Hoje desadormeci com sequelas da comparência numa das badaladas casas de pasto da “cidade dos urinóis nas acácias” por ocasião comemorativa (e antecipada) de mais uma data da (in)dependência da Pérola do Índico. Um momento que serviu para rever amigos e botar a conversa em dia. O que acontece com as conclusões destas conversas é matéria restrita a cada um dos amigos.
Desta vez – na conversa - uma parte considerável dos presentes, e a propósito de uma discussão sobre as “dívidas ocultas”, tinha em comum o facto de terem participado numa sessão de formação - nos anos 2009/10 - sob o tema: “As partes Ocultas do Orçamento de Estado”. A ideia fundamental da formação consistia em dotar os participantes do necessário arcaboiço técnico para descortinar - no Orçamento de Estado (OE) - itens secretos (qualquer semelhança com “a nossa secreta” é mera coincidência) que à primeira vista não são detectáveis. Algo do tipo “gungu, apanhei-te” das saudosas brincadeiras de infância.
O principal resultado da formação foi o estabelecimento de uma brigada de activistas-observadores do OE determinada a detectar movimentos estranhos dentro e arredores do OE, uma vez que este havia passado a centralizar a divisão do Bolo Nacional e cada vez mais com (dis)sabor estrangeiro. E face a tudo o que se sabe sobre o dossier das “dívidas ocultas” - durante o debate - os membros desta brigada foram sumariamente vaiados acusados de falta de brio e entrega no exercício da magna e soberana tarefa. A discussão não desaguou em pancadaria graças ao elevado nível de urbanidade e a tradicional troca acalorada de ideias no seio da sociedade civil, uma característica que se recomenda.
Dentre os que vaiavam havia um estratega de assuntos de defesa orçamental que não poupou críticas ao desempenho da brigada. Não obstante, esclareceu que a brigada foi traída pela geografia e a proximidade geopolítica inter-institucional do local onde se localiza as instalações do OE. Argumentou que o facto do foco da terminologia do assunto da operação – “pescas-guerra-negócios-banco-mar”- encontrar-se dentro do perímetro do último anel de segurança do “Palácio dos Arcos”, o “Bunker” do OE, na baixa da capital do país, confundiu os códigos do sistema de controle montado pela brigada de activistas-observadores
Em sua defesa, a brigada justificou que tal proximidade é um facto e seria contornada. Assim não sucedeu porque a razão-mor foi a manifesta incompetência técnica e regimental que não permitiu agir e nem reagir, atendendo que i) os módulos do curso sobre as partes ocultas do OE não abarcaram matérias relacionadas com a detecção de movimentos ilegais, prévios e a posterior, e ii) nos termos da acusação da PGR, o destino íntimo dos valores de parte da dívida escapa a esfera da jurisdição da brigada.
Os motivos arrolados, entre vários de bradar aos copos e prontamente honrados pelo garçon ”… aqui nessa mesa de bar/…no bar todo o mundo é igual/Meu caso é mais um é banal/Mas preste atenção por favor/…/Quero tomar todas/Vou me embriagar/…/Se eu pegar no sono/Me deite no chão/…” que minha grande esperança deixou em pedaços minha soberania. Quando acabei de cantar todo o mundo, em deleite colérico, gritou uníssono: O que fazer, Reginando? Antes de responder o bar fechou.
No acerto das contas, sempre problemáticas, ficou no ar e por fonte reputada que um consórcio tripartido (Doadores, Governo e Sociedade Civil, incluindo o Sector Privado) decidiu e realizou um seminário de planificação de estratégias, concluindo que era necessário mais uma formação para acompanhar o actual contexto e as “ameaças” decorrentes dos propalados biliões do gás que engordarão o OE num futuro próximo.
Os Termos de Referência já foram elaborados, faltando a contratação de uma firma de consultoria a fim de ministrar um curso intensivo subordinado ao tema “As partes Íntimas do Orçamento de Estado” cuja finalidade é a formação de uma brigada de analistas-patrulha do OE. Esta brigada será devidamente apetrechada, incluindo dispositivos de gás lacrimogénio para rechaçar o olfacto dos apóstolos domésticos pelos biliões do gás do Bolo Nacional que terá cada vez menos (dis)sabor estrangeiro a partir de 2025.
