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Temo que o próximo mandato inicie e o PR (Presidente da República) não ache ninguém para os cargos a nomear e muito menos para ser governado. A razão? É muito simples: em Moçambique ninguém conta que o outro e semelhante esteja vivo. Basta que um e um outro não se avistem para que se considerem parte das estatísticas de “lhanguene” (cemitério). E sobre tal - na passada quadra festiva - tirei as dúvidas atinentes, sobrando o receio de que em 2020 o país não volte a dar certo, simplesmente – e mais uma vez – porque não conta contigo. Já explico. 

 

No ano passado fui alertado - por um amigo da terra na diáspora - a propósito do jeito dos moçambicanos cumprimentarem-se, mormente depois de algum tempo sem contacto. Ele contara que todos os anos que passa as suas férias no país e sempre que se cruza com um amigo este mal esconde o espanto, expelindo o típico: “Hei, estás vivo, pah!?”. No papo e quando arrolado o nome de um amigo comum, um outro e sonoro assombro: “Hei, esse tipo tá vivo!? Pensei que já tivesse bazado”. E por ai avante, passando pela minuciosa revista dos que verdadeiramente partiram. E não prolongo, pois acredito que o estimado eleitor bem conhece o assunto e certamente é parte deste modo de estar à moçambicana.

 

Na última quadra festiva - um bom momento de encontros ocasionais entre conhecidos que não se comunicam há algum tempo – fiquei muito atento a este fenómeno e a conclusão foi aterradora: é geral (e preocupante) a estupefacção mútua pelo outro estar “Vivinho da Silva”. E dito isto, abro uns parênteses: perdoe o “teu amigo de peito, teu camarada” que bem acomodado no poder não se tenha lembrado de ti no último mandato. E já agora: faço votos de que na quadra festiva tenha estado “ocasionalmente” com ele. E para os que pensam em altos voos no próximo mandato - e em jeito de atenção a chamada - vai um aviso à navegação: só resta uma semana para a tomada de posse do PR.  

 

Voltando ao amigo que me alertara para este fenómeno, perguntei-o - na altura - como era pelas terras do Ocidente (o dito mundo desenvolvido), local onde ele assentara arraiais. Fiquei a saber que por aquelas bandas e nas mesmas circunstâncias – encontros ocasionais depois de um certo interregno - os avistados questionam-se mais ou menos nos seguintes termos: “Então, esses projectos?”. Um detalhe, mas substancial e quiçá a nota que diferencia o ritmo do desenvolvimento entre o grosso do Ocidente e o país.

 

Será por aqui que o país - há mais de quatro décadas - não dá certo? Não sei, mas seja como for é recomendável e urge que se inverta a prática dos cumprimentos à moda moçambicana. Assim - e nesta década que se inicia – vai uma dica: quando o estimado leitor encontrar alguém que não se avistam há algum tempo não se admire que ele esteja vivo. Pelo contrário. Pergunte: “Então, esses projectos?”

 

Tenho fé e acredito piamente que deste modo o estimado leitor estará a contribuir para que este país - a partir de 2020 - não seja mais um dejecto à maneira das caracterizações de Donald Trump, PR norte-americano, mas um projecto e sério de desenvolvimento de e para vivos. Quem sabe se assim e contigo (bem vivo, naturalmente) o país possa dar certo.

 

terça-feira, 07 janeiro 2020 12:41

Vamos dançando makharra

Entrei no facbook e dei-me com um companheiro de inúmeros e longos caminhos. Dos tempos em que, cheios de sangue jovem nas veias, marchávamos e corríamos e rastejávamos  como lagartos humanos, com AKM  a tiracolo, sem munições, no Centro de Preparação Político-Militar de Boane, treinando para defender a Pátria. Decorria o ano de 1975, antes da Independência Nacional de Moçambique, e tudo aquilo era por demais fascinante. Éramos um conglomerado de mancebos provenientes de todo o país, que estávamos alí levados pela euforia da liberdade.

 

Olhei para a fotografia e reconnheci o Felisberto Laíce, um machope de Quissico. Mais jovem do que há dez anos, quando estávamos juntos no jornal Notícias, e tratei imediatamente de lhe enviar uma mensagem que entrava na contramão dos demais. Ou seja, enquanto os outros amigos do “face” lhe elogiavam pela jovialidade estampada no rosto, eu disse-lhe mais ou menos assim,  machope é machope, nunca vai deixar de sê-lo, mesmo que viva no bairro mais luxuosa da cidade. Aliás, ele – o machope – ferve em pouca água, e daqui para aqui, pode baixar as calças e mostrar-te o trazeiro. 

