Desde as primeiras eleições multipartidárias de 1994 em Moçambique, os resultados nunca foram consensuais, incluindo diversos casos de eleições municipais. Como consequência, vários processos foram seguidos de conflitos pós-eleitorais violentos, geralmente localizáveis no centro do País. Um dos maiores marcos dos sucessivos conflitos pós-eleitorais violentos, foi a revisão constitucional de 2018 que passou a incluir a eleição da figura do governador provincial e nomeação de secretários de Estado para as províncias. Pela trajetória e história da transição para o multipartidarismo, os conflitos atribuíram primazia ao uso da violência armada como reacção, assumindo-se a raiz rebelde da Renamo como o único trunfo para pressionar a Frelimo aceitar cedências.
A via armada não implica em si uma forma de pressão para aceitação de derrotas, embora tenham sido alterados alguns resultados a favor da Renamo através do Conselho Constitucional (CC). Mesmo assim, os acórdãos desta entidade foram problemáticos, sem justificação pública da razão da alteração dos resultados, exemplos disso, foram as eleições de Quelimane, Vilankulo, Matola que resultaram respectivamente na vitória da Renamo nos primeiros dois municípios e alteração significativa de assentos para a Assembleia Municipal em 2023. Os processos eleitorais pós-2018 revelaram um aparente desvanecer da via armada, uma vez que a contestada vitória da Renamo na Cidade de Maputo, reduziu-se a protestos pacíficos, com reacção armada como uma incógnita. Mas a experiência recente mostra que a força militar mantém-se instrumento-chave para o período pós-eleitoral.
A primazia do uso da força como meio de busca ou manutenção do poder político em Moçambique prevalece. Enquanto no período anterior a 2019 a primazia da força militar era confundida com a violência pós-eleitoral tradicionalmente liderada pela Renamo, as eleições de 2024 revelam duas dimensões. A primeira, foi sempre tida como reação legítima do estado na preservação do monopólio do uso da força para o interesse nacional, a segunda dimensão enfraquece a primeira. Enquanto o estado é tido como republicano e de reacção armada legítima contra o uso da ilegítimo da força, as manifestações e protestos pacíficos, embora com focos localizados de violência, a Frelimo usa dos meios de coerção do Estado como meio de manutenção do poder. A Polícia da República de Moçambique (PRM) bem como a Unidade de Intervenção Rápida (UIR) têm optado pelo uso desproporcional da força, deixando patente o cunho de entidades partidarizadas.
Nas recentes eleições gerais de 2024, revelou-se a falência da via armada bipolar como meio de contestação eleitoral, em resultado do processo de desmobilização, desmilitarização e reintegração (DDR) previsto no Acordo de Maputo de 2018. Embora a Renamo tenha registado um forte declínio tanto nos municípios, como ao nível central, o processo do DDR revelou que a força militar não desvaneceu. O novo ciclo revela o demérito da Comissão Nacional de Eleições (CNE) como instrumento de manipulação eleitoral e falência do lema de ‘eleições livres, justas e transparentes.’ Com a via de injustiça eleitoral, um novo movimento de protesto emerge e com a particularidade de ser urbano, retirando assim a histórica base rural-militar.
Afinal a primazia da via militar não foi apenas maléfica para a Renamo, mas também contra a fundação da democracia em Moçambique. A Frelimo, partido que domina os órgãos eleitorais revelou seu uso ilegítimo da força que, até 2018, se confundia com a reacção do Estado para impor a lei e ordem. Na verdade, como estudos prévios revelam pelo mundo, os partidos incumbentes têm maiores chances de cometer fraude eleitoral pelo nível de controlo que exercem na função pública. No caso moçambicano, o domínio é de nível sufocante, dada a história do sistema monopartidário e subsequente Estado partidarizado por conta das regalias aliadas à manutenção do poder. Entretanto, as eleições mantêm a primazia da violência militar pós-eleitoral, não pela conquista do poder, mas pela apetência à manutenção do poder.
A Renamo está desmilitarizada, desmobilizada, mas pouco reintegrada, entretanto, sua liderança revelou-se incapaz de usar meios pacíficos na busca do poder. Seu uso da violência desvaneceu e as regalias Estado emergiram contra afogamento do partido. O Movimento Democrático de Moçambique (MDM) é de natureza civil e urbana desde a sua criação e apenas uma terceira força política. Mediante forte poder de liderança adquirido ao longo do tempo, mas bloqueado no congresso da Renamo em Alto Molócue eis a figura de Venâncio Mondlane que redesenha o esquema político em Moçambique.
Após afastamento do Congresso da Renamo e posteriormente afastado quando o CC desclassificou a candidatura da Coligação Aliança Democrática (CAD), Venâncio Mondlane buscou como última opção o apoio do Partido Optimista para o Desenvolvimento de Moçambique (PODEMOS). Mediante este cenário, o xadrez político sofre uma reviravolta, o desconhecido PODEMOS torna-se segundo partido mais votado com cerca de 20% nos resultados oficiais. Mesma tendência oficialmente apresentada pela CNE para Venâncio Mondlane.
Todavia, os actores políticos não estão confinados nos partidos concorrentes, mas sobretudo na CNE, oficialmente partidarizada e dominada pela Frelimo. Os resultados são contestados e o CC não se mostra apartidário, prefere levar o anúncio dos resultados para o último momento dos prazos legalmente estabelecidos. Ademais, perante o cenário político turbulento do qual faz parte, busca a todo o custo leccionar direito constitucional a todos os actores político-partidários, apartidários e a imprensa. Dos resultados oficiais que a CNE reconheceu serem problemáticos, O CC exigiu explicação que chegou de obscura, sem transparência, mas a vitória eleitoral prevalece fortemente inclinada à Frelimo. Com todas as manobras abertas e as desconhecidas, o que se pode esperar da possível validação dos resultados do escrutínio?
A primazia do uso da violência tende a favorecer a manutenção do poder, mas à beira do colapso. A PRM e UIR revelaram ser entidades partidarizadas, entretanto, a população frustrada com o actual estágio da economia, o contrato social está na incerteza. Ademais, as relações entre o povo e as multinacionais não é saudável. Kenmare foi ludibriada pelo governo e sancionada pelo povo; a SASOL está de costas voltadas com população de Inhassoro e Govuro; motivos de força maior prevalecem com a TotalEnegies em Cabo Delgado; a mineradora australiana Syrah invocou força maior em Balama. Quo vadis Moçambique?
A UIR e a PRM já revelaram seu cunho partidário pró-Frelimo. O Exército mostrou-se amistoso em relação ao povo durante as manifestações, mas tal não é tido como dado adquirido, pois o Ministro da Defesa Nacional não pareceu conciliador no início das manifestações contra os resultados apresentados pela CNE. Em Cabo Delgado, o terrorismo recuperou algum terreno durante o conflito pós-eleitoral e a parceria entre o governo do Presidente Nyusi e as forças ruandesas é uma incógnita. Que tipo de relação podemos esperar com ascensão do novo governo após a potencial validação dos resultados eleitorais? Quem irá proteger o novo Presidente? Estará Moçambique à beira de um regime militarizado?