PS (i): Oxalá a firma de consultoria não seja a ferragem da esquina e contratada por ajuste oculto de natureza íntima.
PS (ii): Se a brigada de analistas-patrulha não trouxer resultados é recomendável que o país aposte no que de melhor sabe fazer e comece a lucrar pelo mundo com a troca experiências e consultorias sobre “As Partes Carnudas do Orçamento de Estado”
Por razões privadas tenho ido com certa frequência a Matola. No início até que era agradável, pois ficava pouco tempo e voltava. Depois foi um tanto aborrecido. Fico mais tempo e com intervalos espaçosos entre dois compromissos. E para quebrar a rotina, no fim-de-semana passado, liguei a um amigo que se mudou para aquelas bandas já passa um mandato presidencial. Perguntei-o onde podia encontrar um café (não necessariamente um bar/tasca) e estar numa boa cavaqueira a debater o pulsar da Matola e do país. Resumindo: eu queria saber onde é que se debate a Matola e o país na Matola.
O meu interlocutor - um combatente da cidadania (aproveito reivindicar a inclusão desta categoria na tipologia dos combatentes em Moçambique) - denotando alguma estupefacção com a minha ignorância respondeu-me que na Matola estavam com uma outra abordagem: Os monólogos. Uma espécie de colóquios solitários. Repostei que era uma abordagem interessante. Desliguei e perguntei cá para meus botões: Agora o que faço? Enveredar pelo solilóquio? Apostar pelo bar mais próximo?
Antes da decisão fui reflectindo sobre a nova abordagem dos matolenses. Decidi começar pelo próprio termo: Monólogos. Lembro-me de duas ocasiões em que me confrontei com esta palavra. A primeira foi na escola secundária na aula de língua portuguesa. E a segunda foi através de uma peça de teatro, creio do Grupo de Teatro Mutumbela Gogo, cujo título era “ os Monólogos da Vagina”. A primeira hipótese, porque longínqua, descartei. A segunda apresentava sinais que se encaixavam com uma das bandeiras-estandarte da Matola: Os fóruns extra-conjuntural (ditos escondidinhos/hospedagem interina). Estes são os espaços de debate da Matola? afinal, tais monólogos são momentos de reflexões ou de flexões?
Animado pela cogitação e inspirando em Mário Soares, um falecido estadista português dos tempos contemporâneos, ponderei outras hipóteses. Soares, falando do balanço do seu percurso cívico-político (e dos companheiros) de luta pela democracia nos tempos da ditadura de Salazar, disse: “…Passados tantos anos, pode afirmar-se que raros, raríssimos, foram os que traíram. Muitos se acomodaram, cansados pela dureza da luta ou vergados às exigências do ganha-pão que…vem quase sempre acompanhado de abdicações”. Partindo de Soares, pensei: O meu ilustre amigo terá abdicado da sua luta? Se for verdade, terá sido pelo cansaço das exigências do exercício de cidadania? Foi nomeado um PCA de uma empresa pública? A opressão dos engarrafamentos e a sujeição de viver na principal camarata do país não estarão a perturbar os matolenses?
As interrogações continuaram. E porque ainda não me sentia confortável continuei a ponderar outras hipóteses. Debalde. Decidi ficar por onde estava e a sorver suculentas tangerinas. De repente e do nada, talvez impelido pelo suco das tangerinas que me agitou o cérebro, vêem-me a memória o saudoso poeta José Craveirinha, recentemente aniversariante. Na verdade, e a propósito dos monólogos dos matolenses, lembrei-me da pergunta “uma população que não fala não é um risco?” de um dos gomos (trechos) do poema “as saborosas tangerinas de Inhambane”. Ainda em transe filosófico, adicionalmente questiono: E os monólogos dos matolenses não são um risco?
Quando dei por mim já era um matolense: estava em pleno e total monólogo. Antes que me adoidasse pensei em ligar ao meu amigo. De certeza que depois de cada sessão solitária em algum momento existiria uma plenária. Duas ou mais insistências atendeu e disse que as plenárias também tinham outra abordagem: decorriam nas urnas e que a próxima plenária seria em meados de Outubro próximo. Ele terminou a chamada – não esperou que o remetente exercesse esse direito soberano – referindo que a última plenária foi no passado mês de Outubro de 2018.
