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terça-feira, 04 julho 2023 09:55

Indequê?... independência económica?

MoisesMabundaNova3333

A nossa lei-mãe plasma que a agricultura é a base do nosso desenvolvimento. Lá diz o número 1, do artigo 103: “Na República de Moçambique a agricultura é a base do desenvolvimento nacional.” Assim mesmo. E este arrazoado vem desde a primeira constituição da nossa República. Semanticamente, estamos a dizer que o nosso desenvolvimento tem como plataforma a agricultura, ie., que nos estamos a desenvolver tendo como munição, pilar ou artefacto, a agricultura. Este é o sentido literal, o conteúdo semântico desta colocação.

 

Há pelo menos duas questões que se põem aqui neste enunciado constitucional. A primeira é o pressuposto de que nos estamos a desenvolver. Estamo-nos a desenvolver mesmo? Se sim, a questão que emerge é: o que é afinal desenvolvimento? Todaro & Smith (2012 - 11 ed.) consideram que desenvolvimento deve ser visto como um processo multidimensional envolvendo grandes mudanças nas estruturas sociais, nas atitudes da população (dos indivíduos) e nas instituições nacionais, assim como uma aceleração no crescimento económico, na redução das desigualdades e desequilíbrios e na redução da pobreza. Na perspectiva destes importantes autores, vertida na sua fabulosa obra Economic for Development, desenvolvimento deve, na sua essência, representar toda a gama de mudanças através das quais todo um sistema social ultrapassou a fase de diversas necessidades básicas, de crescentes aspirações dos indivíduos e dos grupos sociais; e move-se de um paradigma de condições de vida percebidas e consideradas como insatisfatórias para uma situação e condições de vida material e espiritualmente melhores.

 

Se desenvolvimento é isto que estes autores formulam e defendem, o curioso é sabermos se a nossa sociedade já fez essa transição, de uma situação de condições de vida precárias para uma situação de melhores condições de vida material e espiritualmente. Certo é que a maioria da nossa população continua com condições precárias de vida, isto é, na pobreza; nalgum momento, falou-se de pobreza absoluta. A minha Chipada continua igual a si mesma décadas após décadas… quem não tem familiar que ajude de algures, está na pobreza extrema! Os indicadores de desenvolvimento humano das nações no mundo têm indicado a nossa pérola do Índico como estando nas posições abaixo, até dez de baixo para cima, desde os primórdios da nossa liberdade. Como é que dizemos, então, que estamos a desenvolver? Estamos a desenvolver ou estamos a subsistir, pelo menos a maioria do nosso povo? Se estamos em desenvolvimento, este está bastante lento.

 

A segunda questão decorrente da asserção de que a agricultura é base de desenvolvimento radica justamente em entender se a agricultura, particularmente a nossa, é mesmo base, plataforma, alicerce; se está a ser mesmo base de desenvolvimento! Para uma agricultura ser base de algum desenvolvimento, ela precisaria de ser uma agricultura comercial, largamente mecanizada, funcional e auto-sustentável; geradora de receitas substanciais capazes de alimentar a construção de infraestruturas diversas, unidades de produção e outros investimentos que propiciam o bem-estar, material e espiritualmente, aos moçambicanos. Convenhamos, ainda não chegamos à fase de a agricultura ser a base do desenvolvimento nacional, estamos muito longe!

 

Seria de bom tom reformular devidamente esta asserção. Semântica e objectivamente, é mais aceitável que a agricultura seja a base de subsistência dos moçambicanos, porquanto quase toda a população moçambicana pratica agricultura para o seu sustento, a tal agricultura familiar, conseguindo, diversas vezes, excedentes com base nos quais tenta satisfazer as suas outras necessidades básicas. É isto: nós ainda estamos numa agricultura de subsistência, não aquela que municie o desenvolvimento que muito almejamos.

 

Estamos a meter nas cabeças dos moçambicanos uma asserção que confunde.

 

Como confunde também o postulado de que agora estamos a lutar pela independência económica. Quase todos os anos, quando assinalamos a passagem de aniversário da nossa independência, a 25 de Junho, muitas personalidades da nossa praça, políticos, académicos e outras que tais, proclamam de boca cheia que agora, conseguida a política, estamos a prosseguir a independência económica.

 

O que será independência económica? Será uma nação conseguir satisfazer todas as suas necessidades materiais, ela por si só sem precisar de nada e nem de ninguém?!... Será isso, como se subsume semanticamente? Se está a significar isto - uma nação/economia não depender de nada, nem de ninguém -, a pergunta é: haverá tal nação/economia no planeta terra? Qual é? Muitas nações são autossuficientes em várias áreas, mas independentes!… o que pretendemos é uma economia capaz de prover as necessidades básicas dos moçambicanos. Básicas e depois as secundárias e depois as outras. É o que são as nações e economias pelo mundo. E a isso chamamos independência económica! Haverá uma economia independente?