 

Laíce não demorou. Devolveu-me os trocos e respondeu-me com um “kha kha kha” dizendo assim, o machope é um gentlman, meu caro, não é como o  bitonga como tu,  que vive de coco e farinha de mandioca. Pior do que isso, dizia ainda o meu amigo, vende o melhor peixe da faina, e leva a péssima qualidade para casa, o bitonga é o pior avarento do nosso planeta.

 

No fundo era a forma que encontrei – depois de um longo tempo sem qualquer contacto entre nós -  para saudar o meu velho camarada, agora reformado, depois de ter percorrido quilómetros e quilómetros com a AKM, e depois com uma máquina fotográfica sempre pronta a disparar e poetizar com a imagem. Sempre brincamos assim, nesta plataforma da sátira, usando e abusando da fraternidade que nos une. E isso tudo adentra-nos a alma e protege-nos de todos os abalos.

 

Felisberto Laíce é também minha fonte de inspiração. Qualquer paródia que eu escreva sobre a timbila e o mwenje e o n´tona (óleo de mafurra), é como se dedicasse a ele. De todos os machopes que eu conheço, ele é o mais próximo de mim. Chamo-o de Betinho, com muito carinho, como se fosse o farol imprescindível para me indicar as veredas imprevisíveis de toda a Zavala. Por vezes imagino nós os dois no palco, o meu amigo a tocar a mbila, e eu a cantar com voz roufenha, delirando aos movimetos da matchatchulani (bailarina) dançando na minha memória.

 

Lembro-me que no dia do meu aniversário,  aos sessenta, há dois anos, Betinho ligou para mim e disse assim, meu caro, já estamos em dacadência! E eu disse assim para ele, meu caro, nós estamos em ascensão para o último patamar. E enquanto não chega o dia do último suspiro, vamos dançando makharra e aproveita, irmão,  o tempo para tirar muitas fotografias com a máquina da tua alma.

terça-feira, 07 janeiro 2020 08:00

Reinventar o caminho do (a) Fama!

O anúncio do regresso do Fama Show nas telas da TV moçambicana caiu que nem um gole de um bom vinho, aliás água, na garganta de quem esteve horas a fio no deserto de Sahara. É de domínio público a importância que este programa teve na projecção de inúmeros talentos na área musical na última década, sendo, por isso, escusado arrolar, aqui, todas as estrelas forjadas através deste programa. Basta, em bom rigor, lembrar que artistas como Valdemiro José, Júlia Duarte, Cláudio Ismael, Nuno Abdul e tantos outros perfilaram no Fama. Por razões que pessoalmente desconheço, provavelmente económicas, a dado momento o programa parou, sumiu do mapa. Surgiram então outros formatos de projecção de talentos, não limitados à música e muito menos a gente praticamente adulta, como são os casos do show de talentos, turma tudo bom, desafio total e fantástico.

 

Todas estas marcas representa (ra) m a “rampa” que todo o aspirante ao estrelato necessita (va) para projectar-se na arena cultural e especialmente musical. Constituíram o ponto de roptura entre a era do playback e a exibição do verdadeiro potencial vocal do concorrente e, em alguns casos, mais realística e abrilhantada por bandas musicais. De facto, um enorme salto qualitativo foi dado. Novas e arrojadas vozes surgiram; há uma expansão, ainda tímida, do alcance da nossa música no mercado regional (SADC); há uma crescente valorização dos ritmos genuinamente moçambicanos internamente. Contudo, o dilema da mesmice criativa prevalece. Nenhum destes programas consegue espevitar a capacidade de criação de novas tendências musicais. Sem prejuízo do que já se conseguiu inventar (Pandza, Dzukuta e Bondoro, por exemplo), há quem defenda que andamos a reboque de produtores de outros quadrantes. E não é menos verdade. Basta lembrar o Afro House, o Kuduro, a Kizomba, entre outros ritmos, para concluirmos que os outros criam e nós, finalmente, imitamos. E imitamos com uma tal mestria que, diga-se, chegamos a suplantar os legítimos criadores.