Recuei no tempo e compulsei o relatório da dita última plenária da Matola. Depois de aturada leitura e avaliando os resultados e o ambiente sereno do pós-anúncio dos mesmos é caso para perguntar: Os monólogos dos matolenses constituem uma nova forma de participação política? Não tenho a resposta mas por enquanto e a quem interessar - antes que os monólogos sejam à escala nacional - o aviso à navegação já foi emitido.
Na portagem - de regresso a capital e em contramão com os matolenses - dei por findado o meu colóquio solitário, avocando e concluindo que o lema “A Matola Primeiro” já fazia algum sentido e a trazer resultados. Por enquanto e como ponto de partida: a Matola como pioneira em novas abordagens de intervenção nos processos eleitorais.
Elísio Macamo, sociólogo moçambicano, conta num dos seus livros que numa das aldeias da província de Gaza, uma senhora idosa perguntou – com ares de impaciência – quando é que a independência acabava tal era o estado de precariedade em que se viu metida – e já não vislumbrava saída alguma - desde 1975, o ano da independência do país. A senhora ainda perguntou sobre o que é feito e o impacto dos programas de combate a pobreza do Governo, ONGs e dos doadores em que ela é uma das potenciais beneficiárias. Esta última parte não consta no livro.
A pergunta da senhora idosa levou-me a um artigo publicado num dos jornais da praça. Nesse artigo eu contava que um certo amigo das lides do árduo combate contra a pobreza em Moçambique - cuja arena são as unidades hoteleiras e não as agrícolas – confessou o seu medo pela lista de presenças, vulgarmente tratada por lista dos participantes. O pavor é tal que ele já não assina a lista nas conferências em que participa ou até organiza e muito menos participa na sessão da foto de família. Arranja logo algum subterfúgio quando a lista chega às suas mãos quer à entrada, quer já aclimatado para mais uma espinhosa missão no combate a pobreza.
O amigo revelou que a fobia começou depois de um sonho tão real. O sonho Acontece em 2025, o último ano da AGENDA 2025, um documento orientador de longo prazo aprovado pela AR em 2003/4 nos tempos do presidente Chissano. Este documento traça as opções que Moçambique devia seguir rumo ao almejado desenvolvimento. Em outras palavras e no mínimo: um país sem pobreza.
Vamos ao sonho. Numa bela manhã de segunda-feira o país acordou com 11 pessoas assassinadas com requintes de malvadez, sendo uma em cada província, incluindo a Cidade de Maputo, e no hotel mais requintado de cada cidade capital. Foram 11 capitais, 11 hotéis, 11 mortes. Um horror. As vítimas – destacáveis combatentes do debate hoteleiro contra a pobreza – estavam penduradas de cabeça para baixo nos lastros dos sumptuosos candeeiros das principais salas de conferência de cada hotel. Na testa de cada uma das vítimas e na tela de cada sala estavam estampados em letras garrafais e com recurso ao sangue – ainda fresco - das vítimas: “R.B”.
O que significa R.B? Quem são? Porquê mataram? Quem são os que foram assassinados? São algumas das questões que dominaram o quotidiano e as reportagens da imprensa. A polícia entrou em acção no encalço dos presumíveis autores com as mesmas questões. Uma equipa composta por diversas especialidades foi formada e, em sete dias, devia apresentar um relatório pormenorizado sobre o crime. No oitavo dia o chefe da equipa de investigação anunciou os resultados numa concorrida conferência de imprensa.
Quais foram as conclusões? A polícia, depois de aturadas investigações nos locais de trabalho dos assassinados, descobriu que em todas as cópias dos relatórios dos seminários/workshops não se encontrava a última página ou um anexo, referente à relação dos nomes, endereços, contactos, local de trabalho e função do pessoal que participou no evento a que cada relatório fazia referência: era a famosa Lista de Participantes em falta.
