jurídicos dos diferentes órgãos e entidades com existência legal, conforme dispõem os n.º 1 e 2 do artigo 211 da CRM.

 

A função jurisdicional dos tribunais eleitorais de primeira instância sobre as irregularidades, ilegalidades ou fraudes eleitorais não se limita a uma função de correio no sentido de apenas remeter o caso à apreciação do CC. Mas com a obrigação do processo ser interposto, primeiramente, em sede dos tribunais judiciais, como primeira instância.

 

Essa pretensão mostra-se juridicamente incoerente de tal maneira que se estivesse consagrada a referida competência exclusiva não haveria necessidade de se recorrer aos tribunais de primeira instância para se chegar ao CC e nem é de se chamar à colação a questão de impugnação prévia, considerando, por hipótese, verdadeira a alegada competência exclusiva do CC. Os recursos seriam directamente interpostos no CC sem passar por qualquer órgão eleitoral a nível gracioso ou judicial, o que não é o caso.

 

Mais do que isso, é que as decisões dos tribunais judiciais em matéria do contencioso eleitoral jamais transitariam em julgado mesmo que não fossem objecto de recurso para o CC. O que representa uma contradição ao princípio do caso julgado na teoria geral do Direito Processual ou do Direito do Contencioso, quando verificados os requisitos para o efeito, como é o caso de caducidade do direito de recurso da decisão judicial.

 

Do acima exposto, a primeira conclusão é que não se percebe onde o CC foi buscar fundamento para a sua alegada competência exclusiva, em detrimento dos tribunais judiciais de primeira instância, em matéria de invalidação dos resultados dos processos eleitorais se tal competência não resulta da CRM e nem da Lei Eleitoral. O CC procura, erroneamente, dar a entender que essa competência exclusiva resulta do disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 243 da CRM, o que não é verdade, até porque a única forma de chegar a essa conclusão é por uma forçada presunção, mas as competências do CC não se presumem.

 

A segunda conclusão é que o Acórdão n.º 15/CC/2023 de 23 de Outubro referente ao Processo n.º 26/CC/2023 – Recurso Eleitoral e outros de conteúdo similar, no que concerne à referida competência exclusiva do CC, violam o princípio constitucional da função jurisdicional dos tribunais prevista no artigo 211 da CRM.

 

A terceira conclusão é que os acórdãos do CC em referência sobre a invalidade ou nulidades dos resultados das eleições banalizam a função dos tribunais judiciais eleitorais e não esclarecem em que situação e como se pode recorrer ao CC para apreciar e declarar a invalidade das eleições por prática de ilegalidades ou fraudes eleitorais se de qualquer modo o CC vai se pronunciar em processo próprio independentemente de qualquer recurso para o CC.

 

Por João Nhampossa

 

Human Rights Lawyer

 

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

Os resultados preliminares das sextas eleições autárquicas de 2023 têm sido objecto de acesos debates públicos, de contestação de vária natureza, incluído a judicial, fundamentalmente, por via do contencioso eleitoral. Curiosamente, a legislação eleitoral é pouco conhecida e dominada até pelos magistrados e advogados que tratam desta matéria, para além de apresentar normas obscuras, ambíguas e que dão largo espaço para a prática da fraude eleitoral e de interpretações dúbias, senão atabalhoadas até por parte do órgão de soberania que se intitula de Instância Contenciosa Eleitoral Suprema.

 

As decisões judiciais sobre recursos com fundamento na prática de irregularidades e fraude eleitoral em determinadas autarquias como são os casos da Cidade de Maputo, da Cidade da Matola, da Cidade de Quelimane, Cidade de Nampula, Chókwè, Chiure, Gurué, Vilankulo, têm dividido a opinião pública, que questiona a justeza e integridade destas eleições, bem como a independência do judiciário, sobretudo face ao Partido no poder.

 

Ora, embora tenha havido sinais de alguma revolução judicial relativamente ao contencioso eleitoral, importa reflectir sobre o princípio da tutela jurisdicional efectiva dos direitos na realização da justiça eleitoral, bem como sobre casos de aplicação do exacerbado formalismo processual, mesmo em violação da Constituição da República de Moçambique (CRM).

 

A decisão judicial de improcedência ou não provimento de determinados recursos em primeira instância judicial eleitoral seja com o fundamento da não observância da regra ou requisito da impugnação prévia dos actos eleitorais, seja por falta de apresentação de documentos autênticos ou autenticados, merecem alguma análise atenciosa, considerando a vontade, predisposição e a liberdade do tribunal em proferir decisões justas, conscienciosas e no quadro da CRM. Embora aqui mencionado, a questão da denegação de apreciação do mérito da causa no contencioso eleitoral por falta de apresentação de documentos autenticados será objecto de reflexão específica em artigo autónomo e devidamente exaustivo, por mexer com o princípio da realização de julgamento justo (“Fair Trail”), fragilidades de investigação judicial e por apresentar sinais de um julgamento altamente parcial, em prejuízo da justiça eleitoral.

