Por Jorge Ferrão & José Castiano
O comboio que anunciara a sua morte apitou duas vezes. Nestas ingentes palavras, comecemos pelo último apito. Oficialmente, o anúncio da sua hospitalização dava conta de que “não se tratava de Covid-19”. Não obstante, sobraram dúvidas sobre o seu estado de saúde. Ainda repercutia, em nossas recordações recentes, a odisseia do vizinho Presidente Magufuli. Para a nossa geração, nós, que crescemos contemplando a parte final dos nacionalismos e pós-independências, sabemos, como parte de uma cartilha, que nunca se anunciam os mal-estares e muito menos as patologias das lideranças. A rigor, quando se trata dos progenitores ou Heróis das Lutas de Libertação.
Entre mitos ou tabus, recebemos duas heranças, se não forem mais, a saber: a das teorias de conspiração socialista, onde Kremlin ou Havana, escondiam os internamentos dos seus líderes. Era comum inventar artefactos, duplos, ou sósias, para os substituírem em ocasiões públicas. A segunda herança é da própria tradição africana: não se devia saber que o Rei padecia, nem que sofria, como qualquer humano, de outras fraquezas. Nem mesmo depois da morte. Quem já visitou Emankhosini, lugar onde foram enterrados os Reis Zulus (menos o Shaka Zulu, é claro), saberá como aquele lugar foi mantido em segredo pelos Nkhosis. Devia manter-se o mito de uma existência ancestral.
A hospitalização de Kaunda foi um pré-anúncio da morte anunciada. Com Magufuli poderíamos estar distraídos, mas com um homem de 96 anos, nem tanto. Talvez a sua longevidade se devesse a vida austera que levava, pois, não bebia álcool, não fumava, vinha de uma família religiosa, fora professor, levava a sua guitarra por todo o lado onde ia (incluindo em visita oficial ao Kremlin) e, com ela ou sem ela, sempre cantava.
E aqui passamos à segunda parte da dupla-morte anunciada. Em 2013, nas cerimónias fúnebres de Mandela, seu companheiro na luta contra o apartheid, mantemos vivas aquelas imagens da correria desenfreada que iniciou, pelo meio da sala, para discursar e provar que estava em forma. Depois, puxou pelos pulmões entoou a música-predilecta (quiçá uma das suas inúmeras composições), tiyende pamodzi na n’tima umodzi, esse hino nacionalista que apelava à união de todos num só coração. Nesta cerimónia fúnebre, porém, já poucos o seguiram. Era o prenúncio da sua caminhada para o final, como o último nacionalista que pregou uma era inteira de libertação, afirmação e identidade, na África Austral.
Como último dos memoráveis nacionalistas africanos, Kaunda, tinha algo em particular que o distinguia. O simbolismo com que se fazia presente em cerimónias oficiais e eventos públicos, que tipificava as glórias das lutas. Os outros líderes seguiam os mesmos exemplos. Mobutu Sese Sekou levava uma bengala-talismã, talhada de leão e outros animais; Kamuzu Banda trazia sempre consigo um rabo-de-leão; até mesmo o pacífico mwalimu Nyerere, do Ujamaa, trazia sempre uma “bengala” da sabedoria; o Mandela inaugurou as “madibas”; Samora Machel especulávamos sobre o seu relógio “mágico”. No entanto, a semelhança e, ao mesmo tempo, a diferença do Kaunda estava no seu talismã, um lenço branco, muito branco, com o qual acenava às pessoas em qualquer momento.
Que simbolismo arrastava aquele lenço branco no meio de uma tradição africana de leões, leopardos, elefantes, etc.? Recordemos que o Shaka Zulu se sentava sempre em cima da pele de um leão que ele próprio matava, numa luta preparada, quase que anualmente. Quando visitamos o santuário dos Macheis, em Chókwè, o nosso guia-historiador do Museu deleita-se em contar a história da luta de Machel com um crocodilo que queria comer um dos bois que ele apascentava.
Na autobiografia épica de Kaunda, Zambia shall be Free, conta-se da aparição de um leão enorme, ao qual ele afugentou com a sua bicicleta. Apesar da época de heróis e de misticismos nacionalistas independentistas de pais-fundadores, por quê, este homem, escolheria um “lenço branco”, tão assim que se distinguia de todas as cores?
Neste infausto momento, nos assalta à memória a solidão que o acompanhou, antes desta partida, cantando e dançando, sozinho, o seu tiyende pamodzi. Alguns factos ajudam a entender o enigma do lenço branco. Basta, para o efeito, que nos recordemos das imagens das negociações dos Acordos de Lusaca, assinados entre o Governo Português e a cúpula da Frelimo, chefiada por Samora Machel, em 1974. Por trás destas negociações de Paz, estava Kaunda com seu lenço branco.