Um outro dado revelado pela polícia foi um documento, designado confidencial, encontrado num dos hotéis onde ocorreram as mortes. Esse documento inclui uma lista longa, e por província, de nomes de pessoas a abater. A lista estava por ordem regressiva em relação ao número de vezes que cada um terá participado num seminário sobre o combate à pobreza ou que aqui desaguaria. Por coincidência, as 11 vítimas - destacados militantes da sociedade civil e da administração pública na luta contra a pobreza - eram as primeiras nas listas de cada província.
A polícia terminou a conferência de imprensa apelando a calma. E para evitar o pânico generalizado na sociedade e nas famílias dos visados na lista de cidadãos a abater, a polícia informou que não publicaria os nomes mas que começaria a tomar medidas para proteger os alistados. Sobre a sigla “R.B”, a polícia referiu ter apurado que a mesma significa: Revolta dos Beneficiários. O eterno grupo-alvo, incluindo a senhora idosa, do combate contra a pobreza. Uma agenda de barba branca e rija de entidades governamentais e não-governamentais, nacionais e internacionais.
-É por isso que eu tremo quando estou diante de uma lista de presenças para assinar. Temo constar da lista da Revolta dos Beneficiários que a polícia descobriu num dos hotéis. O pavor é tanto que chego a sonhar que tive acesso a lista completa. Com estas palavras o amigo terminou o relato da razão da sua fobia. Desde esse dia também passei a ter receio, optando algumas vezes em faltar aos eventos.
P.S: Conto isto porque depois de um longo interregno decidi matar as saudades e fui a um seminário na semana passada. Estava consciente que não iria assinar a lista de presenças e nem fazer parte da foto de família. Logo que cheguei ao local do evento notei que a metodologia continua a mesma. Fui interpelado pelo protocolo para assinar a lista. Felizmente não assinei, graças ao cumprimento efusivo de um outro participante. Não tive a mesma sorte quando já estava sentado. A moça – sempre escolhida a dedo - que me entregou a lista até estranhou a minha hesitação e o jeito trémulo ao assinar. E como sempre, o seminário abriu, decorreu e fechou dentro da normalidade e “gastromicamente” intercalado pelos nutritivos intervalos de café e almoço e no final, já noite, por um soberbo cocktail. Escuso dizer que o epílogo foi bem “à nossa e numa boa maneira”.
O processo da paz em Moçambique – em prelo mais um acordo até ao próximo mês de Agosto - é um dossiê que me trás à memória (i) um pronunciamento de Samora Machel, primeiro presidente da República de Moçambique, salvo erro na recepção do Corpo Diplomático por ocasião das festas de um fim de ano na década 80; e (ii) um depoimento de uma cidadã brasileira de cinquenta anos, em 2009, falando à media, nas celebrações do quinquagésimo aniversário de carreira de Roberto Carlos (RC), o rei da música brasileira.
Samora Machel, no seu discurso, debruçando sobre a guerra que assolava o país, disse: “com os Bandidos Armados só o diálogo das armas”. Uma mensagem - que em tempos de esperança pelo novo ano – não foi, certamente, das melhores para um povo que se encontrava exausto com o tipo de diálogo sentenciado. Felizmente, uns tempos depois, a abordagem de hostilização - que era mútua entre os antagonistas - foi alterada por uma de proximidade, resultando no Acordo Geral de Paz (AGP), em 1992, embora, desde então, o acordo passe por constante inquirição em cada pleito eleitoral.
A cidadã brasileira referiu que RC é parte da sua família havia quatro gerações. Ela contou que os pais começaram a namorar e casaram ao som da música de RC. No dia em que a mãe se preparava para ir ter o parto, ouvia, na rádio, RC. O mesmo aconteceu com ela: casou com o namorado e RC foi o “culpado” desde o início. Ela engravidou (não me recordo que tenha culpado o suspeito de sempre) e com a mãe, a caminho da maternidade - para o nascimento da filha e neta, respectivamente – no táxi que as levava, tocava RC. A depoente terminou, contando que nos cinquenta anos de carreira de RC, a neta - igualmente com ligações aos versos do rei – já era mãe e ela, uma felicíssima bisavó.