 

No que toca à exigência da observância do requisito da impugnação prévia vale a pena lembrar que a jurisprudência do Conselho Constitucional é clara e inequívoca ao considerar o mesmo requisito como inconstitucional por violação do direito de acesso à justiça e aos tribunais, bem como por ser contrária ao princípio da tutela jurisdicional efectiva dos direitos. Neste caso, a impugnação prévia para efeitos do contencioso eleitoral põe em causa a própria justiça eleitoral e o acesso aos tribunais eleitorais, contrariando, deste modo, o artigo 70, conjugado com a primeira parte do n.º 1 do artigo 62, os n.ºs 2 e 3 do artigos 56 e os n.ºs 1 e 2 do artigo 211, todos da CRM.

 

Artigo 62

 

1. O Estado garante o acesso dos cidadãos aos tribunais e garante aos arguidos o direito de defesa e o direito à assistência jurídica e patrocínio judiciário.

2. (...)

 

Artigo 69

 

(Direito de impugnação)

 

O cidadão pode impugnar os actos que violam os seus direitos estabelecidos na Constituição e nas leis.

 

Artigo 70

 

(Direito de recorrer aos tribunais)

 

O cidadão tem o direito de recorrer aos tribunais contra os actos que violem os seus direitos e interesses reconhecidos pela Constituição e pela lei.

 

Artigo 211

 

(Função jurisdicional)

 

  1. Os tribunais têm como objectivo garantir e reforçar a legalidade como factor da estabilidade jurídica, garantir o respeito pelas leis, assegurar os direitos e liberdades dos cidadãos, assim como interesses jurídicos dos diferentes órgãos e entidades com existência legal.
  2. Os tribunais penalizam as violações da legalidade e decidem pleitos de acordo com o estabelecido na lei.
  3. Podem ser definidos por lei mecanismos institucionais e processuais de articulação entre os tribunais e demais instâncias de composição de interesses e de resolução de conflitos.

 

Não existe fundamento constitucional que condiciona o recurso aos tribunais, no contexto do contencioso eleitoral, à observação de uma impugnação prévia nos órgãos da administração eleitoral ou qualquer outro órgão da Administração Pública. Aliás, essa norma sobre impugnação prévia representa o esforço desnecessário do legislador ordinário – Assembleia da República, em não garantir o acesso aos tribunais, neste caso a jurisdição eleitoral, nos termos da primeira parte do nº 1 do artigo 62 da Constituição, sob a epígrafe “Acesso aos Tribunais.”

 

Dúvidas não restam de que sobre a questão do requisito da impugnação prévia definida em legislação ordinária eleitoral, o Conselho Constitucional, em jurisprudência consolidada e fixa, entende que esse requisito não constitui fundamento bastante para denegação de acesso aos tribunais e à justiça.

 

Veja-se a título de exemplo, o Acórdão nº 06/CC/2016, de 23 de Novembro, através do qual o Conselho Constitucional declarou a inconstitucionalidade material da norma contida no nº 1 do artigo 33 da Lei nº 7/2014, de 28 de Fevereiro que regula os procedimentos atinentes ao processo administrativo Contencioso (Lei do Contencioso Administrativo), a qual determinava o seguinte: “Só é admissível recurso dos actos definitivos e executórios.”

 

Era uma espécie de impugnação prévia que pressupunha que um acto administrativo apenas fosse passível de impugnação contenciosa - recurso aos tribunais - se tivesse a característica ou natureza de acto administrativo definitivo e executório. Ou seja, no caso em que o acto administrativo já não fosse passível de recurso hierárquico, seja por ter sido praticado pelo último órgão na estrutura administrativa ou por ter sido praticado dentro da competência exclusiva do órgão administrativo. A Lei do Contencioso Administrativo exigia a exaustão dos meios administrativos graciosos, como requisito para o acto administrativo ser definitivo e executório e de modo a ser contenciosamente recorrível em sede dos tribunais.

 

Assim, o Conselho Constitucional declarou a inconstitucionalidade da regra de impugnação prévia expressa na supra mencionada norma da Lei do Contencioso Administrativo por entender que viola não só o direito de acesso aos tribunais e acesso à justiça constitucionalmente consagrados, mas também por limitar direitos, liberdades e garantias fundamentais nos termos não previstos na CRM.

 

No mesmo sentido, sobre a regra da impugnação prévia em processos laborais, veja-se o Acórdão nº 3/CC/2011, de 7 de Outubro referente ao Processo 02/CC/2011 em que o Conselho Constitucional declara a inconstitucionalidade concreta do artigo 184 da Lei nº 23/2007, de 1 de Agosto (Lei do Trabalho), por contrariar o artigo 70 da CRM sobre o acesso dos cidadãos aos tribunais proferida.