Diz-se, entre políticos ilusórios, que as eleições são momento de festa da democracia, entretanto, verdades podem ser reveladas por controvérsias entre partidos e candidatos. É raro que os partidos políticos, candidatos presidenciais ou candidatos independentes tenham pilares e agendas similares. O comum na competição eleitoral é a diferença nas perspectivas, agenda e avaliação do regime do dia. Da tradição política, os candidatos à sucessão tendem a trazer discurso de continuidade e melhoria, porém, é incomum o que ocorre na competição para as eleições presidenciais e legislativas de 2024 em Moçambique. Nestes casos, a competição pode tornar-se momento de desabafo, fúria e falsidades.
O atípico da agenda pós-Nyusi e, porventura, da Frelimo como um colectivo, é de resgate, revolução e prosseguimento. A Frelimo tenciona resgatar os valores que o partido destruiu e seguir sempre em frente. A Renamo pretende usar das suas vassouras para limpar o estado moçambicano que se encontra infestado desde 1975. O Movimento Democrático de Moçambique (MDM) pretende trazer ao Povo moçambicano o desenvolvimento que a Frelimo não conseguiu desde 1975. Finalmente, Venâncio Mondlane pretende escangalhar a actual perspectiva de governação e desenvolver um estado livre da corrupção, do amiguismo e da partidarização. Parecendo agendas diferentes pelos termos usados, na essência, os candidatos estão em uníssono pela necessidade de resgate do que foi perdido ao longo do tempo e preservar o que pode ser de bom uso. Entretanto, um aspecto particular, é da incongruência entre o resgate, o curso e o futuro no seio da Frelimo.
Ora, Frelimo pretende resgatar os valores perdidos no seio do partido. Nas palavras de líderes do topo e influentes da Frelimo, Daniel Chapo “sabe ouvir”. A análise de resgate dos valores do partido é complexa pela falta de objectividade, o que pode resvalar em dissonância na análise. No entanto, os discursos de Graça Machel, Joaquim Chissano e Armando Guebuza, que são figuras proeminentes da primeira geração de governação da Frelimo, desde o monopartidarismo – entre 1977 e 1990, bem como do multipartidarismo, desde então, são contraditórios. Ora, do resgate dos valores da Frelimo, é implícito que em algum momento da sua governação e liderança, o partido Frelimo descarrilou e se estagnou. Identificar a altura em que o partido perdeu valores é de debate complexo no ambiente extra-partidário, porém, óbvio é que as três figuras estiveram nos mais altos órgãos do partido e do Estado moçambicano. Qual será então o marco da perca de valores na liderança de Chissano e Guebuza, bem como da proeminência de Graça Machel?
Assumir a actual liderança, encabeçada por Filipe Nyusi, como marco do desvio de valores é especulação. Não se sabe, do ambiente extra-partidário, qual tem sido a gestão do poder e dos valores “daquela Frelimo que pretendia servir o povo”. Se é da presidência de Chissano, de Guebuza ou também da proeminência de Graça Machel, o explícito é que eles desviaram e desrespeitaram o rumo do seu partido, daí que seu mérito na campanha eleitoral é duvidoso. Das poucas tentativas de argumento de desvio, seria da candidatura de Samora Machel Jr sem anuência da Frelimo para as eleições autárquicas na Cidade Maputo em 2018. Seria legítimo concluir que Machel Jr tivesse se apercebido da perca de valores do partido e, assim, tomar tal decisão de candidatura fora da Frelimo, em defesa dos valores “perdidos” do partido. De qualquer forma, talvez seja legítimo que a liderança do partido explicasse ao eleitorado, o momento da perca de valores. Chissano, Guebuza e Graça Machel, figuras activas no partido e na campanha eleitoral, devem explicação ao povo moçambicano.
A Frelimo e seu candidato, Daniel Chapo, apresentam dois lemas: “vamos trabalhar” e “Moçambique para Frente.” Ademais, em forma de apêndice, figuras proeminentes do partido, como os presidentes honorários, Joaquim Chissano e Armando Guebuza, bem como ex-ministra da educação e cultura Graça Machel, afirmam em uníssono que Chapo “sabe ouvir” e este é momento crucial para resgatar os valores perdidos no seio da Frelimo. Encontra-se uma dissonância entre “Moçambique para frente” e “resgate dos valores perdidos” no seio do partido, mesmo havendo necessidade do “vamos trabalhar.” Ora, do resgate, avanço e trabalho, está explicito que, em algum momento, o partido não trabalhou e ficou estático. Não seria desarmónico Chapo “sabendo ouvir”, o que ser-lhe-á dito por seus antecessores? Dos discursos, tanto de Chapo, como dos seus antecessores, procura-se simultaneamente recuar para o resgate e avançar. Para alcançar qualquer dos fins, “vamos trabalhar”, significa que Chissano, Guebuza, Graça Machel e seus camaradas, foram preguiçosos e inertes.
Apartando-se o lado individual das três figuras, com o apoio de Samora Machel Júnior, a Frelimo sempre obteve maioria na Assembleia da República. Aliás na legislatura que está a findar, o partido teve maioria absoluta que permitiu que o partido optasse pela alteração do dispositivo constitucional que previa eleições distritais, adiando-as sine die. Nas anteriores legislaturas, a Frelimo obteve maioria que, sem dificuldades, aprovou legislação, planos e definiu políticas. Um questionamento, mais uma vez, é sobre o momento em que a Frelimo teria descarrilado, aprovando legislação ou políticas que fossem contra seus valores. Se Chapo “sabe ouvir”, talvez fosse justo e harmónico que seus camaradas optassem pelo silêncio, visto serem de legitimidade duvidosa para serem ouvidos pelo candidato que pretende um Moçambique seguindo em frente através do trabalho.
Moçambique sempre foi estado de regime presidencialista, com ou sem exageros de visibilidade do presidente e seu colectivo partidário. Se assim sempre foi, em que momento terá o partido perdido seus valores sem anuência tanto individual como colectiva. Se “saber ouvir” é valor do partido, resta a Daniel Chapo filtrar do que é dito, principalmente de Graça Machel e dos honorários presidentes Chissano e Guebuza, sob pena de manter o partido fora dos valores do mesmo. Aliás, Daniel Chapo talvez tenha que parar de ouvir para evitar prometer acções fora das suas competências. Chapo pretende combater erosão nos municípios, prover água nos municípios, construir estradas e outras infraestruturas municipais. Qual foi, então, a necessidade de criação de edilidades? Talvez seja por apetência ao poder, mas se for por resultado do “saber ouvir”, seria justo não os ouvir.
Os eleitores são geralmente emocionados nas jornadas eleitorais e podem deixar passar mensagens com as quais não concordam. Mas estes eleitores não são tolos, muito menos os edis que podem estar somente acompanhando a onda da campanha do seu partido. Será que concordam com a eliminação das suas competências nos municípios a favor das pretensões de Chapo? Se for o caso, com que tipo de democracia Chapo fará nos municípios governados por outros partidos? Quem promete deve, mas como político em campanha, é permissível mentir, desde que não burle sobre matéria que não é da sua competência e nem depende de si. Chapo está a prometer violar a Constituição da República, mas enquanto os eleitores aplaudem discursos de tal conteúdo, a tolice é duvidosa.