Em 2042, pressinto o depoimento de um casal de moçambicanos, numa reunião de alto nível das Nações Unidas por ocasião dos 50 anos do AGP (aproveite e confira qual será/seria a sua idade), em mais um esforço da Comunidade Internacional pela paz e reconciliação nacional no país. Um extracto:
“Somos moçambicanos e ambos com 67 anos. Nascemos em 1975, ano da independência do país, conquistada depois de 10 anos de guerra colonial (…). No dia 4 de Outubro de 1992, nasceu a nossa primeira filha. Nesta data foi assinado, aqui em Roma, e nesta mesma sala, o AGP que pós fim a uma guerra de 16 anos. E volvidos 22 anos, foi assinado o Acordo de Cessação de Hostilidades (o que se esperava que fosse o da Paz Efectiva) e na data, 5 de Setembro de 2014, nasceu o nosso primeiro neto. Passados cinco anos, em 2019, veio ao mundo o nosso segundo neto, exactamente no dia de mais um acordo, o da Paz Definitiva (…)”.
Agora, cada um de nós pode continuar a intervenção. Eu rezo para que o casal não tenha que continuar nos termos que se seguem:
“Caríssimos representantes dos povos do mundo. Depois da assinatura da Paz Definitiva (2019) foram, sucessivamente, assinados a Paz Verdadeira (2024), a Paz Real (2029), o AGP II (2034), a Paz Realmente Efectiva (2039) e hoje, 04 de Outubro de 2042, Bodas de Ouro do AGP I, no lugar da celebração, o início de mais uma acção para um outro acordo, o da Paz Realmente Definitiva, antes das eleições de 2044”
No “show” comemorativo das cinco décadas de carreira, no Estádio Maracanã, as quatro gerações da família da brasileira se encantaram ao ouvirem o rei – ao vivo e a cores – a cantar as músicas dos indeléveis momentos de amor, paz e felicidade. Infelizmente, os anos e as gerações da independência do país se resumem dentro do quadro da lógica do “diálogo das armas” e do intercalado e intricado “diálogo dos acordos de paz”. Este, nem por isso bélico, mas tão exausto quanto o primeiro.
O que tudo o que foi dito tem a ver com o título deste texto? É simples. Temo que o dossiê da paz em Moçambique – um dossiê inacabado (e por encadernar e arquivar) – se arraste, nas mesmas condições, por mais quatro ou mais gerações de moçambicanos. Por uma mudança – da actual situação sombria para uma de amor, paz e felicidade – urge (e apelo) a magia das canções de Roberto Carlos no processo de pacificação e reconciliação nacional.
A findar, realmente a findar, creio que um bom ponto de partida, “à nossa e numa boa maneira”, passa por colocar os antagonistas do eterno diálogo - um para o outro e olhos nos olhos - a cantarem o clássico de Roberto Carlos: Como é grande o meu amor por você!
Por: Nando Menete/Assis Macaé
Num texto recente (Por onde andas, Kalungano?) partilhei excertos de momentos interessantes de uma reunião com o poeta e político Marcelino dos Santos. Hoje, vou partilhar fragmentos de um dia - e outras circunstâncias – na companhia de José Craveirinha (ou Mário Vieira, José Cravo, JC, Abílio Cossa, Jesuíno Cravo e José G.Vetrinha), o nosso poeta-mor, falecido a 6 de Fevereiro de 2003. Um pequeno gesto para celebrar a data (28 de Maio de 2019) do seu nonagésimo sétimo aniversário natalício.
Para iniciar, uns parênteses: Sempre soube quem era Marcelino dos Santos, a pessoa e a figura pública. O mesmo não era com José Craveirinha: Via-o (pessoa) na cidade e não me passava pela cabeça ou não tinha a certeza de que era o nosso poeta-mor (figura pública).