 

Tentemos aprimorar as nossas aspirações e as respectivas formulações. Para não confundir as gerações vindouras e levá-los a lutarem por algo utópico!

 

ME Mabunda

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AlexandreChauqueNova

A  anunciada subida de dois degraus  da selecão nacional de futebol  no raking da FIFA, será outra forma de homenagear a memória de João de Sousa, homem inteiramente dedicado ao desporto  em toda a sua vida.

 

Passam três anos após a sua morte, e a primeira impressão que tenho dele, ao vê-lo,  é de que estamos perante uma figura frágil, pela forma como se move pisando a terra na vertical. Fica-nos a imagem de um taciturno. Um indivíduo com medo de avançar.  Ele tacteia o chão com a perna direita que baila no ar antes de assentar a leve planta do pé. Dança exitante uma dança desconhecida, em contraste com a voz límpida onde mora toda a sua alma.  Aliás, é com a voz timbrada que ele combate todas as vicissitudes, e leva os delírios  dos estádios à todos os cantos das nossas casas. E a todos os lugares.

 

Mas também com o nome de João, tinha poucas possibilidades de não luzir, e ele fez isso, como se as auroras lhe pertencessem. João de Sousa é um megafone elegido, através do qual  vamos receber todo o turbilhão dos campos de jogos, que agora ficam em silêncio após o último suspiro de uma estrela que nunca descansou. Mas se a vida é inesperada, então a própria morte também o é. Como agora, que ruíu para sempre esse pilar que sustentava na sua medida e peso, a plataforma do desporto nacional.

 

Os xiricos e os grundigs e os philips, derrubados pela tecnologia imparável, lembram-se com certeza, mesmo nas catacumbas, da voz do João de Sousa. Ele também vibrava como as multidões que foi alimentando durante tempos sem fim. Como se cada relato fosse o último, ou o primeiro, numa longa jornada de vida vibrante. A sua arma  era o microfone, funcionando como escafandro na penetração das profundezas do detalhe. E tudo o que ele fazia, passava primeiro pela filtração do fogo, como o ouro que se pretende puro.

 

É esta a figura que excedeu os limites, mostrando igualmente, a par do conhecimento profundo sobre o desporto, a sua desmedida paixão pela música. Pela boa música. E nunca será repetitivo dizer isso, pois, programas como “O fio da memória” e “História das Músicas”, trazem-nos uma pessoa culta e preocupada em renovar as memórias. Ele tinha medo que a juventude se perdesse, por não saber de onde vêm estes ventos todos que fundamentam a arte e a cultura. Não queria ser cúmplice da falta de testemunho.

 

Agora cabe-nos prestar vénia ao homem de convicções inabaláveis. Que se recusou a abandonar os mares, pois sem as águas, as guelras do João de Sousa deixariam de insuflar oxigénio para alma. Haveria a morte por dentro. É por isso que estava sempre alí, no centro social da Rádio Moçambique, onde se juntava aos amigos, aos velhos amigos, atraindo também a juventude que queria ser  como ele. Eram as pessoas e os jogadores e os amantes do desporto que lhe faziam viver, como se estivesse no marulhar dos grandes estádios, onde a sua voz de ouro misturava-se com o êxtase das multidões.

 

João de Sousa, um facebookista generoso, nunca se cansou de nos lembrar os feitos de grandes figuras do desporto e da cultura, e também da política. Esse gesto deixava-lhe com o coração cheio. Os likes e os comentários que recebia de inúmeros facebookistas  que lhe seguiam, eram o testemunnho de que a vida só é bela quando a partilhamos. E João fazia isso com alegria. Com entusiasmo. Com engajamento.  E continuou a fazê-lo mesmo estando no derradeiro desfiladeiro da vida, sem saber que estava.

 

Quando ele partiu, para sempre, era como se o estádio da Machava estivesse abarrotado no tempo dos Xiricos e dos Grundgs e dos Philips, aplaudindo um jogo que vai começar daqui a pouco. Os que não puderam ir estão em casa colados aos receptores, ansiosos, e no estúdio da Rádio Moçambique  está um locutor que chama: alô João de Sousa, alô João de Sousa! E o relator não consegue entrar em linha, há um problema de retorno. Alô João de Sousa, alô João de Sousa! Nada!

 

Os técnicos que estão no campo, e outros técnicos que estão na sede, entram em pânico porque não conseguem ouvir do outro lado a voz do João. Alô João de Sousa, alô João de Sousa! Também nada!

 

O  ambiente do público é que triunfa: hooooooooooo!!!! Hooooooooo! Mas João de Sousa, nada! Os técnicos insistem e....nada! E o jogo já decorre há meia hora, intenso, com a nossa selecção a ganhar por duas bolas a zero.

