Hoje é mais um daqueles dias em que se assina mais um daqueles habituais acordos de paz efectiva, fim das hostilidades militares, cessar fogo e afins. Iremos todos jubilar de alegria e amanhã passa. Depois vamos fazer uma nova lei eleitoral, vamos pôr uma vírgula na Constituição, vamos sentar num tronco em Satungira, vamos tirar mais uma foto abraçados com aquele sorriso administrativo e, por fim, vamos assinar mais acordo de paz efectiva. E vamos acreditar que a tal paz é mais efectiva que as outras. Vamos dizer também que desta vez é de vez.
Com um pouco de azar, o nosso calendário não terá mais espaço para comemorar nada mais que seja útil. Com esta moda de hoje em dia de se comemorar dia da cerveja, da prostituta, do idiota, do parvo, da rabuda, do zamwamwa, do invejoso, etecetera, já não haverá mais dia para trabalhar a vontade.
Mais do que assinar mais um acordo, talvez fosse importante saber o que deu errado com os anteriores acordos e aprender com eles. Se o problema dos anteriores acordos foi o seu cumprimento, então estamos perante mais um fracasso apriorístico. O problema de cumprimento não afecta apenas os acordos de paz ou de fim de hostilidades militares ou de cessar fogo. Nós temos problemas sérios em cumprir com a nossa palavra. A violação desses acordos é apenas a ponta do "aiciberg". Nós nem respeitamos a nossa própria Constituição da República.
Nós temos problemas sérios em cumprir. Aliás, é por causa disso que hoje estamos endividados até à goela e estamos a nos apontar um ao outro. Foi por não ter-se respeitado a lei que um grupinho de concidadãos foi buscar dinheiro à revelia do órgão competente. E foi também por causa da falta de seriedade com responsabilidades atribuídas que um grupinho de infelizes introduziu esta dívida no orçamento do Estado.
Se os acordos têm fracassado por falta de seriedade no seu cumprimento, então, hoje é só para passar o dia. Será mais um tratado fracassado. O problema, por acaso, nem são os acordos, somos nós. O problema é ético.
- Co'licença!
Neste país quando se fala de "amnistia" é para soldados da RENAMO e "indulto" para prisioneiros. Não me lembro de outro cidadão que tenha sido perdoado a não ser, talvez, aquele gatuno-fosfórico que anda por aqui dando aulas gratuitas de exaltação patriótica.
Com o acordo de cessação das hostilidades, rubricado pelo PR Filipe Nyusi e pelo líder da Renamo Ossufo Momade, surgiu um grupo se colocando como o único empecilho para que Nyusi celebre eternamente o estatuto do derradeiro pacificador de um conflito que mergulhou Moçambique no sangue durante décadas a fio: os dissidentes da Renamo. Há quem acredita que estes dissidentes têm potencial para perigar a paz. Até é possível.
O grupo é composto por generais do “innner circle” da guerrilha de Afonso Dhlakama, que deram seu corpo e alma às “causas” da luta. Queriam o poder de veto no processo decisório interno, mas Ossufo Momade deu-lhes costas. Têm armas e controlam bases do interior. Mas as possibilidades da sua persistência na hostilização violenta contra o poder do Estado (reivindicando um poder dentro da Renamo) parece-me limitada.
O acordo Nyusi-Momade carimbou também uma aliança FRENAMO (Frelimo/Renamo), que agora se junta, em coligação, contra os dissidentes. Ou seja, o grupo que insiste na rebeldia tem agora o Estado e boa parte da Renamo do outro lado da barricada. O acordo Nyusi-Momade foi celebrado por parte da facção guerrilheira da Renamo e pela totalidade da facção política da Renamo, desde os “tachistas” parlamentares a toda uma panóplia de políticos, dhlakamistas ou não, espalhados pelas capitais provinciais.
Por outras palavras, os dissidentes actuais da Renamo não têm suporte político (a não ser que depois das eleições apareçam políticos se juntando aos guerrilheiros nas matas numa reivindicação contra a fraude – coisa que só Afonso Dhlakama sabia fazer). Mas ainda ontem vimos a Ivone Soares marchando em celebração do acordo. Os dissidentes têm, pois, uma capacidade de barganha limitada. A opinião pública é contra mais matança nas estradas e a comunidade internacional também está cansada das nossas desavenças de sangue.
Os anteriores acordos entre o Governo e a Renamo, como o de 2014, falharam por causa da capacidade de Afonso Dhlakama de enxergar a maracutaias da Frelimo e mobilizar, ao mesmo tempo, suas energias políticas e militares. Dhlakama foi-se e não deixou um sucessor com sua dimensão e carisma para dar continuidade ao seu estilo de luta.