 

O álibi para esta preguiça tem sido a universalidade da cultura. Mas ela é, também, dinâmica e sujeita a mutações. É preciso inovara partir da criação, pois esta, segundo Gary Graham et al. (2004), é o epicentro da atividade artística. Três saídas podem ajudar a romper com o paradigma estacionário que limita as possibilidades de um salto ainda maior da nossa indústria fonográfica alimentada pelos já referidos concursos, a saber: (i) A mudança do formato de concorrência, passando a integrar não apenas o artista/vocalista, mas também um produtor como participante; (ii) A inclusão do artista, do produtor e de uma banda residente no rol dos concorrentes; (iii) o envolvimento, na equipa de concorrentes, não apenas do artista, do produtor e da banda, mas também de um aspirante a empresário do concorrente, que funcionaria como uma espécie de “vote raiser”, um mobilizador do voto em prol do grupo. Portanto, seria uma espécie de migração de um concurso confinado na performance de um vocalista interpretador do que já existe para uma abordagem centrada na cadeia de valores de uma verdadeira indústria cultural inovadora.

 

As propostas aqui apresentadas permitiriam que, a cada gala, o produtor se concentrasse no lançamento de um novo produto musical a ser interpretado pelo artista/vocalista do grupo, cujos votos são mobilizados pelo aspirante a empresário cultural. Mais do que premiar a melhor performance dos vocalistas, seriam incluídos, nos critérios de avaliação, a inovação rítmica. No final, a par dos tradicionais prémios monetários, lançar-se-ia um álbum com as melhores músicas do programa. Isto acarretaria um investimento acrescido, mas seria um passo importante para se minimizar o enorme défice de criação artístico-musical que ainda nos caracteriza. É certo que estas fórmulas, inconclusivas, dependem de outros factores para a sua efectiva materialização, como são os casos das condições técnico-tecnológicas e a sustentabilidade financeira. Mas podem ser adaptadas mediante as circunstâncias, sem descurar, no mínimo, da introdução, no concurso, da figura do produtor. Dir-se-á, por outro lado, que em outras realidades a fórmula da imitação mostra-se funcional. De facto, seria necessário aprofundar os pontos divergentes que permitem que, socorrendo-se da mesma lógica, os outros inovem e nós não. Mas se a importação dos formatos tradicionalmente usados nestes concursos revela-se insuficiente para resolver o problema da inovação fonográfica no país, está, então, na hora de pensar na nossa própria forma de projectar talentos!

segunda-feira, 06 janeiro 2020 06:51

Se Chang não fosse teimoso

PERGUNTA: se Chang for condenado pelo tribunal de Nova Iorque, será descontado da pena o tempo que ele ficou preso na África do Sul? Ou seja, se for condenado a 40 anos de prisão lá, poderá cumprir apenas 39, tendo em conta que estes vizinhos xenófobos enclausuraram-no durante um ano?

 

Se os entendidos na matéria disserem que SIM, eu paro por aqui. Mas, se a resposta for NEGATIVA, então posso dizer que o "chinês" se ferrou. Diria que o tipo fez-se de Chico-esperto e deu-se mal. Diria que gastou um ano da sua vida numa cela sem nenhum "valor" para a sua equação de vida. Se tiver uma pena de 40 anos em Brooklin, vai acabar por cumprir literalmente 41.

 

Diria que, se não fosse excesso de malandrice naquela cabeça, quando foi capturado no ano passado, devia ter dito logo: "levem-me aos 'esteitis' agora antes de perdermos tempo aqui". O gajo chegava lá, apanhava uns pequenos e suaves chambocos na bunda (próprios de gente xique), confessava umas coisinhas, condenavam o gajo a uns quarenta aninhos de "djela" e, prontos, acabava com isso.

 

Mas não, preferiu ouvir ideias dos seus amigos que estão fora (por enquanto) e fez-se de teimoso. Ora eu não quero ir à Nova Iorque, ora eu tenho diabetes, ora eu tenho uma casa perto da fronteira, ora meus colegas de cela fumam suruma, ora eu sou inocente, ora eu quero voltar a Moçambique, ora a mana Veró já relaxou minha imunidade, ora eu tenho advogados nervosos, ora eu vou morrer, ora isto, ora aquilo. Preferiu acreditar no tão desejado e prometido resgate. Mais uma vez preferiu acreditar na malandrice. Resultado: perdeu um ano inteiro a brincar nos calabouços.