 

Alô João de Sousa, alô João de Sousa! Até que o relator, finalmente, passado o tempo de sofrimento, responde quando decorria o segundo tempo: Boa tarde estimados ouvintes! Faltam dez minutos para terminar a partida, Moçambique ganha por duas bolas a zero. O estádio está completamente cheio, com pessoas penduradas nos postes de iluminação. A nossa selecção está endiabrada. É indiscritível o que está a acontecer no Estádio da Machava......

 

Apesar de nos dizer que é indiscritível  o que está a acontecer, ele descreve tudo de forma detalhada, numa situação em que o tempo não lhe dá muito pano para mangas. O juiz apitou pela última vez, permitindo a que João de Sousa gritasse: termina a partida! Moçambique ganhou por três bolas a zero!

 

 E o guerreiro deixou as armas cá fora para quem as quiser aproveitar. O cheiro do João de Sousa impregna-nos como país, que ainda tem muitos golos por marcar. Ainda teremos muitos jogos por realizar, com a voz do João em “off” na memória. As músicas de “O fio da memória” e de “História das Músicas”, iremos cantá-las nas madrugadas em que já não seremos nós os ouvintes, mas o João que nos escutará no silêncio do pós-atmosfera. Também os pavilhões de básquetebol ressurgirão sem o João, lembrando as noites de glória. Era o João que gritava: sacôôôôôô!!!!!!!

governador zanda banco

quinta-feira, 29 junho 2023 08:12

Ecos da XVIII CASP!

Adelino Buqueeeee min

Teve lugar, nos dias 21, 22 e 23 de Junho de 2023, a XVIII Conferência Anual do Sector Privado, vulgarmente conhecida por CASP. Foi um momento ímpar de interacção entre o sector público e privado, pese embora o sector público me pareceu bastante “ocupado” com as agendas do sector que, obviamente, não contavam com esta conferência. Estranho, porém, o facto de o Presidente da República ter anunciado a disponibilidade dos seus Ministros e vice-Ministros, mas, provavelmente, não os tenha “consultado”. Mas é necessário consultá-los! Fica a pergunta.

 

Nesta reflexão, pretendo cingir-me nas intervenções do Presidente da CTA – Confederação das Associações Económicas de Moçambique e do Presidente da República. No seu discurso de abertura, o Presidente da CTA, Agostinho Zacarias Vuma conseguiu, na minha opinião, de forma educada e inteligente, diga-se, colocar ao Presidente da República os assuntos mais periclitantes que inquietam o sector privado e, como era de esperar, o Presidente da República, Filipe Jacinto Nyusi, reagiu às preocupações deste com bastante inteligência e sem nenhuma animosidade. Foi bom ouvir.

 

A XVIII CASP decorreu sob o lema “Transformação, Sustentabilidade e Inclusão para a Competitividade Industrial de Moçambique”, sendo que as grandes preocupações do sector privado apresentadas são:

 

1) Atraso no pagamento das dívidas de empreitadas e fornecimento de bens e serviços e, em 2022, representavam 46 mil milhões de meticais. Neste particular, o sector privado apresenta:

 

         a) Criação do limite máximo de acumulação dos atrasados;

         b) Que o Orçamento Geral do Estado inclua uma rubrica específica para pagamento de facturas em atraso.

 

2) Reembolso do IVA

        a) No ano de 2022, deram entrada um total de 904 processos de pedido de reembolso do IVA, totalizando 25,6 mil milhões de meticais;

        b) Foram somente autorizados 96 processos que, em termos de valores, representam 21%;

 

3) Inflação:

 

a) Um aspecto relacionado à inflação é o excesso de liquidez no sector bancário reportado pelo Banco de Moçambique que, desde Janeiro de 2022, se situa numa média de aproximadamente 60 mil milhões de Meticais. Aqui, o que nos preocupa é o facto deste excesso de liquidez não estar a fluir para as indústrias e, ao mesmo tempo, o Banco de Moçambique oferecer instrumentos de investimento aos bancos (bilhetes de tesouros e operações reversíveis), através dos quais estes fazem a rolagem da liquidez excessiva, preterindo assim a concessão de crédito à indústria, bem assim à economia no geral.”

 

b) “Adicionalmente, temos a destacar os níveis elevados das taxas de juros que desestimulam os investimentos, associados a uma postura de política monetária não consentânea com a facilitação de financiamento ao sector empresarial.”

 

c) Neste ponto, temos a assinalar o efeito nocivo do incremento dos coeficientes de reservas obrigatórias em magnitudes históricas (2800pb e 2850pb para moeda nacional e moeda estrangeira, respectivamente), num horizonte temporal de apenas cinco meses. Esta decisão torna as condições de liquidez bastante restritivas para o sector bancário, tanto do ponto de vista de quantidade assim como de preço, considerando que os bancos irão repassar este choque através do racionamento do crédito e incremento dos spreads.

