Em Moçambique, uma estrada em péssimas condições elimina a vida de um veículo e salvaguarda a dos seus ocupantes. Por sua vez, uma em boas condições e por conta de acidentes, elimina a vida de ambos, a do veículo e a dos ocupantes. Neste contexto, não sei se faz algum sentido (atenção o próximo Orçamento de Estado) pedir que o Governo melhore as condições de transitabilidade das estradas. Alinhar nessa diapasão não será o mesmo que o Governo defender a eutanásia (morte assistida) ou, no mínimo, que esteja em curso, um projecto oculto e selectivo de eliminação de certas franjas da sociedade.
O intróito vem a propósito da elevada sinistralidade nas estradas moçambicanas, em particular na N4, aqui citada apenas por razões de proximidade. Igualmente, o intróito vem a reboque do recente debate parlamentar na antiga metrópole, Portugal, referente a despenalização ou não da eutanásia.
Tenho dito, em privado, que graças a manifesta incapacidade do Governo em melhorar a qualidade das estradas que o nível de sinistralidade não é maior e a população moçambicana não é inferior aos actuais 28 milhões. A tal incapacidade ainda concorre para desestimular a compra de automóvel, contribuindo assim para um ambiente são quanto a poluição atmosférica. De per si, isto já seria o suficiente - barata e ao alcance dos moçambicanos – para se apostar como uma fórmula/estratégia rumo ao desenvolvimento sustentável. As Nações Unidas agradeceriam imenso por este contributo imensurável do país ao mundo.
Mas, infelizmente, fora melhor denominação, esse não é o entendimento. Do debate nacional sobre a sinistralidade, emergem várias soluções que recaem sobre a (i) fiscalização, a (ii) infra-estrutura e o (iii) comportamento humano. A primeira, porque à troco de alguma cifra o regulador deixa passar o infractor (automobilista). A segunda, porque a melhoria não previra um separador físico entre os dois sentidos. A terceira, porque o automobilista se fez à estrada embriagado e o peão sem respeitar as regras ou os pontos de travessia.
Dito isto, pergunto: haverá algum interesse para que assim continue? No mínimo e pelo resultado (elevada sinistralidade), a contínua insistência governamental na melhoria das estradas nacionais alimentam severas desconfianças em relação aos reais interesses do Governo. Em tese, e perante os factos, o Governo aposta os parcos recursos dos contribuintes na criação de condições para o luto das famílias dos próprios contribuintes. Um assunto para perguntar: ajudar o outro a morrer, não será um crime?
Pelos vistos não é crime. E aqui entra o debate sobre a eutanásia em Portugal. Dele, retive o essencial - através da seguinte frase: “O suicídio não é um crime em nenhum país. Parece-me um pouco ridículo que seja crime ajudar alguém a fazer uma coisa que não é crime.” (Philip Haig Nitschke, activista pela morte assistida ao jornal português expresso do dia 20 de Fevereiro corrente). Neste sentido, e extrapolando para a realidade moçambicana, quem se faz à estrada ao volante e embriagado ou que não cumpra as regras de travessia é um suicida. E o suicídio em Moçambique também não é crime, tanto para quem o cometa e por arrasto, para quem o ajude nessa empreitada trágica.
Todavia, e perante a insistência governamental em aprovar e executar anualmente um Orçamento de Estado que aposte e priorize a melhoria das estadas, não me admira que um dia, os defensores dos direitos humanos processem o Estado por reiterada tentativa de genocídio.
Estou aqui, desde a semana passada, a vasculhar os meus apontamentos da faculdade para ver onde se encaixa o valor-notícia do espectáculo artístico do arguido Paulo Zucula. Não entendi bem qual era o alcance da notícia. Mostrar que o antigo ministro sabe tocar guitarra? Mostrar que ele faz caridade ensinando outros detentos a dedilhar a guitarra? Mostrar que ele é homem-do-bem? Mostrar que ele é um cara benevolente?
Não apanhei a intenção até agora. Quem convidou a imprensa? Os serviços penitenciários? Os advogados? O próprio "gatuno"? Os familiares?
Está muito difícil para mim entender. Paulo Zucula é um arguido como tantos outros que andam nas prisões deste país. E ele não foi preso porque plagiou uma música de dono. Nem porque roubou uma guitarra. Ele e mais dois comparsas foram indiciados da prática de sobrefaturação num valor estimado em 400 mil dólares. Zucula é acusado de ter aceite subornos enquanto membro do Governo para facilitar a aquisição de duas aeronaves da companhia estatal de aviação. Sem contar também que Zucula é acusado de ter recebido valores que variam entre 135 mil dólares e 315 mil dólares para facilitar a adjudicação de obras do Aeroporto de Nacala, na província de Nampula, à construtora brasileira Odebrecht. Sendo menos poético: Zucula pode ter delapidado o país. Ou seja, é um potencial gatuno. Não é brincadeira, não!