Tal como outros candidatos, Chapo promete transferir ou criar capitais. Mocuba irá hospedar a Assembleia da República de Moçambique; Vilankulo tornar-se-á capital turística; Pemba tornar-se-á capital turística; Niassa capital da agricultura, Nampula será capital económica. Com excepções, a história revela que as capitais de órgãos políticos são definidas por ditadores ou fenómenos políticos atípicos. Não é por acaso o exemplo de Brasília, no Brasil, aprovado no regime de Juscelino Kubischek. A Alemanha do pós-segunda Guerra Mundial ficou dividida e, em resultado, Berlim e Bona como capitais, o que se dissolveu com o fim da Guerra Fria. A Tanzânia tem Dodoma como capital administrativa resultante de um longo processo de transição e discussão sobre a fusão da parte continental com Zanzibar. Mesmo assim, a transferência da capital política de Dar-es-Salaam, mantém o estatuto de capital económica por força da economia, e não da política. Outra complexidade sucede com Nova Iorque, que é capital económica do mesmo Estado, dos Estados Unidos, e do mundo, mas Syracuse é a capital política do Estado de Nova Iorque, enquanto Washington, DC, território cedido por Maryland e Virginia, é a capital política dos Estados Unidos.
Em democracias, contrariamente ao que Chapo promete da transferência do Parlamento para Mocuba, tal decisão é definida primariamente pela elite político-económica. Se apostar pelos princípios democráticos, estará preparado para debate nacional para tal tomada de decisão e implementá-la em cinco anos? Terá o candidato Chapo feito negociação com a elite da Frelimo, habituada ao luxo dos centros urbanos, com centros comerciais para transferirem suas actividades ao “mato” de Mocuba? Garantir tal promessa é burla política que não está no manifesto da Frelimo. Aventando a possibilidade de ditadura, como sugere da retirada do poder dos edis, terá capacidade para fazê-lo em cinco anos? Entre emoções eleitorais, não haverá aqui burlas e ilusões? E a todos os candidatos, para onde vai a capital económica senhores políticos?
Uma capital económica não é transferida, mas sim construída em resultado do ritmo da economia para o desenvolvimento. Investimento não resulta de discurso político e o mesmo país não pode ter mais do que uma capital do mesmo bem ou serviço. É incongruente o discurso de Vilankulo e Cabo Delgado serem ambas capitais turísticas, nem Niassa e Manica, ambas se tornarem capitais da agricultura. Que investimentos tornarão esses locais capitais de tudo? Não serão ideias para ludibriar os eleitores num discurso de resgate, sempre em frente, mesmo com o “vamos trabalhar”? A ideia de capitais para quase tudo, na verdade, revela discursos inconsistentes.
Na unanimidade que os candidatos comportam. Daí que vós candidatos, podem mentir, mas as ondas de capitais para tudo na campanha eleitoral, parecem exposição de sevícias, burlas e ilusões no chamado “momento de festa da democracia.” Promessas sem premissas fundamentadas, nem avaliação de exequibilidade, não tornam a campanha eleitoral momento de festa. Incongruências no discurso de resgate, estagnação ou prosseguimento, são problemáticos e seus promotores, em particular, os presidentes Chissano e Guebuza, bem como a ex-ministra da educação e cultura, Graça Machel, devem explicação ao povo moçambicano, antes que Chapo os oiça. Aos demais candidatos, talvez não precisem de tais conselhos a serem ouvidos.
Uma característica comum dos centros urbanos é de densidade populacional elevada. As cidades levam consigo um ambiente multicultural nacional e estrangeira. Simultaneamente, os grandes centros urbanos são geralmente os que grandemente impactam o índice de criminalidade dos Estados. Outra particularidade é que as cidades, principalmente as que se inserem em países com baixo nível de índice de desenvolvimento humano e com um sistema de justiça em desenvolvimento, ou são acompanhadas de sobrelotação das penitenciárias. Portanto, as cidades se apresentam como centros de busca de maiores e melhores condições de vida, mas, simultaneamente, centros com alto nível de população em reclusão. Como é que os Estados em democratização lidam com esta realidade, do ponto de vista democrático? Será que a população nas cadeias tem o tratamento que acompanha o ritmo da sociedade? Ou os centros de busca de oportunidades são centros de limitação de espaço democrático e de cidadania? Estas são questões discutidas neste artigo, tendo em consideração o espírito de democratização, construção e desenvolvimento de modelos.
Uma das tendências das chamadas novas democracias ou “democracias da terceira onda”, como ensina o Professor Huntington, é a busca de modelos e muitas vezes olhando para as democracias do Ocidente. Esta busca de modelos parte da assunção de que entre as velhas democracias existe um modelo perfeito, se assim se pode dizer, que seja ajustável ao caso que buscam melhorar. Mas tal assunção é falaciosa. O mesmo ocorre na legislação, desde a Constituição aos demais instrumentos jurídicos domésticos, passando pelos tratados e convenções internacionais e regionais. Qual seria o modelo de lei, ou leis, que melhor se ajustaria aos países africanos, particularmente Moçambique?
A busca de modelos peca por ter como dado adquirido que o mesmo foi desenhado, experimentado e, como resultado do seu sucesso, merece uma aprovação definitiva. Todavia, como muitos processos sociopolíticos e legais mostram, o contexto do seu desenvolvimento conta e a sua replicação comummente falha por não termos contextos iguais. Um dos exemplos comuns ocorre nos processos de descentralização de políticas. O outro, comum, é da legislação, que os países ora adoptam por influência externa ou pela moda da lei. Como resultado, ou levam tempo sem implementação efectiva ou assumida como modelo com base no sucesso de outras nações. As penas, na aplicação da lei tida como modelo, pode extravasar a intenção e tomar um rumo menos democrático. Ora, se Moçambique rejeita determinadas regras do jogo democrático, assumindo não serem ajustadas à cultura, quem foi que disse que excluir o voto dos reclusos do processo eleitoral era um desacerto?
Quem foi que disse que o encolhimento da cidadania e direito ao voto seria um problema? Por que razão o recluso não pode votar quando a intenção é de punição ou reeducação passa igualmente pelo conhecimento e busca do melhor comportamento democrático. Sugere-se que da mesma forma que as cidades são de densidade populacional elevada, as cadeias possam ser centros de educação e reeducação democrática e, automaticamente, com o direito ao voto. Não deixa, no entanto, de ser verdade que o tipo de crime seja factor a examinar para este direito. Ademais, Moçambique é signatário de instrumentos jurídicos internacionais sobre o tratamento de reclusos (ex. Regras de Mandela e Declaração Universal dos Direitos Humanos), nesse sentido, não pode descartar o direito ao voto, como algumas sociedades tidas como mais democráticas adoptaram. O nível de democraticidade não depende do nível da população sem direito a voto, mas, em parte, da população que tem direito ao voto.