 

Seria caso para dizer que por causa de maus conselhos e casmurrice, o homem perdeu 365 dias a brincar com o corrimão duma "djela-hauze" pra cima e pra baixo sem nenhum benefício. Preferiu ficar numa cadeia a gastar dinheiro e tempo. Perdeu um ano de vida numa prisão que não conta para nada.

 

E para piorar, o Chang poderá entrar nos Estados Unidos numa altura em que todo o americano estará nervoso por causa da situação no Golfo. Onde Trump estará preocupado em fabricar bombas e granadas. Onde todos estarão preocupados com terroristas do que com bandidinhos do terceiro mundo. Com um pouco de azar, o iluminado Juíz pode confundir o seu processo com o de um terrorista iraniano e aplicá-lo uma prisão de 300 anos em Guantánamo, com uma bacela de cinco minutos de cadeira eléctrica por semana.

 

E o ministro sul-africano está muito calmo e sem pressa em decidir. Até parece uma indirecta.

 

- Co'licença!

quinta-feira, 02 janeiro 2020 06:11

Não se preocupem com o Matias!

Gostaríamos de pedir às autoridades que investigam crimes para, desta vez, não investigarem o atentado contra o jornalista Matias de Jesus Júnior. Não vale a pena a maçada. Não adianta. Não queremos que vocês entrem de novo naquela brincadeira de cachorro que procura o seu próprio rabo. Sabemos de antemão que os culpados são "dez-conhecidos" que estão a monte. Um "monte" maior que o Monte Binga, mas que ninguém vê.

 

Vocês têm muito que fazer. Se desta vez o Matias foi agredido por "aproveitadores" que querem "criar agitação" para "desviar a atenção", como disse o chefe, então, ninguém precisa se preocupar com este casmurro! Não vale a pena abrirem processos, gastarem papel, "tonner" e Credelec por causa de um gajo teimoso. Já entendemos a mensagem: Matias quis levar porrada. Ele sabia que seria raptado e espancado, mas mesmo assim insistiu em falar de corrupção num país limpinho como este sem corrupto nenhum. Insistiu em escrever sobre as dívidas ocultas num país de dirigentes sérios como este onde ninguém deve nada.

 

Não se preocupem com esse conspirador e mercenário da mão externa! Deve ter sido vítima da sua própria mão externa. Deve ter sido um embaixador qualquer que enviou os seus capangas para cobrarem uma dívida de uma entrevista ou reportagem que ele não publicou.

 

Não é necessário enviarem agentes da SERNIC para investigarem o caso do Matias, esse traidor! Enviem esses agentes ao centro do país e a Cabo Delgado. Fazem muita falta lá. Se não estivessem ocupados esse tempo todo a investigar casos de malta Cistac, Salema, Machava, Macuane, Pondeca, Amurane, Matavele, etecetera, hoje não teríamos Nhongos nem insurgentes a matarem e a destruírem. Os nossos agentes já teriam exterminado todos esses energúmenos em fracção de segundos. Mas não, andamos a ocupar os nossos profissionais a investigarem esquadrões da morte que todos nós sabemos que não existem. Esquadrões da morte é um delírio colectivo. Estamos a ver fantasmas onde não existem. O que existe aqui são polícias de operações especiais que, as vezes (mas, as vezes mesmo) fazem trabalhos extra-especiais e ultra-secretos. Só isso.

 

Queríamos também pedir para que aqueles nossos melhores ANAListas de plantão não perdessem tempo de antena com este caso que, na verdade, nem chega a ser caso. É sabido que o puto Matias queria ganhar protagonismo de fim de ano para ser falado. Pagou uns brutamontes no Estrela para lhe espancarem os braços com tacos de baseball e golf. É bem provável até que os tacos sejam do próprio Matias. Ou, então, deve ter sido um grupo de três agiotas que ele está a dever que o emboscaram ali no Alto-Maé.

 

Os nossos ANAListas estão "bizis" em tomar banhos com folhas de "nangas" de Mambone e do Vale do Zambeze, engomar casacos e comprar celulares de alta tecnologia para não perderem chamadas. Então, não queremos gastar o seu precioso tempo com ANÁLises de tentativas de rapto de miúdos teimosos. Esse é tempo de colher os frutos das ANÁLises do mandato passado. Tempo de saber se valeu a pena raspar a língua.