Por isso, eu acho que fazer uma cobertura jornalística pomposa do espectáculo musical de um punhado de prisioneiros liderados pelo antigo ministro é brincar com coisas sérias. É tentar ludibriar o povo, uma vez que até àquele dia Zucula ainda aguardava julgamento. Ainda não tinha sido condenado, e não foi até agora. Aliás, o julgamento começou uns dias depois daquele "show" de bom-moço. Que implicações terá aquela campanha beneficente no julgamento?
E se a moda pega?! E se cada prisioneiro quiser o seu espaço de antena?!
E se a Helena solicitar uma cobertura para mostrar que sabe imitar Zena Bacar? E se as suas colegas de cela pedirem cobertura para mostrarem que sabem "tsovar" como Zaida Chongo? E se o Ndambi quiser mostrar que sabe jogar golf? E se o Rosário quiser mostrar que sabe jogar xadrez? E se o Mazoio quiser exibir que é um grande trompetista? E se o Chang quiser mostrar que é um autêntico Bethoven? E se o Nhangumele quiser mostrar que sabe tocar chocalhos? Quid juris?
Não sei o que os manuais dizem sobre isso. Só sei dizer que existem muitos detentos talentosos, desde artistas plásticos, músicos, atletas até acrobatas. Se antes de cada julgamento, quisermos exibir os dotes de cada arguido teremos de montar um "The Gatuno's Channel" com o orçamento do Estado. Matéria é que não vai faltar. Até Manuel Escurinho fez curso de árbitro na cadeia, era arbítrio do campeonato penitenciário... ninguém mostrou.
E agora, quid juris?
- Co'licença!
"Temos feito progressos significativos nos últimos três anos na nossa luta contra a corrupção, apesar do cepticismo de pessoas com registos questionáveis", disse o presidente na quinta-feira da semana passada. "Reforçamos a estrutura legal para combater a corrupção, com a ajuda do parlamento, aprovando a Lei de Proteção a Testemunhas, o Gabinete da Lei de Promotoria Especial, a Lei do Direito à Informação e uma Lei das Empresas que fornece um quadro para um registo de propriedade benéfico".
"O governo aumentou as alocações orçamentais para todas as instituições de prestação de contas do Estado", incluindo o Parlamento, o judiciário, o Auditor Geral e o Gabinete do Promotor Especial, disse o presidente ao parlamento.
"Cerca de quarenta ou mais personalidades de alto nível estão atualmente perante os tribunais sob várias acusações de corrupção e outras estão em processo. Gostaria de repetir que, se forem apresentadas evidências de corrupção, ninguém será poupado, independentemente da posição ou filiação política. Ninguém está acima da lei. Esse é o verdadeiro significado de igualdade perante a lei ", concluiu o Presidente no seu discurso ao Parlamento na quinta-feira, 20 de Fevereiro.
Infelizmente, não foi o Presidente moçambicano falando ao parlamento moçambicano. Em vez disso, foi o Presidente Akufo-Addo, dando o seu discurso sobre o Estado da Nação ao parlamento do Gana. O discurso foi transmitido ao vivo pela rádio e milhões o ouviram dizer "ninguém está acima da lei".
Seria maravilhoso se o Presidente de Moçambique pudesse fazer tal discurso ao parlamento. E seria emocionante se o parlamento moçambicano, em apenas dois anos, pudesse aprovar quatro leis anticorrupção importantes. Quando é que ouviremos o presidente moçambicano a falar as palavras de outro presidente africano: "se forem apresentadas evidências de corrupção, ninguém será poupado".
Joseph Hanlon em Accra, Gana
O 14 de Fevereiro, o dia dos namorados, já passou, mas as suas incidências ainda se fazem sentir por estas bandas da capital da Pérola do Índico. Desta vez por conta de um florista que ameaçara um seu cliente assíduo da data em apreço e de outras ocasionais. A ameaça: executar uma acção extra-legal ou judicial contra o seu cliente, a quem acusa de ser um devasso social.