Nos anos 80, ainda infanto-juvenil, tive os primeiros “contactos” com José Craveirinha em sessões espontâneas e caseiras de êxtase cultural. Nessas memoráveis sessões – composta por uma mescla de gerações de familiares e amigos - cada um mostrava o seu arcaboiço cultural e até científico. A declamação de poemas emblemáticos de José Craveirinha e de outros poetas, antigos e actuais da altura, era o auge das sessões e que nos deixava aos prantos, quiçá pelos dias cinzentos da época. À luz do tempo, e então em vésperas da democracia dos nossos dias, essas sessões foram, para os participantes, os primeiros acordes do associativismo e exercício livre de cidadania. E Craveirinha fez parte dessa aurora, um processo que – até hoje - se vai consolidando, entre sucessos e retrocessos.
Era frequente avista-lo – sempre de boina preta- no bairro da Mafalala quando a malta da “Zona dos Bombeiros” – a que eu pertencia – se deslocava ao famoso bairro para afazeres recreativos (jogar e assistir futebol) e turísticos (assistir sessões de canto, música e dança). A boina preta – sua marca - fez parte da indumentária identitária da “zona dos bombeiros”. Suspeito que tenha sido uma imitação do “style” de Craveirinha.
Outras vezes, no trajecto de ida e volta à Mafalala, cruzávamos com Craveirinha, no portão ou nas redondezas de sua casa, na zona da Munhuana. Desses momentos, retenho o seu ar urbano e contemplativo tal “caçador de clicks” para os seus poemas. Tenho dito, em brincadeira, que eu vi poemas de Craveirinha a serem feitos. Se não, pelo menos presenciei a safra dos ingredientes.
Um outro local de avistamento era no Grupo Desportivo de Maputo, seu clube de coração. Neste clube, e como todos sabem, calculo, Craveirinha, em tempos idos, foi um atleta ecléctico e até à morte adepto ferrenho. Ele era uma presença assídua nas instalações do Desportivo quer a acompanhar treinos e competições, quer em singelas cavaqueiras. Certo dia – o que inspira o título deste texto - realizou-se um torneio interno da escola de minibásquete do Desportivo. A minha equipa (Bola ao Cesto) foi uma das finalistas. Os jogos decorriam de manhã e a tarde e José Craveirinha presenciou-os desde a fase de grupos até a final.
Quando terminou o Jogo da final, Craveirinha veio ter comigo. Puxou-me para um canto e lá fez as habituais perguntas de adultos. Após o aturado inquérito passou para a sessão de conselhos, na verdade onde ele queria chegar. Entre outras coisas, recordo que me aconselhou a não só “chutar” - eu só apostava em lançamentos à distância e certeiros (risos) - mas que devia procurar e soltar mais a bola, aproximar e “brigar feio” no garrafão. Estava a ouvir Craveirinha pela milésima primeira vez. As outras mil foram nas sessões culturais dos nossos primeiros “contactos”.
“Faça isso, rapaz!”. Assim despediu-me Craveirinha. Depois de um “Tá bom, tio!” fui a casa e num ápice - já noite - voltei para assistir ao jogo dos seniores. Era o habitual duelo dos eternos rivais e vizinhos: Desportivo vs Maxaquene. À entrada do pavilhão do Desportivo, pelo portão lateral direito e no compasso para ver alguém conhecido ou localizar um bom lugar disponível, deparo-me com uma mão levantada. Era o meu “conselheiro” a sinalizar que tinha um para mim. José Craveirinha estava sentado na dobra da bancada e mais acima. Aproximei e ele afastou-se, abrindo uma brecha entre ele e um seu amigo. Sentei-me, bem apertadinho, entre os dois e pouco depois a partida iniciou.
O jogo não corria bem para o Desportivo e uma vaga de apupos era direccionada ao treinador, António Azevedo. A dada altura, o amigo de José Craveirinha levanta-se e toca a chamar nomes ao treinador, terminando com um sonoro “seu careca!”. Em seguida, o ilustre amigo de Craveirinha - enquanto procurava encaixar devidamente a bunda na bancada, tal era a enchente no pavilhão - veio-lhe à consciência, perdida por alguns instantes, que José Craveirinha (sempre sereno e tranquilo) também era careca.
Ultrapassado o tempo suficiente de espera, já composto e comportado, o amigo de Craveirinha desculpou-se e desprendeu um melódico: “Oh! Zé Craveirinha, tu és diferente. És um careca intelectual!”. No momento caiu-me a ficha. Afinal o meu “conselheiro” era nada mais nada menos que José João Craveirinha, o poeta-mor e nacionalista moçambicano.