 

Dizia, não percam tempo com esse rapaz! Até porque é bem possível que o Matias tenha escorregado ao tentar fazer aquele passo brusco de "Jerusalema". É possível! Também é preciso aferir se o gajo não sofre de depressão ou desilusão amorosa a ponto de querer tirar a própria vida com recurso a auto-espancamento.

 

Agora - cá entre nós - ó Matias, seu beirense casmurro e confuso! Faça-nos o favor de recuperar logo! Não vamos pedir a Deus que te dê força, coragem, nem inteligência. Isso tu tens de sobra. Rogamos apenas que Deus derrame em ti muita saúde para continuares a servir o teu país. Este país precisa de ti. O povo precisa de ti. Não desista! Quando o inimigo age assim é porque estamos muito perto e no bom caminho. A revolução continua. "Tamu-juntu", irmão! Feliz ano novo!

 

- Co'licença!

terça-feira, 31 dezembro 2019 09:33

Flores lindas em vão *

A criança estava internada numa enfermaria de adultos, onde reinava um mutismo quase absoluto, para disfarçar a dor das chagas providas da carne e do espírito. Porém o cheiro característico dos remédios e da putrefação das feridas, tinha outra direcção, triunfava por sobre o silêncio de um lugar que ninguém cobiça. Aquilo é uma desolação. Leva-nos a uma profunda comoção ao ponto de não podermos conter as lágrimas, que vão transformar o nosso rosto em albufeira. Mas esta é a realidade, ou uma parte das consequências de uma guerra estúpida que durou dezasseis, calcinando tudo até à categoria dos escombros humanos.

 

São homens e mulheres amontoados no mesmo sítio, como entulho sem esperança. Gemeram até a exaustão apelando a intervenção dos médicos, e os médicos não cabem em si mesmos, e como todas as forças esvairam-se, já não se ouvem os gritos. Muitos estão deitados de tal maneira que a sua respiração é imperceptível. Não se sabe se estão mortos ou continuam vivos. O pior é que aqui dentro a temperatura é muito elecada. O ar está por demais abafado, e o pessoal da saúde já não tem como fingir o cansaço.

 

Decorre o ano de 1985, e por estas alturas pode-se dizer que se está no auge da matança, onde não se poupam nem as mulheres grávidas, nem as crianças. E uma dessas vítimas é esta menina que está aqui, engessada nas duas pernas, dos quadris até aos pés. Os braços estão livres, permitindo, assim, que as mãos possam enxotar as moscas que sobrevoam o rosto amadurecido pela dor e pelo medo.

 

Não tenho coragem de me aproximar desta criatura que olha para mim com ternura. Mas ela magnetiza-me naquele coraçãozinho. Então, naquelas circunstâncias em que estou envolvido como numa teia amorosa, não tenha outra escolha senão partilhar, de alguma forma, o destino desta pequena paciente da guerra fraticida. Vou para junto dela.

 

- Senta aqui, tio!

 

Olho para o redor de mim e não vejo nenhum agente da saúde por ali. Sei que não é permitido sentar-se à cama dos doentes, mas eu não podia recusar o pedido de um anjo. E aquele gesto era mais que um pedido, era um apelo muito forte por demais. Capaz de me penetrar profundamente os sentimentos. Sentei-me, fazendo um esforço tremendo para conter as lágrimas que fermentavam dentro de mim, e antes que eu encontrasse uma palavra apropriada para articular, ela acariciou meu braço e disse assim, tio, estou a pedir bolacha e refresco.

 

- Está certo, volto já.

 

- Está bem, tio.

 

Lá fora podia chorar livremente, deixando as lágrimas deslizarem como dois fiapos de um rio dorido. Caminhei como um louco para a loja, de onde fui trazer as bolachas e o refresco. Todavia, antes passei pela estufa do Conselho Municipal de Inhambane e comprei umas flores para a minha amiga. Estou entre a alegria e a tristeza, movendo-me novamente como um louco, agora de volta ao Hospital.

 

Entrei de rompante na enfermaria e dirige-me directamente à cama da menina, onde ela já não estava.

 

- Senhor, a menina morreu.

 

- Aonde é que ela está?

 

Era uma pergunta sem sentido que eu fazia. Saí imediatamente com as flores na mão, e os doces, e as bolachas, sem saber o que fazer.

 

  • Tomara que Moçambique não volte jamais a situações do género