 

4) “Assim, propomos que o Banco de Moçambique crie um sistema de compensação aos bancos comerciais que aplicassem a Prime rate com um spread negativo, previamente definido, para a agricultura e indústria, particularmente agroindústria. Isto poderia ser materializado através de uma taxa de reservas obrigatórias mais baixa para os bancos que investem na agricultura; e/ou dedução de reservas obrigatórias do crédito que for concedido para o sector da agroindústria baixa. A nossa proposta é que este quadro de política monetária possa ser implementado para se atingir uma taxa de juro de 8% a 12% para produção alimentar, processamento e industrialização. Os ganhos desta política poderiam ser altos, desde a redução da importação dos cerca de 2,1 mil milhões de dólares na Balança de pagamentos, redução da pressão cambial, o que contribuiria para controlar a inflação.”

 

5) Sobre a Carga Tributária:

 

a) Queremos pedir, aqui, ao Governo para colocar uma mão e travão ao que chamamos de “taxas e taxinhas”. Desde os municípios, Distritos, Províncias, Ministérios e instituições autónomas como institutos e tribunais, de forma simultânea, têm estado a introduzir novas taxas ou agravar as existentes. Este tipo de acção vai em contramão com o que VEXA, Senhor Presidente da República, decidiu fazer através do PAE.

 

  1. b) No que concerne à competitividade das empresas, os resultados do estudo recente da nossa CTA mostram que a carga tributária actual de 36.1% está acima da carga tributária da maior parte dos países em vias de desenvolvimento e, se ascender aos 43%, a lucratividade dos empreendimentos empresariais tornar-se-á nula, o que pode inviabilizar a actividade empresarial e industrial do sector privado.

 

  1. c) Diante desse cenário, propõe-se que o nosso Governo continue com o processo de revisão da política tributária, procurando ter em conta estes limites e, tendencialmente, reduzir a carga tributária sobre as empresas para promover a sua competitividade, particularmente a competitividade industrial. Para além disso, propomos uma integração e centralização da política tributária no Ministério da Economia e Finanças para garantir um maior controlo da política tributária e análise dos seus efeitos sobre o desempenho da indústria e da economia num todo.

 

Em reacção, o Presidente da República, Filipe Jacinto Nyusi, disse:

 

1) Criação de um grupo de trabalho para lidar com matérias de reforma que preocupam o sector privado;

 

2) Mapeamento das indústrias existentes em Moçambique e o que é necessário para a sua revitalização, incluindo a área do Açúcar. O Presidente da República indicou, por exemplo, a Mabor, que fabricava pneus e se questionou: “porque não pode produzir os pneus se já produziu antes!”;

 

3) Mostrou a sua total disponibilidade em trabalhar para reduzir e/ou acabar com tudo aquilo que impede o progresso do sector privado e da nossa economia em geral de progredir;

 

4) Recomendou os seus Ministros e vice-Ministros que, sem tabu e sem qualquer preconceito, tenham mente aberta para ouvir e anotar as preocupações do sector privado e disse:

 

5) Fiquem disponíveis nestes dias da CASP.

 

Bom, quer me parecer que vários Ministros e respectivos vice-Ministros desobedeceram ao Presidente da República neste quesito de disponibilidade para interagir com o sector privado, salvo o da Indústria e Comércio, talvez, por ser a ponte de diálogo.

 

Adelino Buque

quinta-feira, 29 junho 2023 06:48

A Vigia

Edna Juga

Cena 1

São 03:03 da madrugada de sábado. A encruzilhada entre duas grandes avenidas está visivelmente despida de vida humana. Um grupo de semáforos posicionados nos três cantos da encruzilhada seguem as suas mudanças sincrónicas, obedecendo a sequência alternada das cores Verde, Laranja e Vermelho. Como não houve movimento desde às 23 horas, jogam o renomado Nomes-Terras. O mais trapaceiro do grupo quando percebe que vai definitivamente perder, desvia a atenção da agremiação.

 

- “Ainda não percebo, por que temos que trabalhar 24 horas?”, pergunta incitando discussão.  - “Durante dois meses, há três meses, estávamos desempregados. Os automobilistas sobreviveram, muito bem, na nossa ausência. Agora que não há ninguém, estamos a trabalhar. Mesmo quando há, quem é que para? Estou com sono. Isso é um abuso!”, resmungou o trapaceiro.

 

A mais sensata dos semáforos, aproveitou a deixa para fazer comentários que encerrariam a conversa.

 

- “Ouçam colegas, o nosso digníssimo e exemplar colega está com sono!”, exclama enquanto organiza as próximas palavras. - “Onde ficou a sua vergonha?”, dispara a pergunta dando início a um ataque. - “Você só sabe reclamar. Primeiro, o seu sinal verde não funciona devido a lâmpada fundida. Segundo, onde está o montante que lhe deram para as lâmpadas? A sua indolência, obriga aos automobilistas, a tornarem-se vesgos para perceber, se devem ou não passar”, opugnou a sensata. Termina o seu discurso indagando, “Por que, até hoje, ainda não trocou a lâmpada? Diga lá?”