 

Mais ainda, veja-se o Acórdão n.º 8/CC/2015, de 24 de Setembro referente ao Processo n.º 05/CC/2014, através do qual o Conselho Constitucional declara a inconstitucionalidade material das normas contidas no artigo 7 (Princípio de exaustão dos meios graciosos) da Lei n.º 2/2004, de 21 de Janeiro e no artigo 52 ( Exaustão) da Lei n.º 2/2006, de 22 de Março, por contrariarem a norma do artigo 70, conjugada com a norma inscrita na primeira parte do n.º 1 do artigo 62, e ainda as normas contidas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 56, nos n.ºs 1 e 2 do artigo 212, e n.º 3 do artigo 253, todos da Constituição da República de Moçambique.

 

Da jurisprudência supra mencionada do Conselho Constitucional, é fácil notar que o requisito da impugnação prévia como condição para se colocar mão ao contencioso eleitoral não é praticável no Direito Moçambicano. Aliás, resulta do disposto no artigo 213 da CRM que: “Nos feitos submetidos a julgamento, os tribunais não podem aplicar leis ou princípios que ofendam a Constituição.” Com efeito, caso essas normas ou princípios legais que ofendam à CRM sejam chamados à colação em determinado processo judicial eleitoral, o tribunal tem a prerrogativa de recusar a aplicação das mesmas, em respeito ao referido artigo 213 da CRM e remeter os autos ao Conselho Constitucional por força do estatuído na alínea a) d o n. º 1 d o a r t i g o 2 4 6 da CRM.

 

Importa lembrar que o instrumento jurídico primordial dos tribunais nos julgamentos dos casos é a CRM, de tal sorte que o n.º 4 do artigo 2 da mesma CRM determina que: “As normas constitucionais prevalecem sobre todas as restantes normas do ordenamento jurídico.” o que significa que nenhuma norma ordinária se sobrepõe à CRM e, como consequência, quaisquer limitações aos direitos e liberdades fundamentais, como é o caso do direito de recurso aos tribunais, do direito de impugnação e direito de acesso à justiça, devem estar em conformidade com o disposto no artigo 56 da Constituição.

 

Nesse prisma, é, pois, estranho, preocupante e assustador quando o tribunal judicial eleitoral oficiosamente, ou por livre iniciativa, aplica a regra da impugnação prévia que é contrária à CRM para se furtar ao julgamento do mérito da causa e violar o princípio da tutela jurisdicional efectiva dos direitos constitucionalmente consagrada. A função jurisdicional prevista no artigo 211 obriga o tribunal a assegurar os direitos e liberdades dos cidadãos, assim como os interesses jurídicos dos diferentes órgãos e entidades com existência legal.

 

No caso do contencioso eleitoral em curso, a prática da regra da impugnação prévia revela não só a falta de activismo judicial, mas, sobretudo, a intenção maléfica do juiz ou juíza em denegar o acesso à justiça eleitoral, bem como revela manifesto desprezo pela efectivação do princípio da função jurisdicional consagrada no artigo 211 da CRM.

 

O Conselho Constitucional ao ter firmado jurisprudência contra a regra da impugnação prévia como condição essencial para o acesso aos tribunais e à justiça, conforme supra demonstrado, não tem outra solução no caso vertente do contencioso eleitoral senão ser coerente à referida jurisprudência que é aqui de aplicação analógica.

 

Por: João Nhampossa

 

Human Rights Lawyer

 

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

 

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  1. Independência e credibilidade do Tribunal Administrativo

 

A jurisdição administrativa tem dado sinais de ser mais célere e eficaz na protecção do poder executivo e completamente morosa e ineficaz relativamente aos processos que visam a protecção jurisdicional dos grupos vulneráveis, com destaque para os pobres, vítimas de injustiça social, de abusos de autoridade e de violação dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.

 

No ano transacto, o Centro para Democracia e Direitos Humanos (CDD) intentou, no Tribunal Administrativo, um processo de suspensão de eficácia do polémico despacho conjunto dos Ministros das Obras Públicas, Habitação e Recursos Hídricos e da Economia e Finanças, que fixou as taxas de portagens e início da sua cobrança nas praças da Costa do Sol, Zintava, Cumbeza e Matola Gare, ao longo da Estrada Circular de Maputo.

 

Estranha e curiosamente, o mesmo Tribunal Administrativo, de forma inédita na história desta jurisdição, proferiu, em menos de 24 horas, uma decisão que afastou a suspensão provisória do despacho que fixou as taxas de portagens e a data de início de cobrança das mesmas, alegadamente, em protecção do interesse público que, no seu entender, seria prejudicado caso não se iniciasse a cobrança das taxas de portagens na data fixada para o efeito pelo Governo, através dos Ministérios supra mencionados.

 

Nesse mesmo caso, o CDD defendia que o interesse público a proteger era a justiça social, a liberdade de circulação e de escolha, bem como a legalidade violada no processo de instalação das portagens e das respectivas taxas. No entanto, porque o CDD já havia conseguido a suspensão provisória e automática daquele polémico despacho, o Tribunal Administrativo, em tempo ultra recorde e sem discutir e analisar a essência e o alcance do interesse público em causa que se pretendia salvaguardar, escolheu o interesse público do Governo que se traduzia em iniciar de imediato a cobrança das taxas de portagens, o que veio a acontecer em detrimento do interesse público defendido pelo povo, através do CDD.

