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terça-feira, 29 junho 2021 08:24

Os caminhos da encruzilhada e da esperança

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Uma das escritoras por quem nutro empatia, Isabel Allende, escreveu um romance cujo título é “O meu país inventado”. Ela viajava entre a utopia de uma família vivendo com estabilidade e dignidade e, por analogia, num país cujo estado social e de direito, acesso à educação, saúde e providência social eram garantidos. Escusado seria dizer que este país respeitava a diversidade, o género e a distribuição equitativa dos benefícios.

 

Mas, isto é literatura e ficção pura. Da ficção à realidade, vai sempre uma considerável distância. Vem esta lembrança à propósito do livro “Aporias do Moçambique pós-colonial”, organizado pelos pesquisadores Boaventura Monjane e Regio Conrado.

 

A construção de Estados, sobretudo, daqueles oriundos de intensas lutas armadas de libertação nacional, como os de língua oficial portuguesa, não se reflecte em nenhuma narrativa de ficção. São realidades e vivências traumáticas muitas, e de exultantes glórias e epopeias outras. São utopias, sonhos, esperanças e liberdades.

 

Lendo este livro oportuno e, muito diligentemente, escrito por reputados pesquisadores e intelectuais, oriundos, quase todos, de uma geração do pós-independência, me recordei do “o meu país inventado”. UM grupo de pesquisadores, de quinze (15) mulheres e igual número de homens, reflecte bem uma longa caminhada. Um país que teve muitos avanços, liberdades e igualdades. Uma de utopias e sonho azul. Porém, que teve, analogamente,   Muito revezes, marcas sinuosas, momentos dilacerantes e episódios rocambolescos.

 

O colonialismo, esse sistema político socioeconômico e militar, visando usurpar, dominar e estabelecer regimes de desculturação e exploração económica, de rapina desenfreada e traumatizante, ao serviço do dominador, empobreceu a terra e os homens nesses territórios, na mesma proporção que enriqueceu que ele próprio enriqueceu. A humilhação da dignidade humana, a violência social do regime e a brutalidade da usurpação económica elevada à exaustão, cedo forjaram as premissas dialécticas conducentes a gestação da insubordinação e irreverência necessárias à promoção e desenvolvimento das lutas de libertação com matriz nacionalista.

 

Estas narrativas libertadoras, estenderam-se muito para além da proclamação das independências, porque o ciclo da libertação económica da terra e dos homens, naqueles territórios não se conclui com o içar das bandeiras das novas repúblicas.

 

As vicissitudes e experiências das lutas pela emancipação e desenvolvimento económico, pela afirmação da identidade nacional, na congregação dos ideais de nação e pela institucionalização de novas regras de convivência social e gestão dos novos poderes políticos, permaneceram como processos inacabados, de enorme complexidade e, nem sempre, predefinidos por lógicas e soluções reconciliatórias.

 

De entre a misoginia, sonhos e virgindades discursivas políticas, até às ambiguidades, assimetrias e desigualdades, foi construído, também, esse Moçambique pós-colonial. Inicialmente, República Popular, baseada em princípios socialistas, cedo foi forçada a reconverter-se numa República pluralista, multipartidária e de economia aberta, no pôr-do-sol da guerra fria.

 

As instituições globais promotoras do neoliberalismo, explorando as fragilidades socioeconômicas e institucionais e clivagens culturais e políticas locais, ditaram, com rigor, os vectores determinantes e modelos macroeconômicos de desenvolvimento, que serviram os seus próprios interesses, fragilizando as correntes do não-alinhamento, cooperação sul-sul e a permanente dependência socioeconômica e tecnológica.

 

Como resultado concertado das políticas globais, os países menos desenvolvidos, ricos em recursos naturais e capital humano, com fraco nível de desenvolvimento tecnológico e científico, frágeis instituições, com regimes sociais organizacionais em contramão com suas culturas, e modelos de desenvolvimento desajustados, tornam-se presas fáceis, por não assumirem a liderança de seus destinos nacionalistas endógenos, e por não controlarem os principais factores e seus conceitos de desenvolvimento tecnológico, humano e ambiental.