 

A conversa ia mudando de tom até que um deles principiou um quadro de alucinações. Era o único dentre o grupo que ainda não havia sido reabilitado. Tratava-se de um semáforo antigo que não recebera a devida atenção. As lâmpadas, começaram a piscar simultaneamente. Deu sinal de encaminhar-se para um estado de colapso, dizendo:

 

- “Estes têm direito de passar, mas aqueles devem esperar. Aqueles tem direito de passar, mas estes devem esperar. Não… Não… Não! Aqui reina a democracia. Todos devem passar, esperar e parar ao mesmo tempo. Se todos temos direitos e deveres, quem poderá confundir a democracia?! Ou… Ela, não existe?” – Cantarola algo inaudível, com intervalos de risos bobos, entrando em estado de avaria.

 

Os restantes colegas semáforos interrompem o jogo, assim como, a audição da discussão entre o trapaceiro e a sensata, para acudir-lho. A lua em sua faceta crescente notifica, aos astros, que a madrugada juvenil será longa. Está contente porque subtraíra o protagonismo da lua cheia. Mesmo com os 55% de crescimento, consegue medir o pulso dos acontecimentos que vigia. Em duas frases, exprime:

 

- “A minha homóloga lua cheia pensa que só ela pode causar infortúnios.”, afirma triunfante. - “Em breve, causarei impacto na vida de algumas almas imprecatadas!”, conclui ciente do seu poder nas propínquas ocorrências.

 

Cena 2

Num dos extremos da grande avenida, que intercepta a encruzilhada descrita, vem um automobilista jovem. Em seu plenos 23 anos, festejados há três semanas, goza de uma aparência física peculiar. A sua face está decorada de acne de grau três. Aos 19 anos, deu a sua batalha contra o acne por vencida. Passeou por vários consultórios de dermatologia, bem como, por vários dermatologistas. O último intento secreto da família é levar-lhe de férias para Singapura afim de experimentar uma nova técnica.

 

Os resultados publicados por uma instituição de pesquisa de dermatologia são incontestáveis. O nome do pesquisador foi recomendado para um dos mais conceituados prémios de pesquisa clínica. Há ainda uma esperança, no fundo do túnel, para a mãe agoniada com afiguração disforme do filho. Junta-se a isso, a sua altura de 1,94 cm, corcunda e escanifrado. Durante a escola primária passou despercebido entre os colegas. Sem embargo, aos catorze anos começou a distinguir deles pela altura e a corcunda. Aos 16 anos, iniciam as malezas da acne. No princípio apareceram alguns pontos negros, depois alguns pontos brancos. Na altura, a sua prima Mariamo, que ia sempre aos domingos almoçar com a família, não se cansava de dar conselhos. No primórdio, tentava espremer-lhe os pontos. Mais tarde, sugeriu usar saco de cebola… Depois, usar a pasta de dentes… A seguir, usar o carvão em pó… Posteriormente, usar mel, entre outras.

 

 A lista de tentativas era vasta. Numa das vezes, ousou presentear a sua roupa íntima inferior para esfregar nas zonas acometidas. Os seus bons desejos de prima preocupada eram reconhecidos. Mas, todos foram mal sucedidos. Na escola, o jovem era desajeitado para o desporto. Contudo, rapidamente encontrou o seu engenho. Era um génio no mundo da tecnologia e da informática. Conquistou amigos por ser imbatível em jogos de game. Navegava livremente no mundo virtual, onde era capaz de ter acesso gratuito aos produtos mais procurados, nos sites de pirataria digital. Com os seus 18 anos, já facturava quantias consideráveis com a prestação de serviços como freelancer. Mesmo com êxito, no pilar profissional, sentia-se profundamente descontente. A sua meta era mostrar-se imbatível para conquistar a atenção do pai. Este último, era um homem de negócios requisitado internacionalmente. Esquivava-se das suas responsabilidades paternais por múltiplas razões. Durante os raros diálogos que trocará com o filho, deixava sempre a mesma mensagem.

 

- “Miúdo, aprenda uma coisa! Todas as pessoas têm o seu preço. O que você deve aprender é a identificar quem elas são e quanto elas valem.”, dizia fitando directamente nos seus olhos. - “Com isso, saberá o quanto está disposto a pagar para que façam o que você quer.”, terminava o seu discurso solenemente.