 

Tratou-se de um caso controverso, muito debatido na praça pública, em que ficou notória a interferência do poder político sobre a jurisdição administrativa, cuja independência ficou ofuscada perante as famosas “ordens superiores”, uma espécie de poder divino do executivo que ninguém ousa confrontar.

 

Passam hoje nove (9) meses desde que, em Dezembro de 2022, a Associação Médica de Moçambique (AMM) submeteu, no Tribunal Administrativo, um processo de Intimação contra o Ministério da Saúde para se abster de conduta intimidatória e de ameaças de vária natureza contra os médicos, por estarem a exercer o direito fundamental à greve dentro do quadro da Constituição da República de Moçambique (CRM). Este é um processo de carácter urgentíssimo, com fundamento legal para o efeito. A protecção do interesse público aqui é notoriamente a saúde e a vida dos cidadãos que correm riscos enquanto o Governo não acautelar as condições salariais e de trabalho dos médicos, com destaque para as condições de tratamento dos doentes, conforme revelado no caderno reivindicativo da classe médica em greve. Não há dúvidas da urgência da decisão deste processo e que seja justa e conscienciosa.

 

Para a surpresa de todos, o processo não tem qualquer desfecho ainda e não se percebe a razão da tamanha morosidade quando o Tribunal Administrativo já provou para a sociedade ter capacidade para decidir os processos urgentes em tempo recorde, senão à velocidade da luz. Ora, o único beneficiário na morosidade deste processo é o executivo contra quem o processo foi proposto através do Ministério da Saúde. Enquanto não houver decisão, pairam dúvidas e incertezas sobre a legalidade das ameaças e intimidações de que os médicos estão a ser vítimas por exercício de um direito fundamental.

 

No entender da AMM, os contornos da morosidade no desfecho deste processo revelam falta de independência do Tribunal Administrativo e fraca protecção jurisdicional dos direitos e interesses dos administrados, em particular os grupos vulneráreis e os pobres, que é o povo. Qualquer que seja a decisão, desde que devidamente fundamentada nos termos da lei aplicável será percebida, o que não se percebe é a demora dessa decisão, atendendo à complexidade do assunto e à natureza urgente do processo.

 

Importa aqui referir que significativos processos em matéria de protecção dos direitos humanos no Tribunal Administrativo são caracterizados pela excessiva tendência proteccionista do Estado, em particular o Poder Executivo. A Ordem dos Advogados de Moçambique já publicou vários processos que revelam essa tendência proteccionista dos fortes em detrimento dos fracos, o povo, nesta jurisdição. Urge, pois, repensar a reforma do Tribunal Administrativo, cuja credibilidade está em crise.

 

  2. Garantia dos Serviços Mínimos

 

A greve dos médicos demonstrou mais uma vez a fragilidade senão vazia relativamente aos critérios para a garantia dos serviços mínimos no sector da saúde, bem como a sua definição. Afinal, o que deve ser considerado como serviços mínimos e que os define? No mesmo sentido, ficou claro que os serviços míninos não são garantidos somente com a presença dos médicos nos seus postos de trabalho, mas sobretudo com a existência de material de tratamento suficiente para responder à demanda das doenças.

 

A futura lei específica sobre o exercício do direito à greve na função pública deve definir os serviços mínimos e clarificar os termos da sua garantia, tendo em conta as características e exigências que os departamentos hospitalares e outros serviços conexos ou similares impõem.

 

A Assembleia da República deve legislar urgentemente com vista a sanar o vazio legal relativamente à lei específica sobre o exercício do direito à greve na função pública. E, para efeitos da elaboração da futura lei específica sobre o exercício do direito à greve na função pública, é importante que o legítimo exercício dos direitos, deveres e liberdades fundamentais nos termos previstos na Constituição e que impliquem ausência ao serviço por parte dos funcionários e agentes do Estado, seja, expressamente, considerado causa justificativa das faltas, uma vez que não é possível exercer o direito à greve nestes termos e, simultaneamente, se fazer presente ao posto de trabalho.

 

A futura lei específica sobre o exercício do direito à greve na função pública deve definir claramente a forma e os prazos de realização da greve, com vista a evitar greves de período ilimitado. E, embora admita que a mesma se possa realizar continuamente, deve adoptar mecanismos para a sua realização de forma interpolada, nos casos em que os fundamentos legais da greve persistam.

 

  • Aplicação de descontos nos vencimentos/salários

 

A decisão sobre a aplicação dos descontos no vencimento deve ser dada a conhecer ao funcionário ou agente do Estado visado para que o mesmo saiba das razões e implicações dessa decisão e para que possa exercer o seu direito de contraditório, querendo. Trata, pois, do direito ao contraditório a que os funcionários têm direito nos termos da lei aplicável ao caso, mormente: O Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado e respectivo Regulamento.  