Os dissidentes reivindicam um espaço dentro da Renamo, acusando Momade de falta de legitimidade. Mas o acordo FRENAMO mostrou que isso já não interessa. Quem da Renamo não entrou na onda do acordo não passa agora de um bandido atirando contra a segurança do Estado. São os novos “bandidos armados”, sem qualquer tipo de legitimidade. Depois da assinatura em Chitengo, quando se soube de novos ataques nas estradas, Nyusi frisou que esse banditismo vai ser combatido ferreamente. Aliás, tudo vale agora para que a paz aconteça dentro dos anos de vigência do nyussismo.
A dissidência na Renamo vai ser mesmo capitalizada pela Frelimo, para eliminar todos os vestígios bélicos da guerrilha. Simbolicamente, para os novos “bandidos armados”, seria como que uma segunda morte de Dhlakama, com o beneplácito de toda a facção política traidora da Renamo, que ambiciona o conforto de Maputo.
Nos próximos meses, vamos ter algum sangue nas matas, com eleições de permeio. Depois o teste crucial será ver com que armas é que a Renamo fará a reclamação da fraude eleitoral, de que é useira e vezeira. A Renamo da FRENAMO está mesmo preparada para fazer a luta política nos espaços tradicionais, tal como em Angola a Unita aceitou as benesses do poder e se restringiu ao parlamento, ou vai tentar fazer renascer, depois de Outubro, o novo “banditismo armado”? Alô Novembro!
Se fôssemos um país sério, o Presidente Filipe Nyusi já devia ter sido distinguido com um prémio literário qualquer. Aqueles poemas que o Presidente Filipe Nyusi anda a ler no Parlamento merecem algum reconhecimento. Não podemos desprezar o esforço do nosso compatriota desta maneira. Podemos estar perante um Craveirinha e sem nos darmos conta.
Não é fácil falar duas horas sem dizer nada. Não é fácil chamar alguém de "zamwamwa" e o gajo ainda aplaudir. Não é fácil retratar o sofrimento de um povo de forma tão romântica e poética.
Nyusi consegue dizer que não está a fazer nada sem se ofender a ele próprio. Aliás, ele diz isso de forma tão lírica que ele próprio acaba acreditando que está a fazer alguma coisa. Nyusi acredita que de estado da nação "estável" para "firme" e de "firme" para "resiliente" há uma grande súbida. Acredita ele que entre "encorajador" e "merecedor de confiança" é há um grande avanço.
Nyusi proporcionou-nos um mandato poético. Um mandato em que os gatunos e o Judiciário foram tratados com muita figura de estilo. Um mandato em que a pobreza é irónica e a pobreza é sempre uma metafora. Um mandato em que uns vivem no presente e outros, no futuro, onde leões comem mandioca.
Enfim, para Nyusi, o país é poético.
Epá, como sabes, eu não uso esses dispositivos do tipo whatsap, facebook, e outros facultativos disponíveis no nosso tempo. Não tenho estrutura para isso, para além de que a minha impressão, é de que tudo isso está a levar-nos à loucura. Toda a gente anda com os celulares na mão, entre eles aqueles que ostentam os mais modernos e poderosos, malta Huwawei. Não tiram os dedos e os olhos do ecrâ, mesmo caminhando debaixo do sol. Ou a conduzir viaturas na estrada. No átrio das escolas então não digo: os alunos conversam cada vez mais pouco entre si. Estão sentados no mesmo banco ou no mesmo chão, no jardim, mas cada um no seu mundo. Já não há terapia de grupo.
Mas não é para te contar estas baboseiras conhecidas por todos que resolvi escrever-te esta carta. O motivo que me leva a fazer isto é a saudade que sinto de ti. E também a necessidade de partilhar contigo alguns medos que me assolam ultimamente. Aqui continuamos a ser mortos, meu irmão! Assim mesmo, como cabritos içados num ramo qualquer de uma árvore e decapitados a sangue frio. O pior é que esta chacina não dá sinais de abrandamento, e estamos à caminho das eleições gerais onde ninguém sabe o que vai acontecer.
Neste país, que também é teu, meu irmão, já ressurgem aldeias inteiras abandonadas. Outros conglomerados foram literalmente incendiados. Os nossos irmãos, aqueles que conseguiram, saíram de lá como baratas assustadas e foram se aglomerar noutros lugares, escondidos, mesmo assim sem a certeza de nada. Vivemos de morte em morte. E aqui onde estamos, não há ninguém que nos consola. Tudo à nossa volta representa o escuro.
É isso, meu irmão! O meu medo aumenta porque há metralhadoras, ainda aqui dentro, mais para cá, que parecem prontas a troar de novo contra os nossos corpos. Na verdade o que mata não é aquilo que entra pela boca, mas o que sai através dela. E as palavras que temos ouvido ultimamente, nas matas e nas cidades, são um verdadeiro rastilho. Aceso. Há um receio de que a dinamite exploda.
Temos muitas flores por aqui, meu irmão, como tu bem o sabes. Lindas flores. Alagadas de futuro. Mas no lugar de colhermo-las para ornamentar os convívios, investimos sobre elas como pragas. Ontem as crianças cresceram ouvindo o matraquear das armas cuspindo balas sobre os corpos dos seus pais e sobre os corpos dos seus irmãos, e hoje essas mesmas crianças assistem à decapitação dos seus projenitores, em espectáculos macabros que se repetem sem fim à vista.