 

Aos olhos do pai, aquele jovem era uma aberração. Não podia de forma alguma ser sangue do seu sangue. Nos momentos em que os ruídos da sua agitação profissional paravam, indagava-se, como ele um benquisto homem teria um representante indigno de chamar de filho. Ainda por cima, o primeiro herdeiro. Por sorte, o jovem era extremamente lúcido. Como regra familiar, decidiu inclui-lo nos negócios da família mas por insistência do que por iniciativa própria. O resultado foi prodigioso. As rendas da empresa aumentaram pelas condições inatas do jovem. Estava a compreender agora as flutuações da moeda internacional. Muitas vezes, fez alertas importantes que impediram de criar uma tragédia financeira para a empresa familiar. A experiência adquirida com advento da COVID-19, possibilitaram isolar o filho no mundo dos negócios através de encontros virtuais. Assim, podia utilizar o excelso de sua sagacidade, sem desferir o seu ego. O pai descobriu no filho, um excelente negociador. Mais ainda, estava sempre actualizado em muitos assuntos. Havia uma dose de inveja saudável quando o filho contrariava o pai em reuniões de alto nível. Todavia eram aceitáveis pelos seus desfechos sempre exitosos. Por outro lado, um mal vinha se instalando, com a entrada no mundo das substâncias psicotrópicas. A nova rede de amizade, o arrastaram para um mundo conhecido-desconhecido. Julgava que através dele podia se conectar com as pessoas que o cercavam.

 

Nos dois anos precedentes, ao evento que se aproxima, conheceu a Mônica numa festa de despedida de solteiros. A rapariga encenou um papel nada dignificante para a imagem das mulheres. Sendo única feminina, naquele evento, realizou o que lhe cabia no tempo esperado e ao montante  transacionado. As suas regras eram simples: banho, cheque, e o resto se apaga, no dia seguinte, com alguns copos de aguardente. Para o jovem, aquele encontro representou um marco na sua vida. No desflorar de sua ingenuidade ficou completamente apaixonado. Ou seja, assim o considerou, orientando-se com as suas pobres referências. Intimamente, estava ciente que nunca podia levar a Mônica para casa. Existiam muitos desafios na frente, como exemplo,  profissão, raça, religião, berço. Melhor dizendo, os valores e realidades eram dissonantes. Mesmo com esse contraste, arriscava-se a gastar quantias exorbitantes de dinheiro para ter alguns minutos da atenção, da Mônica, a vigarista.

 

Naquela hora da madrugada, muito agitado com o reencontro presencial, dirigia a 140 km/hora para ver-lha. Antes da jornada, entregou-se ao seu vício, para escamotear a timidez e mostrar que era homem, naquele encontro a dois. Ia atrasado devido a uma cerimônia fúnebre que tardou a desvincular-se. Uma série de mensagens foram enviadas para desculpar-se. Adicionalmente, endereça-lhe uma foto de dois presentes que levava consigo. Dentre eles, nada mais nada menos era o último iPhone lançado ao mercado. Esperava com isso, receber antecipadamente, um perdão pela demora.

 

No seu canto, a lua testemunhava toda a cena. Com um sorriso maroto, assobiou a um gato indeciso em continuar a sua exploração. O som do assobio, intima-o a terminar a sua exploração numa casa abandonada. Ao fim, sentou-se no muro, que o separava do passeio e a avenida, lambendo a cauda e parte do tronco com destreza. Subitamente, ao observar a lua, começou a miar em sotto voce, em andamento Lento. Dois minutos, mais tarde, ouviam-se as vozes de outros gatos, respondendo como um grupo coral, “Miau-Mi-Auuuu-Miau-Prr!”, em andamento Largo. Uma das residentes do prédio, ao lado da casa abandonada, no caminho de assossegar a sua bexiga importunada pela urina, desvia o percurso da casa de banho para a cozinha. Vai a correr buscar sal grosso. Com certa urgência, atira sal por todas as entradas da casa, sejam elas portas ou janelas. Depois de sentir-se aliviada, na casa de banho, fecha todas janelas e põe-se a rezar. Em posição de submissão, cresce-lhe um forte pressentimento, e roga:

 

- “Salve-nos, Senhor! Livre-nos, a nós, da adversidade!”, exclama com profunda incerteza de interferir no que quer, que se segue.

 

Cena 3

 Na avenida que faz cruzamento com a avenida da vêm um carro que funciona como táxi privado, que marcha 120 km/hora. O automobilista é tido como Sr. Jaime. Depois da aposentadoria precoce, numa instituição não governamental, tornou-se motorista privado. O novo emprego dava autonomia para gerir o seu próprio negócio. Tinha clientes fixos com regimes de viagens semanais dos seus domicílios aos postos de trabalho ou estabelecimentos específicos. A alma do seu negócio estava no bom cuidado do veículo e sua cortesia na comunicação. Sabia oferecer pronto conforto, respeito, privacidade, aos seus clientes. Só por isso recebia, largas gorjetas para além dos honorários planificados. A publicidade dos seus serviços era passada de cliente para cliente. Em conversação, com o seu irmão gémeo que às vezes o substituía, instruía:

 

- “Tomé, fale pouco! Pergunte somente o necessário para saber a localização do destino, se pretende ouvir alguma coisa e se está confortável. Se fizerem alguma pergunta, procure entender se conversa contigo, ou está diante de um solilóquio. Esses ricos, na maioria, querem ouvir apenas as suas vozes. Alguns são narcisistas. Outros, são vítimas deles mesmos… Não obstante, o mal é o mesmo. As suas almas estão tão carregadas, que qualquer um sem vencilhos, serve de confidente. Com eles, a estratégia é tornar o ouvido ábdito para evitar ataduras mórbidas.”

