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quarta-feira, 26 maio 2021 07:41

Dúvidas sobre a vigência de normas da Lei sobre o Segredo Estatal

Escrito por

Por João Nhampossa*

 

A problemática

 

O nº 1 do artigo 4 da Lei n.º 12/79, de 12 de Dezembro – Lei sobre o segredo Estatal que determina:

 

Art.4- Os documentos dividem-se em dois grupos:

 

1)      Documentos classificados:

 

São aqueles que contêm dados e informações de natureza militar, política, económica, comercial, científica, técnica ou qualquer outra cuja divulgação prejudique a segurança do Estado e do povo e a economia nacional.

 

A supracitada norma da Lei n.º 12/79, de 12 de Dezembro – Lei sobre o Segredo Estatal revela-se problemática, considerando que apresenta conceitos indeterminados quando refere que o regime jurídico do segredo estatal inclui documentos contendo dados e informações de natureza militar, política, económica comercial, científica, técnica ou qualquer outra cuja divulgação prejudique a segurança do Estado e do povo e a economia nacional. A indeterminação destes conceitos constitui um tipo de excepção ou limitação ao exercício dos direitos e liberdades fundamentais, com destaque para o exercício do direito à informação, que não estão previstos na Constituição da República.

 

Em bom rigor, a Lei sobre o segredo Estatal não define de forma clara e inequívoca o segredo do Estado, para além de não estabelecer os limites que permitem uma interpretação cristalina sobre o que deve ser considerado informações de natureza militar, política, económica comercial, científica, técnica ou qualquer outra cuja divulgação prejudique a segurança do Estado e do povo e a economia nacional e em que circunstâncias tais informações devem ser entendidas como classificadas. 

 

A maneira ambígua como está formulada esta disposição da Lei do Segredo Estatal cria um amplo espaço para que o exercício do direito à informação, consagrado no artigo 48 da Constituição da República, seja limitada por questões subjetivas ou com recurso a arbitrariedades de quem detém informação de interesse público, que não constitua segredo do Estado ou matéria classificada. É por isso, que há muita dificuldade de disponibilização de informação de interesse público no País, sobretudo, nos chamados “casos quentes” que envolve altos dirigentes, alegadamente por se tratar de “Segredo de Estado”, cujos conceitos integradores são obscuros e ininteligíveis.

 

O legislador constitucional definiu clara e expressamente em que medida pode, dentro do quadro constitucional em vigor, haver restrições dos direitos, liberdades e garantias fundamentais, proibindo, contudo, a manifestação de excepções ou limitações indeterminadas ou ininteligíveis.

 

O n.º 2 do artigo 56 da Constituição da República estabelece que: “O exercício dos direitos e liberdades pode ser limitado em razão da salvaguarda de outros direitos ou interesses protegidos pela Constituição.” Por sua vez, determina o n.º 3 do mesmo artigo que: “A lei só pode limitar os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição.” Destas disposições, é fácil perceber, por um lado, que nem toda a informação de natureza militar, política, económica comercial, científica, técnica ou qualquer outra cuja divulgação prejudique a segurança do Estado e do povo e a economia nacional, é relevante para a salvaguarda de outros direitos ou interesses protegidos pela Constituição. Por outro lado, é manifesto o afastamento da possibilidade de uma lei ordinária limitar os direitos e liberdades fundamentais nos termos não expressamente previstos na Constituição, conforme pretende a Lei sobre o Segredo Estatal, em violação ao princípio do constitucionalismo relativamente às restrições dos direitos, liberdades e garantias.

 

A ratio legis da norma contida nº 1 do 4 da Lei sobre o Segredo Estatal não é inteligível sob a perspectiva da salvaguarda da garantia do direito à informação, o que confirma a sua natureza de norma contrária à Constituição. É, pois, incontestável que a Constituição alarga o espaço da garantia de defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos contra restrições ilimitadas ou indeterminadas.

 

De acordo com o disposto no nº 4 do artigo 2 da Constituição “as normas constitucionais prevalecem sobre todas as restantes normas do ordenamento jurídico”, o que significa que nenhuma norma ordinária se sobrepõe à Constituição de tal sorte que quaisquer limitações aos direitos e liberdades fundamentais, como é o caso da norma da Lei sobre segredo Estatal aqui em ataque, devem estar em conformidade à Constituição.