 

Aliás, os descontos salariais só devem ter lugar nos casos de faltas injustificadas e os mesmos devem obedecer a uma tramitação legal própria para a sua efectivação, sob pena de carecerem de fundamento e violarem o princípio da legalidade a que deve obedecer a Administração Pública. É proibida a aplicação de descontos arbitrários e como represália por exercício de direitos e liberdades fundamentais nos termos da Constituição da República.

 

É importante notar que a Constituição da República consagra como princípio fundamental no nº 1 do seu artigo 248 o seguinte: “A Administração Pública serve o interesse público e na sua actuação respeita os direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos.” Ora, se assim deve ser, é clarividente que o MISAU, ao penalizar os visados aplicando descontos por terem faltado ao serviço em virtude do exercício deste direito fundamental, está, no fundo, a desrespeitar a garantia constitucional do exercício do direito fundamental à greve.

 

O exercício legítimo e legal do direito fundamental não deve ser objecto de penalização sob pena de limitação do mesmo, fora dos casos previstos no artigo 56 da Constituição, o qual estabelece no seu nº 2 que: o exercício dos direitos e liberdades pode ser limitado em razão da salvaguarda de outros direitos ou interesses protegidos pela Constituição e o nº 3 da mesma disposição determina que: a lei só pode limitar os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição.

 

Faltar ao serviço para o cumprimento de direitos, deveres e liberdades fundamentais dentro do quadro constitucional deve ser, indubitavelmente, considerado causa justificativa bastante da falta.

 

  3Responsabilidade pelos danos causados na saúde e vida dos cidadãos

 

Com a agudização da greve dos médicos pelas ausências ao posto de trabalho e a problemática dos critérios da garantia dos serviços mínimos de saúde, corre informação na imprensa de milhares casos de perda de vida e de deterioração do estado de saúde, sobretudo dos doentes crónicos que não tiveram assistência médica e medicamentosa em tempo útil.

 

Neste contexto, começou uma onda de diabolização da classe médica em greve como que desumanos sem responsabilidade pelo juramento que fizeram à sua profissão. Em bom rigor, os médicos não juraram levar a cabo a sua profissão em regime de exploração e de marginalização. Mais do que isso, é que a responsabilidade pela garantia das condições de trabalho e de tratamento médico nas unidades sanitárias cabe ao Governo do dia e não aos médicos que muitas vezes são colocados em situação de cuidar de doentes sem qualquer material adequado para o efeito e obrigados a assistir de mãos atadas mortes diárias de vários utentes por falta dessas condições. Isto é que é violação dos direitos humanos dos médicos.

 

Do ponto de vista legal e com cunho constitucional e dos instrumentos internacionais de direitos humanos relevantes aplicáveis ao caso de que Moçambique é parte, cabe em primeira ao Estado a responsabilidade pela garantia do direito à saúde e dos direitos humanos no geral. Se o Estado não cria condições para o efeito, é a ele que cabe a responsabilização e não aos médicos por exercício do direito fundamental em conformidade com a Constituição.

 

Portanto, atendendo aos contornos da greve em questão, os seus fundamentos e o tempo que dura a reivindicação dos médicos, a resposta dada pelo Governo durante todo esse tempo, claro está que não há espaço para os responsabilizar sobre os danos que tiveram lugar nesse período, senão responsabilizar o próprio Estado através do seu executivo.

 

Por: João Nhampossa

Human Rights Lawyer

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

JoaoNhampossanovaa220322

A imprensa e as redes sociais têm demonstrado ao público em geral que, em certa medida, a gestão governamental sobre a greve dos médicos está a ser feita com base em ameaças de instauração de infundados processos disciplinares contra os médicos grevistas, o que inclui ordens ilegais, as chamadas ordens superiores, para marcação de faltas aos médicos que não comparecem ao posto de trabalho por estarem a exercer o direito fundamental à greve. É neste contexto que em várias unidades sanitárias, nas quais a greve se manifesta, já está em curso o processo de marcação de faltas, com ordem para os departamentos dos recursos humanos e da administração e finanças procederem aos descontos nos salários ou vencimento dos médicos grevistas, independentemente de instauração de processo disciplinar, atendendo à efectividade dos mesmos, no sentido de que as faltas pelo exercício do direito fundamental à greve em questão são injustificadas.

 

Aliás, o Governo, através do seu porta-voz das sessões do Conselho de Ministros, veio a público fazer eco da alegada ilegalidade da greve dos médicos e das ameaças de represálias de diversa natureza sobre os mesmos, incluindo intimidações de desvinculação do aparelho do Estado dos grevistas, por via da contratação de 60 novos médicos. No mesmo sentido, a Governadora de Manica veio de viva voz ameaçar os médicos que trabalham a nível daquela Província que dirige, ordenando, sem qualquer legitimidade e base legal, a marcação de faltas e instauração de processos disciplinares contra os médicos que estão a exercer o direito fundamental à greve.

