1. Independência e credibilidade do Tribunal Administrativo
A jurisdição administrativa tem dado sinais de ser mais célere e eficaz na protecção do poder executivo e completamente morosa e ineficaz relativamente aos processos que visam a protecção jurisdicional dos grupos vulneráveis, com destaque para os pobres, vítimas de injustiça social, de abusos de autoridade e de violação dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.
No ano transacto, o Centro para Democracia e Direitos Humanos (CDD) intentou, no Tribunal Administrativo, um processo de suspensão de eficácia do polémico despacho conjunto dos Ministros das Obras Públicas, Habitação e Recursos Hídricos e da Economia e Finanças, que fixou as taxas de portagens e início da sua cobrança nas praças da Costa do Sol, Zintava, Cumbeza e Matola Gare, ao longo da Estrada Circular de Maputo.
Estranha e curiosamente, o mesmo Tribunal Administrativo, de forma inédita na história desta jurisdição, proferiu, em menos de 24 horas, uma decisão que afastou a suspensão provisória do despacho que fixou as taxas de portagens e a data de início de cobrança das mesmas, alegadamente, em protecção do interesse público que, no seu entender, seria prejudicado caso não se iniciasse a cobrança das taxas de portagens na data fixada para o efeito pelo Governo, através dos Ministérios supra mencionados.
Nesse mesmo caso, o CDD defendia que o interesse público a proteger era a justiça social, a liberdade de circulação e de escolha, bem como a legalidade violada no processo de instalação das portagens e das respectivas taxas. No entanto, porque o CDD já havia conseguido a suspensão provisória e automática daquele polémico despacho, o Tribunal Administrativo, em tempo ultra recorde e sem discutir e analisar a essência e o alcance do interesse público em causa que se pretendia salvaguardar, escolheu o interesse público do Governo que se traduzia em iniciar de imediato a cobrança das taxas de portagens, o que veio a acontecer em detrimento do interesse público defendido pelo povo, através do CDD.
Tratou-se de um caso controverso, muito debatido na praça pública, em que ficou notória a interferência do poder político sobre a jurisdição administrativa, cuja independência ficou ofuscada perante as famosas “ordens superiores”, uma espécie de poder divino do executivo que ninguém ousa confrontar.
Passam hoje nove (9) meses desde que, em Dezembro de 2022, a Associação Médica de Moçambique (AMM) submeteu, no Tribunal Administrativo, um processo de Intimação contra o Ministério da Saúde para se abster de conduta intimidatória e de ameaças de vária natureza contra os médicos, por estarem a exercer o direito fundamental à greve dentro do quadro da Constituição da República de Moçambique (CRM). Este é um processo de carácter urgentíssimo, com fundamento legal para o efeito. A protecção do interesse público aqui é notoriamente a saúde e a vida dos cidadãos que correm riscos enquanto o Governo não acautelar as condições salariais e de trabalho dos médicos, com destaque para as condições de tratamento dos doentes, conforme revelado no caderno reivindicativo da classe médica em greve. Não há dúvidas da urgência da decisão deste processo e que seja justa e conscienciosa.
Para a surpresa de todos, o processo não tem qualquer desfecho ainda e não se percebe a razão da tamanha morosidade quando o Tribunal Administrativo já provou para a sociedade ter capacidade para decidir os processos urgentes em tempo recorde, senão à velocidade da luz. Ora, o único beneficiário na morosidade deste processo é o executivo contra quem o processo foi proposto através do Ministério da Saúde. Enquanto não houver decisão, pairam dúvidas e incertezas sobre a legalidade das ameaças e intimidações de que os médicos estão a ser vítimas por exercício de um direito fundamental.
No entender da AMM, os contornos da morosidade no desfecho deste processo revelam falta de independência do Tribunal Administrativo e fraca protecção jurisdicional dos direitos e interesses dos administrados, em particular os grupos vulneráreis e os pobres, que é o povo. Qualquer que seja a decisão, desde que devidamente fundamentada nos termos da lei aplicável será percebida, o que não se percebe é a demora dessa decisão, atendendo à complexidade do assunto e à natureza urgente do processo.
Importa aqui referir que significativos processos em matéria de protecção dos direitos humanos no Tribunal Administrativo são caracterizados pela excessiva tendência proteccionista do Estado, em particular o Poder Executivo. A Ordem dos Advogados de Moçambique já publicou vários processos que revelam essa tendência proteccionista dos fortes em detrimento dos fracos, o povo, nesta jurisdição. Urge, pois, repensar a reforma do Tribunal Administrativo, cuja credibilidade está em crise.
2. Garantia dos Serviços Mínimos
A greve dos médicos demonstrou mais uma vez a fragilidade senão vazia relativamente aos critérios para a garantia dos serviços mínimos no sector da saúde, bem como a sua definição. Afinal, o que deve ser considerado como serviços mínimos e que os define? No mesmo sentido, ficou claro que os serviços míninos não são garantidos somente com a presença dos médicos nos seus postos de trabalho, mas sobretudo com a existência de material de tratamento suficiente para responder à demanda das doenças.