Uma falácia nas democracias em estado embrionário e com separação de poderes geralmente questionada seria de assumir que o Judiciário depende necessariamente do Executivo. Nessa perspectiva, assume-se que um voto vingativo do recluso contra o governo do dia. Mas quem foi que disse que os reclusos optariam pelos partidos da oposição e seus representantes? Aliás, as cadeias não se situam somente em locais onde a oposição a nível central é diferente da oposição em níveis subnacionais. Ou estará a sociedade a assumir que os criminosos têm penas automaticamente agravadas pelo facto de terem cometido qualquer tipo de crime? Curiosamente, é que a mesma população em reclusão é composta por cidadãos que sobrevivem com base nos impostos dos cidadãos livres.
Espírito da legalidade poderia ser um engano, como alguém diria, em primeiro lugar, “há bandidos mais bandidos” na cadeia que os que estão em liberdade. Segundo, há criminosos da elite que, por força do poder económico e ou político, conseguem curvar a lei e usufruírem de direitos legítimos e, na esteira do nosso pensamento, ilegítimos, incluindo o da escolha de dirigentes e representantes. Terceiro, há aparentes criminosos que estão ilegalmente em reclusão por força da falta intervenção do Estado, com legitimidade questionada, por mantê-los com processos estancados. Estado desgraçado?
As estatísticas de 2024 revelam uma população prisional de aproximadamente 22 mil, dos quais cerca de 6.200 em estado de prisão preventiva, cerca de 15.600 condenados.[1] Sem dados detalhados, revela-se que o roubo de telemóveis e botijas de gás são dos crimes mais frequentes. Ora, sendo o estado de reclusão destes uma contribuição para reeducação ou mudança de comportamento, que razão se encontra para impedi-los de votar? Até prova em contrário, o cidadão em estado de prisão preventiva não é criminoso, então que razão se busca para recluí-lo do seu direito de voto?
Para além da falta de recursos humanos, o Estado carece de meios financeiros, o que não constitui obrigação do cidadão aparentemente criminoso cuidar do expediente processual. O direito ao voto é supremo para a evolução do Estado e seu nível de democraticidade. Ademais, a reclusão da liberdade de escolha poder-se-ia equiparar à limitação da liberdade de opinião. Consideremos o momento de repensar na lógica democrática e retirar algemas da escolha de seus dirigentes e representantes. Por escolha de dirigentes que não se confunda com a escolha de actores do poder judicial. Aliás, os partidos políticos têm o direito à campanha eleitoral nas penitenciárias, fora da falácia de quem gere o Estado.
A clausura do direito à livre escolha não é em si pena, como se pode subentender do actual estágio de legalismo e não legalidade. Portanto, a limitação do direito ao voto desfavorece o crescimento da democracia. Entretanto, pela lógica do argumento, determinados tipos de crime são plausivelmente considerados para a reclusão do voto, especificamente o homicídio voluntário. Este crime, por si só, explica que ocorreu um crime patente contra a democracia: a retirada do direito ao voto de potenciais eleitores. Cada vez que um homicídio ocorre, é um efectivo ou potencial jogador da democracia que é definitivamente retirado da esfera do Estado. Como consequência sugestiva, este cidadão retirado da esfera da democracia, é insubstituível. O homicida provado não poderia deter direitos democráticos.
O que fazer perante factores que importam para a cidadania, democracia e legalidade? Moçambique é uma democracia embrionária que não procura replicar, mas promover o espírito educativo e correctivo da cidadania. A mando do tempo e da razoabilidade, todo o cidadão em reclusão tem direito legítimo ao recenseamento eleitoral prévio e exercício do direito de voto no seu ambiente de reclusão física, e não de atrofiamento da cidadania. Ademais, Moçambique subscreveu a Declaração Universal dos Direitos Humanos que prevê que “todos os presos [reclusos] devem reter os direitos humanos e liberdades fundamentais”, implicitamente, princípios da democracia. Secundado pela Constituição da República, “nenhuma pena implica a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos” (Artigo 61). A penitenciária não é local de enfraquecimento e reclusão da vida política, mas de correcção e promoção da cidadania. Os centros urbanos não são somente de busca de maiores e melhores oportunidades, e as penitenciárias também de estágio da cidadania e cultura político-democrática, o contrário de reclusão do voto.
[1] Dados do Serviço Nacional Penitenciário (SERNAP)
Desde a morte do famoso rapper Moçambicano, Edson Lopes ou simplesmente, Azagaia, o protesto tem sido das palavras mais frequentes das esquinas dos centros urbanos de Moçambique. É que o malogrado deixou uma expressão pouco habitual, no seu significado, mas forte, principalmente entre seus fãs, como também para aqueles que pouco ou nada sabiam sobre Azagaia: Povo no poder! Esta expressão não é literalmente de ânimo leve, leva consigo um conteúdo revolucionário. Sucede que nos principais centros urbanos, fãs e populares decidiram organizar marchas, também pouco comuns, em homenagem ao músico, mas com reacção brutal da Polícia da República de Moçambique. Afinal, por que razão as marchas em memória a Azagaia foram alvo de repúdio dos gestores do poder do Estado, recorrendo ao monopólio do uso da força? Por que razão a Frelimo e/ou seu governo inviabilizaram as marchas?
A reacção da Polícia sugere explicações diversas e adversas apresentadas por políticos, analistas, jornalistas e fãs do finado Azagaia. Povo no poder, não é expressão politicamente bem-vinda, e para o político no poder, todo o cuidado é pouco. Parece que os políticos foram aos dicionários e livros de história da palavra RAP para perceber a sua origem. É que, etimologicamente, rap significa “soltar um golpe rápido, repentino e certeiro”. Como género musical, o rap é de origem afro-americana, como bem sabido, minoria por muito tempo subjugada nos Estados Unidos da América. Do lado Moçambicano, Azagaia é instrumento de caça e guerra que lembra figuras de resistência ao coloniallismo como Ngungunyane, Maguiguane no Império de Gaza, e a batalha de Coolela em Fevereiro de 1895. Eis, também, o Gwaza Mthine, Batalha de Marracuene entre as forças de Zixaxa e os colonos portugueses.
No percurso da democratização, entre finais de 2010 e inícios de 2011, ocorreu um evento que levou à emergência de democracia e reformas políticas: a Primavera Árabe. A onda iniciou na Tunísia, quando um jovem de 26 anos de idade optou por emulação-própria. Num suicídio raro, um jovem vendedor de rua, Mohamed Bouazizi, protestando contra o tratamento da polícia local, decidiu incendiar-se, o que foi culminar em demonstrações populares e numa adesão massiva dos tunisinos contra o regime ditatorial do então Presidente Zine al-Abidine Bel Ali. Os protestos decorreram também com mobilização massiva via redes sociais. Tratou-se de um evento que pôs termo ao regime ditatorial, no que se chamou de “Revolução de Jasmim” em Janeiro de 2011.