 

Acresce a esses actos abusivos de poder o facto de o Governo estar a denegar renovar os contratos dos médicos grevistas, bem com em não proceder à nomeação definitiva dos mesmos, conforme revela a Associação Médica de Moçambique (AMM). A mesma AMM tem ainda denunciado outros abusos que estão a ser praticados silenciosamente com base em famigeradas ordens superiores, do tipo ameaças de transferências de local de trabalho e despromoções. Mais do que isso, é o facto de o Governo pretender levar a cabo a revisão do Regulamento do Estatuto do Médico na Administração pública com vista a retirar os direitos adquiridos em claro prejuízo do sector da saúde pela completa desmoralização dos médicos pela falta de condições salarias adequadas de trabalho.

 

Inércia do Ministério Público e da Assembleia da República face à Greve dos Médicos

 

Nos termos da Constituição da República de Moçambique (CRM) e da Lei Orgánica do Ministério Público – aprovada através da Lei n.º 1/2022, de 12 de Janeiro, o Ministério Público zela pela observância da legalidade e fiscalização do cumprimento das leis e demais normas legais. É ao Ministério Público que cabe o controlo da legalidade no ordenamento jurídico moçambicano.

 

A Greve dos Médicos tem suscitado preocupações e debades sobre a sua legalidade e sobre a garantia dos serviços míninos. E, enquanto o MISAU, ou seja, o Governo de Moçambique, assume a posição de que a presente greve é ilegal, outras instituições, como é o caso da Ordem dos Médicos de Moçambique, e diversas personalidades, sobretudo a nível das organizações da sociedade civil, defendem a posição de que a greve dos médicos é legal e que se trata de um exercício legítimo de um direito fundamental que está a ser feito dentro do quadro constitucional vigente no País.

 

Ora, esta greve dos médicos, pelas suas caracteríscas e circunstâncias em que está a ser levada a cabo, revela, indubitavelmente, tratar-se de matéria de interesse público, até porque as causas e finalidades da mesma, conforme o caderno reivindicativo que a sustenta, se enquadram no âmbito dos objectivos e políticas de desenvolvimento do Estado no sector da saúde. A greve tem mexido bastante com a questão da garantia dos serviços mínimos no sector da saúde, para além de que, directa e indirectamente, afecta negativamente os cidadãos utentes dos serviços de saúde, sobretudo os pobres, cuja satisfação e garantia cabe ao Estado em primeira linha.

 

Estranhamente, perante toda a dicussão sobre a legalidade desta greve e as consequências negativas que a mesma está a ter no desenvolvimento do sector da saúde e na vida dos cidadãos pelo deficiente acesso à saúde, incluindo os actos de ameaças, intimidações e abuso de poder praticados por vários órgãos e entidades governamentais contra a classe médica em greve, o Ministério Público não se pronuncia sobre a (i)legalidade da greve e conduta abusiva do Governo contra os médicos grevistas, tendo em conta a sua qualidade de garante da legalidade e representante dos interesses do Estado.

 

Por sua vez, a Assembleia da República, representante dos interesses do povo, conforme determina a CRM, perante o facto da Greve dos Médicos ter colocado a nú a falta de entendimento sobre o significado e alcance da garantia dos serviços mínimos, bem como o grave prejuizo do vazio legal relativamente à legislação específica sobre o exercício do direito à greve na função pública, ainda não se pronunciou sobre a alegada (i)legalidade desta greve. A Assembleia da República, sendo autora material e formal da CRM, bem como do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado e da Lei sobre a Sindicalização na Função Pública devia pronunciar-se sobre os termos do exercício do direito fundamental à greve plasmado no artigo 87 da lei mãe e dissipar equívocos de interpretação.

 

Não se percebe a razão pela qual o Ministério Público e a Assembleia da República, numa situação em que são, por lei, obrigados a intervir, se furtam ao seu papel de fiscalizar o cumprimento da lei e garantir a correcta interpretação e implementação da CRM e das demais relativas ao exercício da greve. Estranhamente, também, quase que nada fazem para educar os cidadãos e as entidades e órgãos relevantes sobre o exercício dos direitos e liberdades fundamentais em causa.

 

Morosidade processual no Tribunal Administrativo

 

Em Dezembro de 2022, a AMM interpôs, no Tribunal Administrativo, um processo de excepcional urgência para esta jurisdição administrativa intimar a direcção máxima do Ministério da Saúde a respeitar o exercício do direito fundamental à greve pela classe médica e para se abster de praticar condutas ameaçadoras, arbitrárias ou de abuso de poder ou que se traduzem em qualquer tipo de violação contra os médicos grevistas pelo facto da greve em apreço ser legal, legítima e exercida dentro do quadro da CRM.

 

No entanto, o supra referido processo urgente ainda não foi objecto de decisão por parte do Tribunal Administrativo e já revela excessiva morosidade processual, uma vez que já devia ter sido proferido o correspondente Acórdão justo e consciencioso, dada a natureza urgente do processo, para além de se tratar de direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, com destaque para os médicos e para o povo que estão a ser vítimas de falta de acesso à saúde de qualidade e em tempo útil.