 

Da vigência do n.º 1 do artigo 4 da Lei sobre o Segredo Estatal

 

Considerando que a norma contida no n.º 1 do artigo 4 da Lei sobre o Segredo Estatal está em contradição com a Constituição da República, conforme supra demonstrado, logo, dúvidas não restam de que a referida norma ordinária foi revogado por inconstitucionalidade formal superveniente, pelo menos desde a aprovação e entrada em vigor da Constituição de 2004 que dispunha o seguinte no seu artigo 305: “A legislação anterior, no que não for contrária à Constituição, mantêm-se em vigor até que seja modificada ou revogada.” Ora, o teor desta norma persiste nos mesmos termos no artigo 312 da na Lei n.º 1/2018, de 12 de Junho, Lei de Revisão Pontual da Constituição da República.

 

Da interpretação, a contrário sensu, da norma constitucional revogatória em referência, depreende-se que está revogada toda a legislação anterior, no que for contrária à Constituição, ou seja, deixa, imediatamente, de estar em vigor a legislação anterior no que contrária a Constituição desde a vigência desta lei suprema no ordenamento jurídico moçambicano. Trata-se, pois, de manifesta revogação de toda a legislação contrária à Constituição, o que não carece de declaração de revogação por qualquer entidade ou órgão para que deixe de produzir efeitos jurídicos.

 

Mesmo que se não aceitasse se tratar de caso de revogação, na mesma se está perante de uma situação de cessação de vigência da norma contida no n.º 1 do artigo 4 da Lei sobre o segredo Estatal por caducidade, na medida em que o seu tempo limite de vigência coincidiu com a aprovação e entrada em vigor da Constituição de 2004 que no seu artigo 305 determinava que: “A legislação anterior, no que não for contrária à Constituição, mantêm-se em vigor até que seja modificada ou revogada.” Isto porque a referida norma da Lei do Segredo Estatal é contrária ao disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 56 da Constituição da República, por estar inquinada de inconstitucionalidade formal superveniente. A superveniência da Constituição de 2004 ditou a cessação da vigência da norma da Lei do Segredo Estatal aqui em sindicância à luz do citado artigo 305 da mesma cujo teor mantém-se no artigo 312 da Constituição em vigor.

 

Curiosa e estranhamente, o Conselho Constitucional refere, expressamente, nas páginas 16 e 17 do seu Acórdão n.º 5/CC/2020, de 30 de Março referente ao Processo n.º 08/CC/2018 (Fiscalização sucessiva e abstrata da constitucionalidade da norma da Lei do Segredo Estatal em análise) “que a evolução histórica do Estado moçambicano leva à necessidade de uma reflexão para a revisão da Lei sobre o Segredo Estatal, com vista a adequá-lo ao espírito e valores de um Estado de Direito Democrático que Moçambique abraçou e materializa.” Com esta posição, dúvidas não restam de que o n.º1 do artigo 4 da Lei sobre o Segredo Estatal está em desconformidade com a Constituição da República. Pelo que, não se percebe com que base o Conselho Constitucional decidiu não declarar a inconstitucionalidade da norma em causa ou pelo menos, se pronunciar sobre a cessação da vigência da mesma tendo em conta a sua revogação ou caducidade com a entrada em vigor da Constituição de 2004.

 

O mais estranho ainda é o facto do Conselho Constitucional, numa situação similar de revogação ou caducidade por inconstitucionalidade formal superveniente de uma lei ordinária, concretamente a norma contida no artigo 1 da Lei n.º 8/91, de 18 de Julho, ter confirmado que esta norma cessou a sua vigência por caducidade ao ser desconforme com a Constituição de 2004, precisamente por interpretação e aplicação do seu artigo 305 supra citado. (Vide Acórdão n.º 07/CC/2017, de 31 de Outubro, relativo ao Processo n.º02/CC/2017).

 

Concluindo

 

No caso em análise, está-se perante uma situação de incoerente e forçada vigência da norma contida no nº 1 do artigo 4 da Lei sobre o Segredo Estatal, o que representa um esforço desnecessário e juridicamente falacioso do Estado, em não garantir o acesso à informação com base em restrições infundadas, ou seja, sem cobertura constitucional. Claro está que os n.ºs 2 e 3 do artigo 56 da Constituição da República afastaram a possibilidade de os direitos e liberdades fundamentais, como é o caso do direito à informação, poderem ser limitados de forma tácita e por conceitos indeterminados ou ininteligíveis conforme é o caso em apreço.

 

Está-se, pois, perante uma situação de violação dos princípios da certeza e segurança jurídica próprio do Estado de Direito que caracteriza Moçambique.

 

No entanto, apesar de serem convincentes os fundamentos de que a norma em ataque não mais vigora na ordem jurídica moçambicana, a mesma tem sido aplicada, o que põe em causa o processo de consolidação do Estado de Direito Democrático, baseado no respeito e garantia dos direitos e liberdades fundamentais.

 

*Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

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