Um ano mais tarde, em 1975, voltamos a ver o mesmo lenço branco, mítico, quando mediava a questão Zimbabwe, encontrando-se com Ian Smith e John Voster nas conversações de Victoria Falls. Ali, naquela carruagem vetusta colocada, exactamente, numa fronteira imaginária, em cima do Rio Zambeze, ele não deixou de acenar. Respondia, com humildade, às maníacas exigências dos brancos Smith e Voster, que assumiam, ainda, dominar o território “branco” da Rodésia e os nacionalistas “negros” na parte zambiana. Antes, o mesmo Kaunda tentara mediar a união entre um Mugabe e um Joshua Nkomo, dois nacionalistas relutantes, para se unirem (em abono da verdade, deve dizer-se que Kaunda inclinava-se mais para o movimento chefiado por Joshua Nkomo, que pelo seu irmão Mugabe).
Em 1982, voltamos a ver o lenço branco, num encontro em Botswana, desta vez com o Pik Botha, da África do Sul, com Kaunda a exigir a libertação imediata de Nelson Mandela. E, nos tempos difíceis para todos nós, nos anos oitenta do FMI e suas políticas de “austeridade” e “Estado Mínimo” do Consenso de Washington, Kaunda voltaria a exibir o seu lenço branco, recusando as imposições tanto dos Estados Unidos como da União Soviética, acenando a sua porta aberta para a China. Aliás, esta posição já era antiga. Recorde-se que ele mandara os chineses construírem o Grande Projecto Zambia Rail Ways (há uma foto famosa em que Nyerere visita este empreendimento austral).
Quando Mandela saiu da prisão, viajou de imediato para Zâmbia para se encontrar com a direcção do ANC, no exílio, para eventuais acertos sobre as transições de poder e de reconciliação que se seguiriam; uma parte daqueles guerrilheiros tinha saído de Moçambique por causa dos Acordos de Incomáti. Lusaca e o iconoclasta Kaunda voltavam a ser a capital do lenço-branco.
Qual era a fonte desta convicção “nacionalista” de que as independências também se podem fazer em cima de um lenço branco? Kaunda lera e admirara-se profundamente por Gandhi, pela sua luta pacifista. De certa forma até tentou adaptar a non-violence politics às nossas condições afro-austrais de colonialismos e de regimes minoritários de racismos brancos, na África do Sul e da Rodésia. Hoje, como já foi especulado ontem, podemos dizer que ele queria agradar aos atenienses e aos troianos, ao mesmo tempo. O certo é que Kaunda soube estar e manter-se vivo até se tornar no último nacionalista a quem nós podemos mostrar à “geração da viragem”.
Como qualquer ser humano e líder, Kaunda, foi um homem com defeitos, controvérsias e outras nuances. Isso foi. Em plena onda multipartidarista, ele preferiu continuar a ver o seu partido independentista como o “único”. E pagou caro por isso: o Chiluba, perante a iminência do regresso de Kaunda às eleições e, talvez, temendo o triunfo do “histórico”, mandou instaurar um processo que o proibia de contestar as eleições por ser “estrangeiro” (nasceu de pais naturais de Niassalândia, Malawi). Uma certa teimosia, em defesa da “Soberania de Estado”, fez-lhe arrastar o povo por uma crise do cobre que, até hoje, a Zâmbia, ainda, tenta recuperar-se. Sofreu tentativas de assassinatos.
Mas uma coisa é certa: pelo facto do seu filho mais velho ter morrido de SIDA, continuou a sua luta nacionalista levantando o seu lenço branco contra esta doença e em prol dos zambianos. Com o seu lenço-branco foi a todos os funerais de seus antigos camaradas (Nyerere, Machel, Mandela, Mugabe, etc.) até que chegou a sua vez. Foi assim o último nacionalista de lenço-branco, o lenço da libertação e da paz negociada. Parte para a eternidade o percursor de Mandela, mas que soube fazer da sua Lusaca, a capital da paz.
KK continua um nome indefectível e embrenhado em nossas consciências, neste infausto momento. Não saberemos desvendar o que a eternidade o reserva. Todavia, temos a convicção de que KK perdurará como homem livre, insubmisso, fraternal e muito atento. Será sempre o fiel servo das memórias da sua revolução e dos movimentos revolucionários dos países vizinhos.
Com o lenço, este símbolo de Paz, Kaunda nos deixou três livros, nomeadamente The Riddle of Violence, A Humanist in Africa e Letter to my Children que agora vamos desfrutar com leituras e olhos diferentes. De uma coisa nós temos a certeza, a luta vai continuar!