Povo no poder! Literalmente interpretado, é que o povo procuraria tomar o poder contra um regime ditactorial ou autoritário. Contudo, golpe de Estado num país não se avisa, eis a razão da aprovação ou aceitação das edilidades para a realização de marchas, supondo-se que a Polícia estaria presente para acompanhar a marcha. Indubitavelmente, não se poderia procurar pelo poder do povo se a democracia estivesse em vida. Na altura da Primavera Árabe, a região era liderada por ditadores, partindo pelo regime da Tunísia e passando pela Líbia, Marrocos, Argélia e Egipto, em África, mas também se estendendo para Síria, Bahrain, Jordânia e Oman. De todos os protestos, a Primavera Árabe teve sucesso apenas na Tunísia e no Egipto, onde Osni Mubarak foi deposto após quase 3 décadas de ditadura.
Se da Primavera Árabe houve concessões em vários países, por que razão alguma ala da Frelimo não teria receio de um possível ‘Verão Negro’ Azagaia, ou mesmo se estendendo, ocorreram protestos no Kenya e África do Sul em curto espaço de tempo. Não porque os três países sejam exemplos de ditadura, mas porque golpe de Estado não ocorre apenas em países não-democráticos. Mesmo que assim fosse, Moçambique, no ranking da Economist Inteligence Unit, é país de regime autoritário. Mesmo com a realização de eleições periódicas, nos últimos 4 anos, Moçambique foi sucessivamente classificado como país autoritário. Seria uma Onda de Verão Negro possível?
Marchar em homenagem ao jovem de “Povo no Poder” não nos pode garantir que um golpe de Estado ocorresse. Porém, somente a realização da marcha ganharia algum significado ‘inédito’. Está claro das mensagens de alguns participantes que viram sua expectativa de marcha frustrada pelo uso excessivo da força da polícia. Aliás, mesmo citadinos que não pretendiam marchar, foram vítimas de ‘inédita brutalidade’ da polícia em zonas urbanas. Diga-se realmente, brutalidade pelas imagens passadas pelas redes sociais, canais televisivos e fotos de outras fontes, para além do pânico gerado, principalmente na cidade de Maputo, onde se localiza a Ponta Vermelha, o centro do poder do Estado Moçambicano.
Quelimane foi dos exemplos de marcha violência visível, quiçá pela visível imagem do Edil Manuel de Araújo, sendo, simultaneamente, fã do Azagaia e membro da Renamo. Nampula registou casos de violência da Polícia, como confere o espancamento de Gamito dos Santos, organizador da marcha. Tantas cidades em Marcha soltando ‘povo no poder’ sugerem significativa expressão de protesto contra algo que não vai bem na sociedade Moçambicana. E as marchas pacíficas, como esclarecem alguns juristas, não carecem de autorização, apenas informação aos órgãos locais. Mas, por que razão autorizar para depois recuar recorrendo à brutalidade da Polícia em Maputo? Nesta memória a Azagaia, poder-se-ia antever uma reivindicação contra o alto custo de vida no País, mas qual é o problema, o clamor nestas circunstâncias faz parte da liberdade de opinião e expressão previsto na Constituição.
Alguma justificação oficialmente apresentada e em momento pontual poderia sugerir algo detectado pelos Serviços de Inteligência Secretos do Estado (SISE), mas tal não aconteceu. A verdade é que menos de 2 dias antes das marchas, o presidente da Frelimo, Filipe Nyusi, afirmou que no seio da Frelimo havia infiltrados que tentam criar divisões no seio do Partido. Conforme o reportado no Jornal o País de 16 de Março de 2023, Nyusi afirma que “há organizações da sociedade civil que querem destruir a Frelimo”. Não é difícil especular que algum serviço secreto tivesse encontrado sinais ou informação sensível para o regime do dia. Povo no poder pode vir de ‘infiltrados’ da causa considerada uníssona no Partido Frelimo.
Não é de falso alarme que alguém do topo do poder ordenasse a Polícia a fazer o uso da força contra as almejadas marchas pacíficas. A Polícia é instituição do Estado e não de um Partido, assim sendo, a Polícia da República de Moçambique não devia ser politizada, mas sim cumpridora da Constituição da República, garantido apenas a segurança, manutenção a lei e ordem e não criar desordem brutal contra cidadãos que pretendiam marchar pacificamente. Ngungunyane, Maguiguane, Mahazule, Matibzane (Matibejane), Zixaxa não fizeram marchas pacíficas, usaram suas Forças de Defesa contra claros e declarados ataques dos portugueses contra o Estado de Gaza e seus satélites. Em que momento terão os fãs de Azagaia declarado usar Azagaias contra o Estado e governo?
A Primavera Árabe fracassou em regimes muito intolerantes e violentos. Poucas concessões, se é que assim podemos entender, ocorreram em muitos países árabes, a resposta foi de forte repressão por parte da polícia e militares subservientes aos regimes ditatoriais. Podemos equiparar isso à brutalidade da Polícia num hipotético ‘Verão Negro’ fracassado num país não-democrático? Talvez sim, talvez não. Mas esta pode ser uma das explicações do abuso do poder para fins político-partidários, em detrimento da legal marcha legal em homenagem ao finado músico Azagaia.
Contra simples hipóteses, a verdade é que a Frelimo repudiou a realização das marchas. O impedimento, no entanto, não carecia da intervenção da polícia da República de Moçambique, a menos que tal tivesse sido solicitado pelos Concelhos Autárquicos em questão. Mas este não foi o caso. A pronta e brutal reacção da Polícia foi em momento cujas justificações pouco podem ser aplicadas. Aos fins-de-semana, o consumo de álcool é comum ao cair da tarde e período nocturno. A questão que se pode colocar é: em que momento da manhã os participantes das marchas teriam consumido álcool para irem às marchas em estados de embriaguez? Se estivessem sob efeito de estupefacientes, em que momento e local o teriam feito? Se considerarmos o consumo de estupefacientes, por que razão os usuários de droga não foram flagrados e/ou detidos contra tal acusação?
Outrossim, a Polícia veio, dias depois, justificar sua brutalidade dada a participação de membros de organizações da sociedade civil e de partidos políticos. E que dispositivo legal os inibe de participarem? Dos membros de organizações da sociedade civil, serão os infiltrados no Partido Frelimo? A verdade é que a lei, a meu ver, não inibe qualquer pessoa com tal vontade de participar de marchas deste género. Serão os políticos e membros das organizações da sociedade civil como Manuel de Araújo, Venâncio Mondlane, Quitéria Gueringane, Fátima Mimbire entre outros cidadãos proibidas de ser fãs de determinados músicos? Será que entre os participantes das marchas não havia membros da Frelimo fãs da música do finado Azagaia?