 

Como muitos outros países da periferia, acabamos por nos configurar como um Estado de descontinuidades dos processos políticos, económicos, sociais e culturais. As aporias, revelam, então, este palco temático dos descaminhos e incongruências, que inviabilizam consensos e retardam o passo do desenvolvimento harmonioso como nação e geram tensões, conflitos sociais de todas dimensões, motivados pelo capitalismo e seus “gendarmes” regionais e locais.

 

Moçambique é um país tipificado por curtos períodos de paz, e longos de guerras sanguinárias e violentas. A ausência de paz e a fragilidade dos processos de reconciliação nacional, não permitem o discorrer sistemático do desenvolvimento por todos almejado. Rever o período pós-independência, permite tipificar não só os factores endógenos, mas também identificar vectores determinantes de desenvolvimento como país, os quais precisamos convocar e problematizar, nessa proposta para uma nova nação moçambicana.

 

As aporias desta valiosa obra científica, mas que pode ser lida por diferentes camadas sociais, passam em revista os processos para o estabelecimento da unidade nacional; num contexto de múltiplo povos e de culturas heterógenas; a construção de um Estado moderno e seus fundamentos ideológicos e institucionais; os processos de participação popular; paz; segurança e democratização, com base nos modelos ocidentais, a natureza e politicas de desenvolvimento económico neoliberais e seus impactos estruturais de longo prazo.

 

Existe uma responsabilidade da academia em pensar, pesquisar, interpretar, de forma hermenêutica, o curso histórico das sociedades e países. Estabelecer as premissas e conclusões e comparar modelos e processos, são parte integrante dessa responsabilidade construtiva, ética, cognitiva e política. Só conhecendo o passado, mais remoto e menos distante, poderemos contextualizar os momentos históricos, obtendo conclusões que auxiliem na reversão dos cenários, operação de mudanças estruturais profundas, para que a democracia e os modelos sociais de desenvolvimento resultem em desenvolvimento social, inclusão, tolerância, democracia e bem-estar social.

 

Uma das narrativa e facetas que este livro aprofunda, como muita propriedade, é a consumação, após a independência nacional, do projecto de reenquadramento identitária. O projecto do Homem novo. Um processo altamente violento, pelo despreparo e pela imposição ideológica imposta, para além de estar envolto em diversas arbitrariedades, excessos e abusos do poder. Moçambique se confrontava entre a independência confinada a valores culturais enraizados na comunidade etnolinguística, ou numa transição para um projecto prescritivo em nova identidade, com história, valores e visão nacionalista comuns. Matar a tribo para construir à nação.

 

Como concluem os autores, Moçambique passou por estas propostas romantizadas, pois, nunca teve o substrato e, muito menos, os consensos sobre a unidade nacional, consciência colectiva e nem as bases onde estas teorias poderiam assentar e serem legimitizadas. Importante notar que essa concepção hegemónica de unidade nacional ainda prevalece no discurso oficial que ignora, a todo o custo, a importância que as crenças e percepções individuais ou de grupo, exercerem sobre o seu meio social. Não admira que os conflitos, também tenham por base essa ausência de um sentido de pertença, afinidades identitárias ou outras. A tábua de salvação tem sido, portanto, uma busca por afinidades com projectos ideológicos ou até religiosos que prometem alternativas ao status quo.

 

Sempre que se debate o país, fica latente o desconforto em aprofundar o conceito de unidade nacional. Moçambique seria uma só nação, ou de várias, de acordo com a praxis social ou pelo ideal político instituído e pela psedo e homogénea unidade assumida? A vasta gama de bibliografia consultada, de cariz político ideológico, revela essa forma inconsequente, e pouco substantiva, de tipificar essa unidade nacional. Mas, não existem dúvidas de que o país caminhou para uma situação de hegemonia neoliberal, de conveniência pluralista, que tem o partido no poder como o maestro. Essa unidade nacional tem sido substituída por um discurso sobre democracia que se associa a paz e a estabilidade política.