É este o nosso país, meu caro! Que vive de morte em morte. Com homens bebendo o sangue saíndo da jugular dos seus próprios irmãos, com o fim de lhes fortalecer, segundo a sua irracionalidade, a sanha assassina. Já não esperam pela chegada da noite, para ser a própria noite a vestir-lhes o capuz. Avançam à luz do dia, e assim, as vítimas contemplam, lívidas, o brilho da catana que lhes vai decapitar como reses desgraçadas.
Mesmo assim ainda acredito na roda da história, meu irmão. Um dia todo este sangue que escorre nas aldeias, vai ser lavado. Quem sabe!
Receba este meu abraço trémulo. Sucessos por aí.
O Estado Geral da Nação foi hoje um balanço dos Planos Económicos e Sociais dos cincos anos da presidência de Filipe Nyusi. Um autêntico arrazoado numérico de realizações em todas as áreas de intervenção do Governo. E Nyusi seguiu embevecido na sua contagem. Eram só milhares. Milhares de salas de aulas, milhares de carteiras (de uma “operação tronco” que acabou cedendo ao forte “lobby” chinês e de “nomenklaturas” locais, esfumando-se no seu propósito regenerador), milhares de kms de estradas, milhares de camas hospitalares...e uma apenas máquina de quimioterapia para um país que se estende em milhares de km. Houve também os milhões da Ministra Vitória Diogo, com suas sonantes e brilhantes estatísticas sobre o emprego. Era como se o desemprego já não fosse problema.
No afã da profusão numérica, Nyusi esqueceu-se de captar os tentáculos da crise que varre a sociedade. Os números, empolados alguns (como sempre foi com as mentirosas estatísticas de turistas que entram no país) ou não, os números de Nyusi esvaíram a alma humana, as pessoas que eles pretendem representar.
Perdido na aritmética, o Presidente não conseguiu mostrar um feito governativo estruturante dos seus primeiros cinco anos (o primeiro ciclo, na retórica oficial, de quem está predestinado a gozar um segundo ciclo!!!), para além da sua coragem e entrega abnegada na busca de uma solução política no diferendo com a Renamo. Não fosse esse seu empenho e o país teria cedido aos que na Frelimo sempre apostaram na “savimbinização” da Renamo, no descalabro férreo da guerra.
Fora isso, os cincos anos são um cortejo de remendos. Como se o país tivesse sido pendurado no estendal da incerteza, para se enxugar dele os resquícios mais tenebrosos do Guebuzismo: a maldição das “dívidas ocultas”. (Os académicos guebuzistas, como o Elísio Macamo, tentam agora vender a narrativa de que o calote foi tudo culpa dos Pearses, Boustanis e Safas, do exímio corruptor estrangeiro e ocidental, que empurrou o país para o lixo, tentando-se branquear o papel de uma elite local ávida de encaixar no gás antes mesmo dele começar a ser explorado).
A dimensão do calote prendeu Moçambique numa incógnita. Nyusi (ele sabia ou não sabia?) começou com os cofres vazios e não fosse o pacifismo dos moçambicanos, isto já tinha rebentado pelas costuras, tal a dimensão das famílias famintas deste país. E o Governo preferiu então pelo enredo numérico. Não importa a qualidade, se os números mudam de facto a nossa condição humana, se a educação melhora, e se a saúde é eficiente; importa agora um teatro com algarismos aos milhares, dando a impressão de uma governação cheia de realizações.
Os cinco anos foram uma mistura de boas intenções e alguns desastres anunciados. A gestão do calote foi caótica e não fosse a prisão de Manuel Chang, Filipe Nyusi estaria ainda também a tentar protelar a responsabilização criminal de gente “intocável”, caindo na velha táctica frelimista da proteccão recíproca entre as elites predadoras do poder.
Mas a tentação para se entrar por esse diapasão está sempre presente (como se viu ontem quando foi revelado que o Governo contratou uma firma legal de pé-descalço, sem página web, de reputação duvidosa, para fazer o seu expediente a favor de Chang).
A melhor boa intenção foi a da paz, que há dias estava para descambar, mas que pode concretizar-se já a partir de amanhã. Essa foi a cereja no topo de um bolo de sabor amargo. E Nyusi encerrou mesmo seu discurso amplificando essa iminência da paz definitiva. O resto é uma planície cinzenta de um balanço sem uma ideia sólida construída para o futuro, um pensamento estruturante sobre o que fazer nesse tão obsessivo segundo ciclo (já bastava o Manifesto do partidão ser um mero alinhavar vago de palavras, sem um pensamento concreto de política pública).
E o discurso de hoje acaba como começou: a breve tentativa de uma ideia concreta (o redimensionamento da rede viária do interior, ideia que parece ter caído de para-quedas no enredo) e a esperança alimentada nos milhões do... gás do Rovuma!