Muitos políticos do Partido Frelimo, incluindo o Presidente Nyusi acham que “os Moçambicanos são um Povo de paz” e membros de alto nível do Partido Frelimo. Será verdade ou tratar-se-á de antagonismo de perspectivas no seio da Frelimo? Recuemos às palavras do Presidente Armando Guebuza aquando do incêndio às instalações do Jornal Canal de Moçambique, cuja história, segundo Presidente Guebuza “é terrível. Não faz sentido! Não faz sentido! Nós defendemos a liberdade e trabalhemos para que essa liberdade permaneça, porque de contrário, é voltar! É aquilo que nós tínhamos no tempo colonial. Não podíamos escrever nos jornais; dos outros sequer. E quando podemos escrever, então tira-se o jornal? Vamos escrever aonde? No chão?” No fenómeno Azagaia, poder-se-ia dizer: nós lutámos pela liberdade, lutamos pela democracia! Não lutámos pela violação da Constituição da República e fazer uso abusivo da força. Não faz sentido! Se não podemos marchar legal e pacificamente, como é que vamos marchar?
Antes da realização do XII Congresso do Partido Frelimo, já se aventava a hipótese de reeleição de Filipe Nyusi tanto para o cargo de presidente, tal como ainda se antevê a possibilidade de emenda constitucional para acomodação de um possível terceiro mandato de Filipe Nyusi. Entre políticos, analistas, académicos e jornalistas, esta tem sido a realidade corrente após a reeleição de Nyusi para terceiro mandato no Partido Frelimo, aliás, somente o facto de ter concorrido como candidato único para a presidência do Partido, tal poderia acontecer para a presidência da República de Moçambique. Enquanto a presidência do Partido Frelimo é facto consumado, a emenda constitucional é ainda uma hipótese, ao menos fora dos meandros da presidência emérita. Contudo, uma possibilidade tem sido colocada de fora: e se Armando Guebuza decidisse concorrer como candidato independente?
Ora, a especulação faz parte da liberdade de pensamento, eis a razão da liberdade de opinar diferente neste artigo. E se Guebuza concorresse como independente? Creio que a reacção de muitos leitores fosse de imediatamente descartar tal hipótese por razões que parecem óbvias: em primeiro lugar, a disciplina partidária; em segundo lugar, os vestígios da corrupção; terceiro, a aliado à corrupção, o processo de dívidas ocultas e, quarto os considerados pendentes que poderiam resultar em “vingança” contra Filipe Nyusi. Contudo, nenhuma das quatro possibilidades podemos considerar como sendo dado adquirido. Para um partido dominante saído recentemente do seu XII congresso, o que significaria? Eis que busco a suposição de candidatura independente de Armando Guebuza, Presidente Honorário do Partido Frelimo e ex-Presidente da República. E se Guebuza concorresse como independente? Qual seria o impacto?
Em primeiro lugar, assume- se que o nível de disciplina partidária no Partido Frelimo seja de alto nível que descartaria a possibilidade de candidatura de Guebuza concorrer fora da permissão do Partido. Um argumento adicional é que pelo seu mais alto nível na estrutura do Partido, seria de descartar uma espécie de revelia. Ora, os actos que um dirigente, quer eleito quer no partido não são em si condenáveis pelo cidadão, nem a legislação nacional impede tal opção. Trata-se de mera norma inter-partidária que pode ser considerada de traicção, ao optar por decisão extra-partidária. Serão os estatutos do Partido Frelimo acima dos preceitos da Constituição da República? Certamente que não!
E se Guebuza decidisse concorrer como independente, quem teria legitimidade para seu impedimento? Pela crença na sua experiência e seu legado, embora com questionamentos político-legais, poderia concorrer de forma independente. Que órgão teria a competência de impedi-lo? Quem foi que nos garantiu que a violação da disciplina partidária seria condenável por todos os membros ou sua maioria? Será que a indisciplina partidária limitar-se-ia a Guebuza? Ou seria um quebra-mito de unicidade? Sendo de considerar o princípio de não-deserção única, não seria possível um transfúgio partidário colegial ou informalmente constituída e exercida nas urnas. Samora Machel Jr, com todas as limitantes colocadas na avaliação da sua candidatura, demonstra que indisciplina ou deserção política não é impossível.
Em segundo lugar, e como mencionei acima, vestígios da corrupção são considerados uma limitante que poderia restringir eleição de Guebuza para a Presidência da República. No entanto, a história da democracia ensina-nos que tal assumpção é enganosa. Tanto partidos, como dirigentes indiciados de escândalos de corrupção já foram eleitos e reeleitos em diversas partes do mundo, dentre as consideradas democracias consolidadas, como nas novas democracias. Ademais, por vezes, durante os mandatos pós-eleitorais seus países se tornam mais democráticos, ao menos por via da avaliação dos índices convencionais como os da Freedom House, da EIU e da VDem. Em Israel, Benjamin Netanyahu reconquistou o poder após escândalos de corrupção. ANC continua no poder na África do Sul, mesmo com os escândalos de corrupção da sua liderança. O mesmo já ocorreu na França, nos Estados Unidos, Reino Unido, para além do recente caso de Lula da Silva. Aliás, Filipe Nyusi foi eleito Presidente da República já com alegações da “equipa” das dívidas ocultas. Tanto indiciados como corruptos provados como devassos, podem granjear maior interesse que aqueles tidos como candidatos ou líderes limpos do poder.
Ainda no segundo ponto, quem foi que nos garantiu que outros candidatos do Partido Frelimo apareceriam sem mácula de corrupção, incluindo o o actual Presidente Nyusi. A corrupção não é fenómeno isoladamente de um líder, mas seus colaboradores e apoiantes podem ter sido cúmplices, logo, descartando a hipótese do primeiro ponto de deserção. Corruptos também deixam legado autêntico ou de mera percepção que os eleitores consideram irrelevantes para impedir a ascensão ao poder: os “sete milhões” podem ser considerados um desastre político e punível por eleitores ou entidades, mas os beneficiários “legítimos” dos 7 milhões podem apoiá-lo por expectativa de melhor negócio ou expectativa do privilégio de voltar a aceder ao mesmo fundo.
Consideremos que Guebuza fosse político corrupto, seria tal integralmente dado adquirido para todos? Qual é a percentagem da população Moçambicana com tal percepção? Quem se esquece da ponte Maputo-KaTembe, embora problemática na sua actual gestão, a infraestrutura é Guebuziana. Aliás, Nyusi o afirmou no acto da inauguração da ponte que a ponte não tinha sido iniciativa dele, mas sim do seu antecessor. Talvez fosse discurso para mera culpabilização de Guebuza pela transitabilidade dispendiosa do uso da ponte pela classe média com viaturas. Mas Guebuza não é quem gere a ponte, quem decide sobre a taxa da portagem não é do governo de Guebuza. As taxas são decididas pela governação nacional de Nyusi e Municipal de Eneas Comiche. Que coloca KaTembe como enclave não é Guebuza.