A futura lei específica sobre o exercício do direito à greve na função pública deve definir os serviços mínimos e clarificar os termos da sua garantia, tendo em conta as características e exigências que os departamentos hospitalares e outros serviços conexos ou similares impõem.
A Assembleia da República deve legislar urgentemente com vista a sanar o vazio legal relativamente à lei específica sobre o exercício do direito à greve na função pública. E, para efeitos da elaboração da futura lei específica sobre o exercício do direito à greve na função pública, é importante que o legítimo exercício dos direitos, deveres e liberdades fundamentais nos termos previstos na Constituição e que impliquem ausência ao serviço por parte dos funcionários e agentes do Estado, seja, expressamente, considerado causa justificativa das faltas, uma vez que não é possível exercer o direito à greve nestes termos e, simultaneamente, se fazer presente ao posto de trabalho.
A futura lei específica sobre o exercício do direito à greve na função pública deve definir claramente a forma e os prazos de realização da greve, com vista a evitar greves de período ilimitado. E, embora admita que a mesma se possa realizar continuamente, deve adoptar mecanismos para a sua realização de forma interpolada, nos casos em que os fundamentos legais da greve persistam.
- Aplicação de descontos nos vencimentos/salários
A decisão sobre a aplicação dos descontos no vencimento deve ser dada a conhecer ao funcionário ou agente do Estado visado para que o mesmo saiba das razões e implicações dessa decisão e para que possa exercer o seu direito de contraditório, querendo. Trata, pois, do direito ao contraditório a que os funcionários têm direito nos termos da lei aplicável ao caso, mormente: O Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado e respectivo Regulamento.
Aliás, os descontos salariais só devem ter lugar nos casos de faltas injustificadas e os mesmos devem obedecer a uma tramitação legal própria para a sua efectivação, sob pena de carecerem de fundamento e violarem o princípio da legalidade a que deve obedecer a Administração Pública. É proibida a aplicação de descontos arbitrários e como represália por exercício de direitos e liberdades fundamentais nos termos da Constituição da República.
É importante notar que a Constituição da República consagra como princípio fundamental no nº 1 do seu artigo 248 o seguinte: “A Administração Pública serve o interesse público e na sua actuação respeita os direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos.” Ora, se assim deve ser, é clarividente que o MISAU, ao penalizar os visados aplicando descontos por terem faltado ao serviço em virtude do exercício deste direito fundamental, está, no fundo, a desrespeitar a garantia constitucional do exercício do direito fundamental à greve.
O exercício legítimo e legal do direito fundamental não deve ser objecto de penalização sob pena de limitação do mesmo, fora dos casos previstos no artigo 56 da Constituição, o qual estabelece no seu nº 2 que: o exercício dos direitos e liberdades pode ser limitado em razão da salvaguarda de outros direitos ou interesses protegidos pela Constituição e o nº 3 da mesma disposição determina que: a lei só pode limitar os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição.
Faltar ao serviço para o cumprimento de direitos, deveres e liberdades fundamentais dentro do quadro constitucional deve ser, indubitavelmente, considerado causa justificativa bastante da falta.
3. Responsabilidade pelos danos causados na saúde e vida dos cidadãos
Com a agudização da greve dos médicos pelas ausências ao posto de trabalho e a problemática dos critérios da garantia dos serviços mínimos de saúde, corre informação na imprensa de milhares casos de perda de vida e de deterioração do estado de saúde, sobretudo dos doentes crónicos que não tiveram assistência médica e medicamentosa em tempo útil.
Neste contexto, começou uma onda de diabolização da classe médica em greve como que desumanos sem responsabilidade pelo juramento que fizeram à sua profissão. Em bom rigor, os médicos não juraram levar a cabo a sua profissão em regime de exploração e de marginalização. Mais do que isso, é que a responsabilidade pela garantia das condições de trabalho e de tratamento médico nas unidades sanitárias cabe ao Governo do dia e não aos médicos que muitas vezes são colocados em situação de cuidar de doentes sem qualquer material adequado para o efeito e obrigados a assistir de mãos atadas mortes diárias de vários utentes por falta dessas condições. Isto é que é violação dos direitos humanos dos médicos.
Do ponto de vista legal e com cunho constitucional e dos instrumentos internacionais de direitos humanos relevantes aplicáveis ao caso de que Moçambique é parte, cabe em primeira ao Estado a responsabilidade pela garantia do direito à saúde e dos direitos humanos no geral. Se o Estado não cria condições para o efeito, é a ele que cabe a responsabilização e não aos médicos por exercício do direito fundamental em conformidade com a Constituição.
Portanto, atendendo aos contornos da greve em questão, os seus fundamentos e o tempo que dura a reivindicação dos médicos, a resposta dada pelo Governo durante todo esse tempo, claro está que não há espaço para os responsabilizar sobre os danos que tiveram lugar nesse período, senão responsabilizar o próprio Estado através do seu executivo.
Por: João Nhampossa
Human Rights Lawyer
Advogado e Defensor dos Direitos Humanos