 

O Sr. Jaime era conhecido no seu bairro como um indivíduo cerimonioso, tradicionalista e um tanto misterioso. A imoralidade não fazia parte da sua conduta. Quem necessita-se de sua ajuda devia meditar sobre os seus objectivos antes de contactar-lhe. Caso contrário, receberia uma aula sobre o significado do tempo. Num desses dias, um velho arengueiro do bairro, aflito por não ter ninguém com quem compartilhar às últimas notícias, arriscou-se a confidenciar sobre o aborto da filha da Sra. Joaquina. Em resposta, em uma das línguas nativas do país, ouviu:

 

- “O Vovó Pedro, sabe quantos dias faltam para que a sua respiração lhe abandone?”, pergunta calmamente aproximando-se do velho, que o observa com espanto.

 

Com uma das mãos no ombro do seu interlocutor, continua:

 

 – “Eu, também, não sei quanto tempo me falta a mim. Não devaneia que seria prudente usar esse tempo para organizar a sua herança e evitar discórdia entre os seus?”, provoca-o ciente de espernear a mediocridade naquele arcabouço de ideias.

 

Indignado o velho reage, retirando a mão do seu ombro, e afirma em leal baixaria das pessoas mal ocupadas:

 

- “Ah! Só porque trrabalhas com brrancos, pensas que és o mais-mais? Êh? Tsc-tsc-tsc…”, respondia a fungar, completamente exaltado. - “Seu prreto desgraçado! Eu te vi a nascer. Sabes disso? Podias ser meu filho. Sabes disso? Só não comi a tua mãe porrque ela é salgada, feia e gorda. Sabes disso? Agora queres me matarr! Neh? Vou queixarr ao mano Titos.”, rezingava afastando-se do Sr. Jaime.

 

Aquele evento não era o primeiro incidente. O Sr. Jaime sabia que o velho era um adolescente que nunca conseguira transitar a fase adulta. Livrar-se de um diálogo com ele era salutar. Estava feliz porque nos próximos três a seis meses não teria que trocar palavras com o velho. Tratava-se de uma indivíduo da pior estirpe. Um aliciador de crianças para ronceirismo. Na sua casa, vendia bebidas alcoólicas de 24/24 horas. De sexta-feira à domingo, os vizinhos eram apoquentados com música estrondosa, algazarra, e toda sorte de bizarrice. Sendo uma pessoa influente, as queixas contra o seu comportamento libertino, sempre foram por água abaixo. Todavia, o velho sabia que qualquer melúria contra o Sr. Jaime seria uma tarefa perdida. O mesmo estaria na verdade a expor-se. Por outra, estaria a levantar questionamentos sobre si. O comportamento exemplar do Sr. Jaime era uma testemunho incontestável de sua moralidade.

 

            Naquela madrugada, a casa do Sr. Jaime foi urgentemente visitada por um dos membros da família Sítone. A filha Carolina foi a correr a sua casa, depois de ter realizado duas chamadas sem sucesso. Em pânico, bate a porta da casa do Sr. Jaime e grita:

 

- “Tio Jaime, estou a pedir nos atender.  Tio Jaime!”, exclama profundamente alarmada com o plano B. Enquanto isso, intercala a batida na porta, janela, gritando o seu nome.

 

Naquele final de semana, o Sr. Jaime estava de folga. Na noite anterior, havia rumado com a família para sua quinta. Quem ficava responsável por atender o negócio era o Sr. Tomé. Ao contrário do seu irmão gémeo, o Sr. Tomé era um indivíduo rude e quase sempre mal-humorado. Sendo gémeos homozigóticos, era simples diferencia-los pela cicatriz no queixo do Sr. Tomé. Além disso, o nível de brutalidade era abismal. Praticava fisiculturismo agravando, ainda mais, a sua expressão agressiva. O lar era muito conturbado na sequência da violência doméstica exercida sobre a esposa e os filhos.  Nas duas semanas pregressas, uma reunião familiar impeliu a distanciar-se deles por causa da repercussão psicológica. Uma visita não avisada protegeu a esposa de uma asfixia por uma esganadura. Muita discussão decorria pela queixa retirada na esquadra contra o esposo. Iam-se 7 anos de ciclos de contendas violentas com separações e retornos.

 

Passados 3 minutos, a porta da dependência traseira da casa do Sr. Jaime, abriu-se. Primeiro saiu um filhote de cão da raça Jack Russell Terrier, a correr animado por estar solto, soltando um latidos amistosos. Simultaneamente, tinham saindo de casa alguns vizinhos curiosos com o som que vinha de fora. Em passos decididos, atrás do seu mascote, vinha o Sr. Tomé furioso com a barulheira:

 

- “Ei, chega! Vão nos arrombar a casa, pá!”, determina com tom incisivo. Enquanto aproxima-se da fonte do ruído, agacha-se para resguardar no colo o filhote de cão fazendo carinho, no tronco e ajeitando a coleira.