Os eleitores já votaram e ainda escolhem corruptos ou indivíduos de conduta duvidosa. A estrada circular na “Região do Grande Maputo” não lembra Nyusi, mas sim, Guebuza emérito Presidente do Partido Frelimo. As peripécias do fundo de desenvolvimento distrital, visitas presidenciais recebidas em massa na era Guebuziana, estarão apagadas da mente dos eleitores. Os eleitores não são parvos, conhecem a razão da escolha, sabem o que escolhem, sabem ainda decidir pela abstenção. Uns se vingam por elevado custo de vida, outros por premiação pela governação anterior, mas também há eleitores que decidem por pura esperança. Não de trata de mitos. A ideia de unidade nacional não é nova, os moçambicanos se unem pelo Português, mas também por obras: e a Ponte Armando Guebuza, Sofala-Zambézia? E a ponte Kassuende em Tete? E a ponte Guijá-Chókwe? Os problemas de má conduta no INSS não são de Guebuza, mas as instalações são marcas de Guebuza. Será que os trabalhadores urbanos se esqueceram das instalações do INSS e da Autoridade Tributária? Poderíamos nos enganar ao descartarmos a hipótese de vitória de Guebuza. “Compatriotas, Cahora-Bassa é Nossa!”
Nos corredores do debate, já se aventa a hipótese de terceiro mandato do Engenheiro Filipe Nyusi. De facto, a Frelimo detém maioria qualificada para alterar a Constituição da República e permitir terceiro mandato. Como possível imprevisto, o que terá justificado a candidatura em aparente uníssono de Nyusi para a presidência do Partido no mais recente congresso? Como apresento mais adiante, as dívidas ocultas tiveram “chefe do comando operativo, um grupo delegado para negociar, esse chefe é Filipe Nyusi. Não serão marcas de poder de um político considerado de conduta duvidosa, incluindo membros da sua família. Hillary Clinton granjeou poder, mesmo após escândalos do seu esposo e ex-presidente Bill Clinton no caso Monica Lewinsky, sua secretária na Casa Branca. No funeral de Margareth Tachter, ex-Primeira Ministra da Grã-Bretanha, vimos cartazes de pessoas que diziam: “finalmente a feiticeira morreu!”
Finalmente, contam notas do processo de julgamento das dívidas ocultas que Filipe Nyusi foi citado como tendo sido das figuras importantes da criação da Empresa Moçambicana de Atum (EMATUM), uma das empresas envolvidas, juntamente com a Mozambique Asset Management (MAM) e Proindicus, as decisões não foram tomadas isoladamente por Guebuza. No decurso do julgamento do caso das dívidas ocultas, Guebuza afirmou em sede to tribunal que Filipe Nyusi tinha sido o “chefe do comando operativo, um grupo delegado para negociar”. Não precisava ser ele a saber e que talvez o chefe do comandando operativo pudesse esclarecer melhor os detalhes do projecto económico-financeiro que resultou nas dívidas.” Ora, estas afirmações geraram um clima que supostamente fossem forma de Guebuza se livrar e responsabilizar Nyusi, ao que Adriano Nuvunga, director do CDD chamou de “relação ruim” entre Guebuza e Nyusi. Seja como for, fica claro que ambos estiveram a par do negócio que resultou nas dívidas, mas aventando-se uma vitória eleitoral de Guebuza, será que haveria “vingança” de Guebuza contra Filipe Nyusi? Não é dado adquirido, não conhecemos todos os processos autónomos do mesmo.
Como se indica, tanto Presidente Guebuza como o então Ministro da Defesa, concordavam na necessidade de criação da EMATUM e MAM, justificando-a por conta de ameaças à segurança da República de Moçambique, quem então seria o responsável para o esclarecimento dos contornos da dívida? Seja como for, se Guebuza ganhasse as eleições como independente, estaria seguro pelas imunidades emanadas para o Presidente da República e Filipe Nyusi gozaria do actual estatuto para não ser imediatamente responsabilizado: por que razão os eleitores deixariam de votar em Guebuza em detrimento de Nyusi ou vice-versa? Se Guebuza concorresse como independente, se pode presumir um equilíbrio entre ambos e vitória de um ou outro, será que Guebuza não poderia evocar seus feitos presidências como bandeira de campanha? Será que Nyusi superaria Guebuza com possível discurso anti-Guebuza? Mantendo constante a possibilidade de fraco apoio para Ossufo Momade, líder da Renamo, qual seria então o posicionamento dos eleitores membros da Frelimo? E os não-Frelimistas?
No processo de julgamento das dívidas ocultas, Armando Guebuza abdicou do privilégio de audição em fórum privado e foi à da chamada “tenda BO” prestar declarações em público. Em sede do tribunal, Guebuza, com ou sem verdades, pronunciou-se, inclusive mencionando o nome do ex-Ministro da Defesa, Filipe Nyusi, na qualidade de chefe do comando conjunto – o considerado fórum do qual podem ter sido tomadas decisões mesmo na ausência de Guebuza. Filipe Nyusi não se pronunciou sobre o processo de endividamento oculto aprovado pela maioria partidária da Frelimo na Assembleia da República. Desta forma, entre os dois, quem pode ser considerado defensor do interesse nacional e com mérito político? Quem dos dois, aventando-se a hipótese de candidatura independente de Guebuza, teria maior apoio dos eleitores? Aliás, Nyusi, com seus feitos, foi eleito sabendo-se sobejamente que tinha estado no comando conjunto, provável corrupto ou cúmplice. E se Guebuza se concorresse como independente?
Discursos políticos e desenho de políticas públicas são matérias entrosadas, mas separadas. Os políticos não devem tomar seus discursos políticos como dados adquiridos, presumindo que os cidadãos não percebem. Ou seja, que os cidadãos são tolos e que quem sabe bem das coisas é Eneas Comiche, Edil da Cidade de Maputo. Num discurso percebido como contraditório, Comiche afirma que a Cidade de Maputo “não deve ser usada como depósito de lixo” referindo-se a viaturas usadas, mas importadas e comercializadas no município que ele preside há anos, no mínimo em dois mandatos de 5 anos cada. Ele vai mais longe dizendo: “preocupa-me que sejamos depositários de lixo proveniente de países produtores de viaturas. São sucatas [...] que não sabemos qual é a origem e podem até ser resultantes do roubo e que não devíamos permitir que isso acontecesse”.[1]
Ele descobriu que o município que dirige tem parques de sucatas só neste último ano do seu segundo mandato? Ora, aos munícipes que ele governa, são alarmantes as incongruências dos discursos do Edil da Cidade de Maputo.
Dr. Eneas Comiche não é “cidadão comum” - e desinformado, nem consultor para recomendar a tomada de decisões sobre os destinos da Cidade de Maputo. Ademais, o Edil da Cidade de Maputo tem estatuto diferenciado dos demais presidentes dos actuais 53 municípios de Moçambique. E mais, Comiche não é consultor do Governo de Moçambique. Ele é sim, decisor eleito e dele se espera, responsabilidade e tomada coerente de decisões. Alguns pontos me atraíram para avaliar o discurso do Edil de Maputo como sendo de larga inconsistência, irresponsabilidade, e, acima de tudo, alguma ironia. Destaco quatro pontos: (i) proveniência e processo de importação de viaturas; (ii) atribuição de espaços para armazenamento e venda de viaturas; (iii) atribuição de licenças para venda de viaturas; e (iv) clientes das viaturas a que apelida de sucatas.