O histórico: no dia 14, desloquei-me ao estabelecimento do florista para os devidos efeitos. No local deparei-me com um alvoroço total. Pela primeira vez, e diante do citado cliente, o solícito florista se recusava a vendê-lo as habituais flores bem como a respectiva entrega às destinatárias. O alvoroço recheou toda a hora do almoço, período das rosadas visitas do cliente assíduo . A desordem foi tanta a ponto do florista fechar o estabelecimento.
Em pouco tempo da minha estadia no local deu para perceber a querela: o florista queria dar um “BASTA” ao modo de vida de “Don Juan” do seu cliente. Isto depois de quase duas décadas de préstimos inestimáveis e a ponto de se sentir cúmplice e abusivamente usado pelo histórico cliente. Este, todos estes anos, recorrera aos serviços do florista para presentear a sua “Rosa” (o jeito carinhoso que ele trata a mulher) e a toda prole da sua concubinagem, que até não lhe caía mal na imagem de bem sucedido. Aliás, e ao que parece, um direito constitucional que o florista não se importava em auxiliar o seu cliente na sua materialização. Isto foi até ao passado dia 14 de Fevereiro. O dia em que a nova concubina a ser presenteada - passando a pertencer ao harém do seu cliente - era a filha caçula do florista. Não havia nenhuma dúvida, pois o endereço do cartão das flores era o da casa do florista.
No auge do alvoroço, fui um dos convidados - pelo florista - a ver as provas que sustentavam a acusação. Até então nunca vira um arquivo metodicamente organizado. Uma sistematização comparável só a da Alemanha dos tempos do III Reich. Cada concubina tinha a sua ficha, contendo os dados pessoais e outro tipo de informações adicionais. Em cada ficha os anexos de fotos, vídeos, gravações áudio dos pedidos das flores e a de indicação do nome e endereço das destinatárias, as cópias dos cartões que acompanhavam as flores e por ai em diante.
O passado securitário do florista foi uma vantagem na organização meticulosa do arquivo. E desta vez, um outro tipo de vantagem do seu passado securitário, amiúde, e a par da abertura de um processo judicial, era por ele avocado. À margem do bate-boca, e a propósito da querela “florista vs assíduo cliente”, o recente debate em torno da penalização da invasão a privacidade quase que resvalava em pancadaria entre os restantes clientes.
Infelizmente e por razões de compromissos inadiáveis, tive que deixar o estabelecimento num momento de impasse quanto ao desfecho da querela, sobretudo, à luz do debate sobre a penalização ou não da invasão de privacidade. Haviam dois grupos. Um que defendia o florista, reforçando o argumento (a coesão e paz social) em torno da acusação: o cliente assíduo é de facto (e gravata) um devasso social. E o outro grupo que defendia o cliente, acusando o florista de devassa da vida privada. Quid Juris?
Enquanto deixava o estabelecimento e para relaxar a briga liguei o auricular e na rádio tocava uma música brasileira. Era a música de Jorge Aragão, mas cantada por Emílio Santiago. Estava no fim e dizia: “Malandro! /Só peço favor/De que tenhas cuidado/As coisas não andam/Tão bem pro teu lado/Assim você mata/A Rosinha de dor...”
Estou a ouvir Rádio desde às quatro, deitado sozinho na cama com saudades da minha mulher que zarpou há cinco anos, farta da minha conduta, e eu não vejo o mínimo sinal de que um dia o caminho dos meus pés voltará a ser como era dantes, cheio de flores. Moro no décimo sexto andar de um prédio na 24 de Julho, e até hoje não sei como é que ainda não me suicidei, pois tenho tudo facilitado pelas alturas. Não preciso de recorrer à corda nem ao veneno, daqui posso saltar sem recurso ao pára-quedas.
O locutor de serviço é Agostinho Luís, meu ídolo. Um homem que tem toda a alma na voz devastadora, capaz de provocar terramotos em todos os sentidos. Com este actor a falar eu não tinha outra saída que não fosse entregar-me, por inteiro, ao seu chamamento. Agostinho é o próprio sino, cujo som produzido pela batida do tremendo badalo, vai reboar pelos quatro cantos do globo que está dentro de cada um de nós.
É madrugada em Maputo, dizia ele na sua voz de ouro, para depois tocar a música “Chove chuva, chove sem parar”, do brasileiro Jorge Ben, e eu senti fortemente o escorrer do coração, pensando na minha mulher, na minha linda mulher perdida para outros braços. Para outro coração, melhor que o meu.
Saltei da cama quando Agostinho voltou a falar, e disse assim, “chove em Maputo”. Mesmo assim, este locutor de elevada classe, inigualável, não podia preencher o vazio deixado pela minha Mbuli, muito provavelmente aconchegada no peito de outro homem nesta madrugada fria, depois de uma noite inteira cheia de amor, e eu sem amor nenhum. Sentindo-me um nenhumano. Um verme.