 

A esperada decisão do Tribunal Administrativo sobre este caso pendente, desde que se debruce sobre o mérito da causa, irá ajudar a perceber melhor os termos do exercício do direito fundamental à greve na função pública, bem como sobre a conduta do Governo na gestão da mesma greve e se as ameaças têm qualquer base legal para o efeito.

 

No entender da AMM, a demora no desfecho do referido processo está a dar espaço para o Governo perpetuar as ameaças e outras condutas abusivas contra os médicos grevistas, para além de estar a criar um ambiente de descrédito do sistema de justiça aos olhos dos cidadãos que não entendem a razão de excessiva morosidade processual.  

 

Provedor de Justiça e Comissão Nacional dos Direitos Humanos

 

A função primordial do Provedor de Justiça e da Comissão Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) consiste na garantia dos direitos e liberdades dos cidadãos, na defesa da legalidade e da justiça, bem como na promoção dos direitos humanos. Todavia, estes dois órgãos de justiça extrajudicial não se têm manifestado sobre a problemática do exercício do direito à greve dos médicos, nem sobre a denegação do direito à saúde pelo Estado pela não resolução do problema que levou os médicos a enveredarem pelo exercício do direito fundamental à greve. Ou seja, enquanto o Governo não satisfaz as reivindicações dos médicos, o efeito directo dessa teimosia é a violação do direito à saúde dos cidadãos, sobretudo os pobres. Não faz sentido e é preocupante o silêncio do Provedor de Justiça e da CNDH perante um assunto tão complexo e de interesse público prioritário que se enquadra nas atribuições e actuação desses mesmos órgãos da Justiça.

 

Concluindo

 

Do acima dito, é notório que o sistema de justiça moçambicano está cada vez mais distante ou alheio aos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, aos direitos humanos e à realização da almejada justiça para os pobres, senão proteger o Governo, independentemente das violações que pratica contra os cidadãos. Trata-se, pois, de mais um caso flagrante da dita “justiça mais forte com os fracos e fraca com os fortes”, o que já é apanágio do sistema de justiça moçambicano. Portanto, está na hora das instituições de justiça competentes responsabilizarem as entidades e órgãos da Administração Pública pelas ameaças e aplicação de represálias aos funcionários e agentes do Estado por exercício legítimo do direito à greve e do associativismo no quadro da Constituição.

JoaoNhampossanovaa220322

Os contornos da contínua Greve dos Médicos têm revelado falta de capacidades administrativas em respeitar, com transparência e rigor, a Constituição da República de Moçambique (CRM) e demais leis e normas ordinárias, para a efectivação do direito à greve e direitos fundamentais conexos. No mesmo sentido, chama à reflexão sobre a fragilidade das políticas públicas de incentivos aos profissionais de saúde para a melhoria da prestação de serviços públicos de saúde aos principais beneficiários, que são os cidadãos. 

 

A greve da classe médica em curso só teve e está a ter lugar depois de várias tentativas insatisfeitas de negociação entre os médicos, através da AMM, e o executivo, particularmente o Ministério da Saúde (MISAU), para a melhoria das condições salariais e de trabalho, conforme apresentado no respectivo caderno reivindicativo, tornado público. A insatisfação da classe médica é real, elevada, abrangente e o processo de negociação com as autoridades competentes para a solução do diferendo já dura há bastante tempo, sem produzir resultado satisfatório. Por isso, os médicos em questão não viram outra saída para além de efectivar o direito fundamental à greve nos termos previstos na CRM e de forma contínua, como forma de pressionar o Governo a resolver o problema.

 

Esta greve sempre foi legítima e legal, mas muito combatida com recurso ao abuso de autoridade e a arbitrariedades. Aliás, a greve chegou a ser suspensa na expectativa de que os acordos alcançados com o Governo seriam devidamente respeitados pelas partes, de boa-fé e nos termos da lei. 

 

Importa compreender que o direito fundamental à greve não carece, necessariamente, de lei específica para ser exercido, uma vez que a Constituição da República não condicionou o exercício deste direito à vigência de qualquer diploma legal, embora o mesmo possa melhor facilitar os seus procedimentos. Assim, a não existência de lei específica sobre a greve na função pública não impede o seu exercício, pois, é um direito fundamental exequível por si próprio, conforme se percebe do disposto no artigo 87 conjugado com o artigo 56, ambos da CRM. E, além disso, é preciso compreender que a Constituição da República está em vigor e não faz depender o exercício dos direitos e liberdades que consagra na entrada em vigor de qualquer lei ordinária, conforme se depreende do disposto no seu artigo 313. A jurisprudência do Tribunal Administrativo sobre o direito à greve na função pública exprime o mesmo entendimento.  