 

Um dos eixos estruturantes que o livro disserta, de forma envolvente, é sobre os dilemas que a estrutura e funcionamento da economia política e os modelos de desenvolvimento económico. E vale a pena revisitar e entender esse debate de forma sincera e construtiva. Nem sempre as escolhas económicas e os modelos de desenvolvimento, nas diferentes fases históricas, resultaram em vantagens e benefícios sociais. Aliás, durante alguns anos Moçambique, devemos lembrar, foi considerado caso de sucesso, com altas taxas de crescimento, porém, sem benefícios tangíveis para a maioria da população.

 

Os autores vão mais longe ao afirmar que Moçambique já tem evidencias, mais que suficientes, para se suicidar com os presentes modelos de desenvolvimento, que deixam uma grande maioria da população em permanente situação de exclusão, vulnerabilidade, e de subsistência, abaixo da linha de pobreza absoluta, agora destapadas com as calamidades e, mais recentemente, com o Covid-19. Portanto, os mecanismos de redistribuição da riqueza são deficientes, inadequados e desajustados a uma época de grande evolução tecnológica.

 

Realce deve ser dado ao debate sobre as políticas públicas e o planeamento familiar, que apesar de alguns resultados positivos, desde a sua formulação e implementação, continua carecendo de uma aderência mais acentuada e de uma cobertura mais representativa. O factor demográfico será de vital importância para os próximos anos. Planificar para uma população que cresce sem precedentes, já provou ser complexo e desajustado aos recursos existentes. Massificações da educação é um bom exemplo, destas disfunções.

 

Este livro tem de ser tido como um diálogo sincero sobre o nosso país, e não pode ter, e nem pretende ter, carácter acusatório. As várias contribuições apontam para uma confluência de crises, sendo a crise do projecto nacional, a mais visível.

 

Quarenta e seis (46) anos depois da independência, a agricultura de pequena escala parece ser o sector dominante no sector agrário. 67% da população sobrevive nessa faixa. Mesmo com o desenho de diferentes programas ao longo dos anos, o sector agrário está longe de alcançar a auto-suficiência alimentar, e a importação de alimentos parece longe de terminar.

 

José Jaime Macuane e Maria Paula Meneses, prefaciaram e pósfaciaram este livro e sumarizaram questões profundas. Enquanto reviam as teorias conceptuais sobre estas aporias do pós-independência, construíram cenários e os desafios que o país poderá enfrentar. Não são profecias. Somente encadeiam a obrigatoriedade de se revisitar a nossa história, questionar os processos e nunca ignorar à reconciliação nacional. Conhecer melhor para transformar, repensar e futurar a natureza de sociedade e, finalmente, a interculturalidade e o Estado nação moderno.

 

Vivemos num país que precisa de se reconciliar e colocar um ponto final aos sucessivos conflitos e guerras de destruição do tecido social e das infra-estruturas. Este livro, convenhamos um necessário empreendimento intelectual, propicia esta oportunidade de revisitar, de forma profunda, equidistante, descomprometida e sem preconceitos, esses pressupostos. Assim, cada um aceitara as suas culpas, erros e omissões, mas, mais importantes, partilhará as suas próprias contribuições para reerguer o país. Aglutinar o que mais nos une, e ultrapassar aquilo que mais nos divide. Parece ser tempo e oportunidade para colocar a juventude no debate das questões mais perplexas, aparentemente insanáveis, ou já assumidas como insolúveis. A resolução das nossas diferenças será feita sem visões unilineares, mas com propostas inclusivas e debates abertos e sinceros. (X)

 

Referências

 

  • Allende, Isabel. O meu país inventado. Porto: Porto Editora, 2020
  • Monjane, Boaventura & Conrado, Régio, eds. Aporias do Moçambique Pós-Colonial. Québec: Daraja Press, 2021.
  • Geffray, Christian. A causa das armas: antropologia da guerra contemporânea em Moçambique. Porto: Afrontamento, 1991.

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