Fui à varanda do meu quarto. Olhei lá fora e chovia em cascata. Parecia que Deus tinha aberto todas as torneiras do Céu, e se eu daqui me atiro, sem páraquedas, não tenho a menor dúvida de que o meu corpo irá esparramar-se lá em baixo, de vez. Mas eu não vou fazer isso, para além de que venero a chuva, ela não merece misturar-se com o meu sangue envenenado pelo álcool que não páro de insuflar neste corpo putrefacto, desde que Mbuli foi embora. Aliás, ela foi exactamente porque eu sou uma pipa.
Volto à cama e sento-me na borda ouvindo o Agostinho Luís. Olho para a garrafa de whisky na cabeceira e não resisto. Acendo um cigarro e impregno todo o espaço que me acolhe com fumo. Entorno a bebida no copo vazado no último gole da noite, e partir daqui, o que me espera é a pângeda. A continuação da pândega. E hoje também não vou trabalhar, que se lixe! Quem vai mudar o mundo não sou eu!
Queimo as goelas com Scotch, e os pulmões com fumo, sob a doce sombra do Agostinho Luís que, em sintonia telepática comigo, põe a girar a universal Eu bebo sim/ Eu tou vivendo/ Tem gente que não bebe e tá morrendo/ . É um samba de Elza Soares, de 1973, celebrizado na voz de Elizeth Cardoso. Mas toda essa paródia não vai impedir a minha derrocada.
Mbuli! Ela não me sai dos pensamentos, apesar de eu saber que não sou digno dela. E o que mais me dói nisto tudo, é que, enquanto caminho pelo desfiladeiro ígreme em direcção ao poço escuro com espigas de aço à minha espera, ela brilha nos patamares da felicidade. Com outro homem. Melhor do que eu. Isso é que me doi!
"Eu não conheço Nhangumele!" - um herói negando outro herói, uma guerra intergeracional, um conflito estatutário.
Não sei que justificativas daremos às futuras gerações, se encontrarem apenas heróis de armas naquelas tumbas. Que argumentos daremos para essa exclusão? O que diremos, se os putos do futuro encontrarem uma tabela periódica de gatunos de alto quilate sem sequer um inventor reconhecido? Uma obra sem obreiro. Uma ciência sem cientista. Que desculpas daremos aos putos, se descobrirem que passou por aqui um ladrão intercontinental de obra feita, mas sem lápide? Não estaríamos a ser egoístas?!
Quer queiramos quer não, os gatunos também fizeram a sua parte na história. Lançaram o país na sarjeta - sim, mas, também, diga-se, içaram a nossa bandeira mundialmente até ao ápice do mastro. É normal que alguns não se sintam confortáveis com isso, mas é a mais pura verdade. São heróis de outros feitios. Não há como! Não adianta ficar nervoso. Quem não gosta se pica no olho.
Essa nova categoria de heróis é demasiadamente audaz. Brutalmente corajosa. Vejam que Marcelino dos Santos negou receber tratamento médico na Índia, enquanto o Chopstick foi capturado quando ia fazer digestão da ceia de Natal em Dubai. Vejam só, irmãos, a petulância dos novos personagens da nossa história! Não há dúvida que é preciso reconhecer a sua epopeia. A heroicidade estende-se também àqueles compatriotas que aceitaram carrões zero quilómetro de presente desses pilantras que nunca trabalharam. É muita coragem!
Quando inventamos esta cena de viragem e não-viragem, sabíamos o que nos esperava como povo e como nação. Sabíamos que viragem é virar do avesso, dar cambalhotas, fazer piruetas. Virou a moral, viraram os valores, viraram os conceitos, viraram os personagens, viraram as virtudes, viraram os heróis. Há uma nova espécie de heróis que também quer uma praça... a praça dos heróis da viragem... a praça dos gatunos de estimação.
É isso. Temos de assumir sem vergonha que esses "burlas" também são nossos "ERROIS". E isso não é para discutir. Se quiser ajudar, arranje-nos um terreno para construirmos uma nova cripta. Se for perto da Bê-Ó, melhor. Ou, então, ali na zona da EMATUM. Acabemos de uma vez por todas com essa assimetria de tratamento. Esse debate de que as enchentes no velório e a quantidade das lágrimas definem a heroicidade deve acabar. Ou estamos virados ou não estamos!
- Co'licença!