 

O direito fundamental à greve pode ser exercido sempre de boa-fé e por quem tenha legitimidade, desde que se respeite os limites constitucionais previstos nos artigos 56 e 87 da CRM. No caso da Greve dos Médicos, ao faltarem ao serviço para o efeito e nas circunstâncias em que o fizeram ou fazem, os profissionais de Saúde não violam nem a Constituição da República, nem qualquer outra norma infraconstitucional que trate da matéria relativa à greve na função pública. 

 

Logo, o exercício do direito fundamental à greve ou de quaisquer outros direitos e liberdades fundamentais em respeito à Constituição e que impliquem a falta ao serviço deve ser considerado causa justificativa dessa falta ao serviço. Além disso, nenhum cidadão deve ser penalizado ou ameaçado por exercer um direito, dever ou liberdade fundamental à luz do artigo 56 da Constituição.

Faltar ao serviço para o cumprimento de direitos, deveres e liberdades fundamentais dentro do quadro constitucional deve ser, indubitavelmente, considerado causa justificativa bastante da falta.

Contudo, enquanto dura a greve dos médicos liderada pela AMM, o Governo moçambicano tem demonstrado uma conduta conflituosa que se traduz em ameaças e intimidações aos médicos em greve, com destaque para a marcação de faltas tanto para a instauração de processos disciplinares, como para injustamente efectuar descontos nos salários dos mesmos, o que significa dar espaço para o enriquecimento sem causa de quem vai ficar com o valor descontado. 

 

Quanto à possibilidade de instauração do procedimento disciplinar

O procedimento disciplinar deve ser feito à luz do disposto nos artigos 108 e 157, respectivamente, do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado (EGFAE), aprovado pela Lei n.º 4/2022, de 11 de Fevereiro e do Regulamento do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado (REGFAE), aprovado pelo Decreto n.º 28/2022, de 17 de Junho. Este procedimento deve ser resultado de elementos ou indícios factuais bastantes de cometimento de infracção disciplinar. 

Não havendo sinais ou indícios bastantes de cometimento de infracção disciplinar na conduta praticada pelo funcionário ou agente do Estado, não há fundamento legal par dar seguimento a um processo desta natureza, sob pena de se criar espaço para insegurança jurídica, acusações infundadas e colocar os funcionários e agentes do Estado numa situação de vulnerabilidade pela abertura de canais para perseguições através de processos disciplinares sem base legal. Não basta, pois, entender que qualquer conduta possa configurar infracção disciplinar, é preciso que haja indícios objectivos e suficientes que possam levar a essa suspeita de cometimento de infracção disciplinar, caso contrário, a lei não permite que a Administração Pública instaure procedimento disciplinar.

Do EGFAE e do REGFAE resulta que a instauração de processo disciplinar deve ser resultado do não cumprimento dos deveres do funcionário ou agente do Estado, ou seja, do cometimento ou existência de infracção disciplinar por partes destes. Pelo que, não existindo infracção, como é o caso da Greve dos Médicos por estarem no pleno exercício de um direito fundamental, não é razoável, nem justo e nem legal que se instaure processo disciplinar para sancionar uma conduta que se traduz no exercício de direito fundamental.

O processo disciplinar não deve ser instaurado de má-fé, nem ser contrário aos princípios de justiça e dos direitos humanos, tão pouco deve ser usado como instrumento de intimidação, de ameaça ou de abuso de poder por parte das autoridades, conforme está a acontecer no caso da greve dos médicos.

As disposições legais supra, do EGFAE e do seu Regulamento, trazem consigo requisitos essenciais a que devem ser obedecidos para a legalidade e validade do procedimento disciplinar. É sobre esses requisitos que a AMM se deve concentrar para se defender e exigir responsabilidades das autoridades que abusarem do poder ou praticarem arbitrariedades com vista à instauração de processos disciplinares ou aplicação de sanções e represálias contra os médicos por exercício de direito fundamental.

É importante notar que a Constituição da República consagra como princípio fundamental no nº 1 do seu artigo 248 o seguinte: “A Administração Pública serve o interesse público e, na sua actuação, respeita os direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos.”

Portanto, a lei estabelece, na Administração Pública, as regras para a efectivação das consequências das faltas injustificadas a que o órgão da Administração Pública em causa deve obedecer. O exercício legítimo e legal do direito fundamental não deve ser objecto de penalização sob pena de limitação do mesmo, fora dos casos previstos no artigo 56 da Constituição, o qual estabelece no seu nº 2 que: o exercício dos direitos e liberdades pode ser limitado em razão da salvaguarda de outros direitos ou interesses protegidos pela Constituição e o nº 3 da mesma disposição determina que: a lei só pode limitar os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição. 

PS:

 

Este artigo constitui também um contributo para o debate público sobre a necessidade de existência duma lei ordinária específica que regula o exercício do direito fundamental à greve na função Pública, no pleno respeito à Constituição e aos Instrumentos Internacionais de protecção dos direitos humanos de que Moçambique é parte, com vista a evitar equívocos de interpretação e má aplicação da lei que possa perpetuar a violação deste direito e outros conexos.  

 

Por: João Nhampossa

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