Anos depois, numa entrevista, a propósito da sua “galardoação” com o Prémio Camões (1991), o mais prestigiante da literatura em língua portuguesa, Craveirinha lamentou que o valor monetário do prémio encontrou-lhe a “dobrar a esquina”, aludindo, creio, à idade que lhe fugia.
Infelizmente, nunca mais estive “cara-a-cara” com o poeta-mor e meu “conselheiro”, José Craveirinha. Acho que pesou o facto de eu ter passado para o outro lado da fronteira (Maxaquene) poucos dias depois do jogo a que assistimos, sentados, na dobra da bancada - à direita - do Pavilhão do Desportivo. Saravá, Mário Vieira!
Vêem-me essa pergunta a propósito da homenagem pelos 90 anos de Marcelino dos Santos - o nacionalista histórico e temido membro fundador da FRELIMO - celebrados no passado dia 20 de Maio de 2019. Na verdade, não sei bem a razão da pergunta. Também não sei a razão por que escrevo estas linhas. Estarei a homenageá-lo? Não sei!
Na esteira da homenagem, e através dos diversos depoimentos e arquivos audiovisuais passados nos media, não me surpreende a dimensão da sua grandeza, mas fica sempre a interrogação ou a sede de se saber mais e cada vez mais sobre a trajectória política e cultural de Kalungano, Lilinho Micaia ou simplesmente Marcelino dos Santos.
Venho contando em privado os “meus encontros” com Marcelino dos Santos. Agora, tomo este momento para partilhar parte de um desses encontros como meu singelo contributo pelas suas “noventas rosas vermelhas”, palavras de Óscar Monteiro, membro sénior da FRELIMO, no tributo que presta ao seu mentor, que acabo de ler no Jornal Notícias do dia natalício de Kalungano, e que utilizo, como empréstimo, com sua suposta permissão.
Em meados de Dezembro de 2006 fui convocado para participar numa reunião na sede do Partido FRELIMO com Marcelino dos Santos. A convocatória era estendida a toda a equipe de trabalho que coordenou a realização em finais de Outubro de 2006 do primeiro evento do Fórum Social Moçambicano (FSMoç), um espaço alternativo e crítico de debate público organizado por um grupo de organizações da sociedade civil moçambicana. Confesso que, na altura, alguma carga de medo tomou conta de nós e que só foi aliviada por conta da proximidade com o pessoal encarregue de interagir connosco na preparação da reunião cuja agenda seria em torno do evento que organizámos.
Para efeitos do presente texto, não me irei debruçar sobre o conteúdo dessa reunião (ficará para uma outra ocasião, assim como outros episódios dos “meus encontros” com Marcelino dos Santos). Vou apenas partilhar algumas situações ou momentos especiais que me marcaram, nessa reunião. Adianto já que foi muito interessante e que houve direito, por solicitação de Marcelino, a uma segunda rodada, uma semana depois, e a um convite para o pessoal do FSMoç capacitar/interagir com os quadros do partido, no âmbito dos propósitos do FSMoç, que para Marcelino dos Santos eram os mesmos que guiaram a fundação da FRELIMO e que conduziram a luta de libertação nacional.
No dia programado (finais de Dezembro de 2006) e à hora marcada (9h) lá estávamos na sede da Frelimo. Qualquer coisa como estar na toca do lobo. Do lado da comitiva da Frelimo, chefiada por Marcelino dos Santos, prontificava o ora deputado Edson Macuacua, João Bias e Florentino Kassotche para citar alguns dos integrantes. Coube-me, na qualidade de Secretário Executivo, encabeçar a equipe que representava a estrutura de coordenação para a realização do FSMoç, e assinalo, também, as presenças de Ahmad Suca, Thomas Selemane e Silvestre Baessa, companheiros com notável contributo na elevação da cidadania no país.