A importação de viaturas é grandemente feita na Cidade de Maputo, Município que Comiche dirige. Os navios transportadores de viaturas atracam no Porto de Maputo e as viaturas importadas são de proveniência que ele não desconhece. Me parece óbvio que os agentes alfandegários e importadores de viaturas não trabalhem com total desconhecimento do Edil da capital da República de Moçambique. Se Comiche não conhece a proveniência das viaturas, então que assuma não ser edil competente. O processo de registo de automóveis ocorre no município que ele dirige e sabemos que ele não desconhece, apenas me parece cínico ao discursar com tom de desconhecimento da proveniência das viaturas que entram pelo porto de Porto de Maputo. Ou os assessores dele o induziram a isso. Mesmo assim, não deixa de ser incoerente para o cidadão Comiche que cresceu, viveu, e ainda vive na Cidade de Maputo.
Dr. Comiche conhece o dia-a-dia dos residentes do seu Município em matéria de transporte. Bem o sabe que não existe sistema estabelecido e competente do sector de transportes. A zona metropolitana do Grande Maputo é governada por Comiche e equipa de governação por ele construída. Bem o sabe, Comiche, que sem as viaturas a que chama de sucatas, a classe média da Cidade de Maputo, não encontraria alívio do inexistente sistema de transporte. Bem o sabe, Comiche, que os autocarros que transportam passageiros na cidade de Maputo não permitiriam o funcionamento do aparelho do estado no horário entre 7H30 e 15H00. Que nos diga o Edil de Maputo por que razão permite a importação de tais sucatas, talvez porque ele goze das regalias fruto dos impostos dos cidadãos. Em 2021 Comiche prometeu FUTRAN, sistema de transporte com veículos suspensos, que estaria operacional até finais de 2022, em Dezembro aparece com discurso incoerente. Terá, entre 2021 e 2022, descoberto que FUTRAN seria sucata na Cidade de Maputo? Há falta de lucidez no seu discurso, por que razão terá omitido esse fracasso? Eesperamos FUTRAN operacional até 31 de Dezembro de 2022.
Em segundo lugar, de acordo com Eneas Comiche, “é notável a proliferação de parques de venda de viaturas usadas, com destaque para a Avenida Joaquim Chissano, Avenida de Angola e Avenida Acordos de Lusaka”. Finalmente, desde a sua tomada de posse, o Edil se fez sair do escritório e voltar a percorrer os bairros por onde passou em busca do voto nas eleições autárquicas de 2018. Será que nessa altura não existiam parques de venda de viaturas a que hoje apelida de sucatas? Sr. Edil da Cidade de Maputo, os eleitores não são tolos, bem o sabem que o que diz não passa de discurso contraditório. Quem foi que “vendeu” os espaços e quem foi que comprou as casas que se tornaram parques de venda de viaturas? O Edil Comiche, afinal não sabe que terra é propriedade do Estado e não pode ser vendida?
Em terceiro lugar, se Comiche é Edil da Cidade de Maputo, se esses espaços das avenidas a que se refere não têm DUAT, de quem é a culpa? É que para além desses espaços que o Edil menospreza, aos locais ao lado desses parques, Comiche alguma vez foi verificar a existência de DUAT? De quem é o dever de atribuir e fiscalizar? Somente nessa visita ao distrito KaMaxaquene é que verificou que havia parques de venda de viaturas, avaliou o seu estado e chegou à conclusão de que se tratava de sucatas? Se o senhor Edil sabe governar devia, com antecedência, ter sabido que há importação de sucatas que ocupam espaços sem DUAT. As eleições estão à espreita e queremos ver as viaturas que farão parte da sua frota de campanha eleitoral. Somente hoje que Dr. Comiche visita KaMaxaquene é que percebe que autoriza ilicitudes?
O Edil de Maputo autorizou e hoje recua, quer parar de financiar terrorismo, lavagem de dinheiro, venda de drogas e outras actividades ilícitas? Só em Dezembro de 2022 é que se apercebeu que estava no espírito do “deixa-andar” nesse tipo de negócios? Afinal a sua polícia camarária não coopera com a Polícia da República de Moçambique? Afinal o Município da Cidade de Maputo não é o único em Moçambique com estatuto especial? Afinal o Dr. Comiche não acompanha o processo de descentralização quando se trata de assuntos preocupantes? Hoje, o Edil Comiche, finalmente, sabe que não devia permitir esse tipo de negócios, mas ainda permite. Quem foi que disse ao Dr. Comiche que aqueles negócios são ilícitos? Terá enviado inspectores da sua equipa de governação para fazer levantamento das ilicitudes dos parques de sucatas?
Em quarto lugar, o Edil de Maputo está apoquentado por assuntos que só faltando 10 meses das eleições autárquicas é que revela. Quem é que adquire essas viaturas? Afinal o Edil Comiche não sabe o que acontece no Município que Governa? Presidente Comiche não pode fazer ouvidos de mercador, os seus próprios funcionários compram viaturas nesses parques e, para ajudá-lo a saber da proveniência, declare que colabora com as alfândegas e irá saber detalhadamente, embora saibamos que o Senhor Edil sabe. Dr. Comiche sabe que seus munícipes esperam os resultados do que prometeu durante a campanha eleitoral em 2018, e mesmo nos seus anteriores mandatos.
Finalmente o Edil Comiche se preocupa com o meio ambiente. Só em Dezembro de 2022 percebeu a existência de sucatas importadas na cidade de Maputo. Terá também observado que as sucatas anteriores ao Acordo Geral de Paz de 1992 ainda estão nos passeios das avenidas do seu município? Como é que pretende remover as recém-importadas sucatas, ainda em circulação, quando ainda não conseguiu remover as sucatas que não conseguiu remover nos seus mandatos anteriores? Pode incluir como uma das suas prioridades do próximo possível mandato em 2023, a recolha de sucatas importadas. Entretanto, garanta aos munícipes que não irá usar lixo importado para sua campanha eleitoral. E irá, igualmente, atribuir DUAT aos demais cidadãos vizinhos desses parques que operam sem DUAT.
Dr. Comiche é livre de suas convicções anti-poluição, anti-terrorismo, anti-negócios ilícitos, mas que não se aproveite de pequenas visitas à KaMaxaquene para, aparentemente, desabafar. O Edil da Cidade de Maputo tem Partido, tem equipa de governação, tem assessores e aí pode desabafar, se realmente forem suas intenções. A Constituição da República atribui liberdade de expressão ao Dr. Comiche, mas que não tire benefícios da sua posição de edil para exprimir o que poderia achar estando fora do cargo que ocupa. Patrocinando terrorismo, tráfico de drogas, lavagem de dinheiro e demais ilicitudes, pouco sabemos, mas sabemos que os donos desses parques e seus clientes pagam impostos e taxas que Dr. Comiche recolhe. O Edil de Maputo bem sabe que cobra taxa de lixo aos donos de parques e seus clientes, não estará desta forma a patrocinar ilicitudes? Enquanto isso, Dr. Comiche, aguardamos pela inauguração do FUTRAN neste mês de Dezembro de 2022.
[1] Vide jornal O País de 8 de Dezembro de 2022