Marcelino dos Santos tinha na mesa os documentos do FSMoç, destacando o Plano Nacional. Este estava excessivamente sublinhado e com diversas cores e anotações, evidenciando que o tinha lido, como também que vinha “chimoco”. Para a nossa satisfação, Marcelino começa a reunião elogiando a qualidade dos documentos, admitindo que não via há bom tempo algo parecido na pérola do Índico, o que o deixava contente, serenando os nossos corações e receios. Ele ainda perguntou se tínhamos lido os estatutos da fundação da FRELIMO, pois os nossos documentos tinham o mesmo espírito e que ele vislumbrava possíveis pontes que se podiam construir entre o Partido FRELIMO e o FSMoç.
A reunião foi repetidamente interrompida por intervalos de telefonemas de e para Marcelino dos Santos, desculpando-se em seguida pelos transtornos. Por volta das 12 horas e quando pensávamos que se estava prestes a encerrar, mais um telefonema, e Marcelino termina a chamada dizendo ao interlocutor que só teria tempo no final da tarde, pois a reunião que estava a orientar se estenderia até às 16/17 horas. Felizmente não foi um susto para nós, pois conhecíamos a fama das demoradas reuniões da FRELIMO e com a particularidade de entrarem zangados e saírem sempre coesos e unidos.
Num dos telefonemas, apercebemo-nos de que era o Presidente Guebuza ou alguém próximo a confirmar um encontro. Depois de desligar, Marcelino comentou que estava desapontado ou preocupado com a hostilização do Governo de Guebuza ao de Chissano, celebrizada na famosa expressão “combate ao deixa-andar”. Referiu, ainda, que tinha pedido um encontro, creio do Partido, pois era tempo para se pôr termo à situação que até embaraçava o Partido FRELIMO. Um tempinho depois, como se constatou: o combate ao deixa-andar saiu do discurso governamental.
A dado momento, debruçando-se sobre a reacção do povo por qualquer insatisfação, Marcelino recordou as escaramuças na então Cidade de Lourenço Marques, hoje Maputo, depois da assinatura dos Acordos de Lusaka, em Setembro de 1974, entre a FRELIMO e o Governo Português, que selou o processo para a independência de Moçambique. Ele contou que alguns colonos foram assassinados com alguma barbárie numa revolta popular em resposta a atitudes de alguns sectores coloniais que estavam em contramão. Aproveitei a ocasião e informei que tinha um livro (que foi) escrito nesse período e que retravava, em parte, o que ele acabara de contar. Nesse instante, Marcelino olhou-me e franziu a testa como quem estivesse a desconfiar da veracidade do que tinha acabado de ouvir.
Em outro momento, Marcelino dos Santos anotou que acabava de ler o livro “Memórias em Voo Rasante” de Jacinto Veloso, outro membro sénior da FRELIMO, lançado em 2006, e por coincidência eu e o Silvestre Baessa acrescentámos que também o tínhamos lido, por sinal, o mesmo exemplar. Da leitura do livro ou da conversa sobre o mesmo com Jacinto Veloso, Marcelino disse - embora os dois políticos fossem companheiros de jornadas há várias décadas - que se apercebeu de que um dos livros que influenciou o General Veloso foi o “Processo Histórico” de Juan Clemente Zamora que, também para ele, é uma referência e contribuiu grandemente para a sua consciência política.
Ainda sobre o livro de Zamora, Marcelino lamentou que nunca tenha visto o original e que apenas tenha lido fotocópias. Voltei a aproveitar o momento, e disse-lhe que eu tinha o original. Desta vez, interrompendo o gole de água, Marcelino dos Santos abriu mais os olhos, direccionando-me com intensidade. Em seguida, apontou-me o seu dedo indicador, e com o tom de voz mais ríspido e denotando um iminente sorriso exigiu veementemente: Eu quero ver a sua biblioteca!
Cá por mim, pensei: Agora é que me lixei. Desde então, fiquei com uma promessa oculta de passar-lhe o original do “Processo Histórico” de Juan Zamora, e eu ficar com uma fotocópia!
Por onde andas, Kalungano? Agora sei a razão da pergunta. De certeza que não lhe procuro para saldar a minha promessa oculta ou mostrar-lhe a minha biblioteca, mas apenas para beber mais do teu “Processo Histórico”. Acredito que não seja só do meu interesse. É um Imperativo Nacional.
Saravá, Lilinho Micaia!