 

Ao avistar a Carolina, magicou que algo grave devia ter acontecido. Aquela menina não tinha o perfil de estar fora de casa aquela hora e naqueles trajes privados. Malgrado, sentia-se enfadado por lhe ter interrompido o ócio. Em algumas horas, tinha que ir buscar dois estrangeiros ao aeroporto, seguindo-se um passeio com um casal de turistas pelos pontos icónicos da cidade e por fim, conduzir um casal de idosos, à missa vespertina. Observando a vizinhança; mesclada entre curiosos, preocupados e mexeriqueiros; que se aproxima do quintal, tenta disfarçar o seu desinteresse, comunicando-se com elegância:

 

- “Como posso dispor os meus serviços?”, averigua fingido prestação, resultado do treino na comunicação com os clientes. Em resposta, Carolina toda desesperada e libertando o pranto recentemente reprimido, soluça entre a palavras:

 

- “Eu… Eu… Eu!”, não consegue completar a frase dada a agitação.

 

Ao mesmo tempo escorrem-lhe lágrimas e muco pelo nariz. A demora em pronunciar-se começa a inervar o Sr. Tomé que achasse perdendo tempo. Captando a irritação diluída no ar, uma senhora de idade muito terna, abeira-se a Carolina. Com discrição, reproduz a questão com o tom matriarcal mas agora na língua local:

 

- “Minha filha!”, observa-a afagando as costas. Com delicadeza, retira-lhe as secreções na face usando porção da capulana que traja, e prossegue, “O que te aconteceu Carolina?”. Por um lado, a voz afectuosa tranquiliza temporariamente a Carolina. Por outro lado, a pergunta aguça aos bisbilhoteiros a erguerem os pescoços, como girafas; as orelhas, como um Jerboa-de-orelha-longa e aos olhos, causam uma quase exoftalmia, para registar tudo ao pormenor, no âmbito da reportagem que farão aos vizinhos dorminhocos. Reflectindo no tempo que lhe fugia, a Carolina esclarece:

 

- “Eu ia a casa de banho, quando vi papá, no chão. Estava no chão…”,  interrompe o discurso pensativa.  Ao absorver um imediato trago de ar frio, acrescenta, “O lado esquerdo do corpo secou, a boca virou, e não está a falar”.

 

            Ao proferir estas palavras, recorda-se em voz alta que tinha que trocar as fraldas do bebé. A Senhora de idade, muito envolvida com a situação, assume o comando vigorosamente. Ordena ao Sr. Tomé e aos dois vizinhos de meia idade, para acompanhar a Carolina. Sem contestar, o Sr. Tomé adentra-se na dependência deixando o seu mascote. Ao agasalhar-se, por instinto, endereça uma série de mensagens para um primo atender aos clientes do dia. Leva as chaves do carro, toda documentação necessária e tranca a dependência. Instalado no carro, convida a Carolina e aos dois vizinhos solícitos a acompanhar-lho. Todos despediram-se da senhora de idade e dos outros vizinhos que os testemunhavam partir. Nos 5 minutos posteriores, a Carolina, partilhou que o dia tinha corrido bem com o pai. Quando ela regressará a casa às 19h, o mesmo já havia preparado o jantar e dado de comer ao seu neto de 8 meses. Após o banho, em diálogo durante o jantar, o pai informou que tinha concluído as peças de carpintaria que os clientes iam buscar, no dia seguinte às 9h. Assistiram o telejornal das 20h. Esse era um momento que aproveitavam para estar juntos desde a sua viuvez há 15 anos. Encontrando-se os quatros irmãos, nos seus lares, sentia a responsabilidade de cuidar do pai.  A cerca de dois anos, o seu namorado agora noivo, fez-lhe o Lobolo planificando o matrimónio para o ano seguinte.

 

            Nas suas projecções, a Carolina não acolhia bem o casamento. Para ela, implicaria mudar de casa, de bairro, de província e quiçá do país. O seu noivo, eminente funcionário num empresa multinacional de exploração de recursos naturais, trabalhava na outra extremidade do país. Fazia-lhe pressão para viverem juntos e acompanhar o desenvolvimento do filho deles. Em justa fuga, a Carolina, explicava com certa dose de chantagem:

 

- “Papá tem problemas de tensão. Quem lhe vai acompanhar para consulta e controlar o tratamento? Esqueceste que o doutor disse para tomarmos conta dele. Hmm!? Se acontecer alguma coisa quem vai ajudar? Queres que eu o abandone?”

 

As alegações da Carolina eram muito fortes para serem rebatidas. O noivo foi duas vezes arrastado as consultas de cardiologia. Uma vez foi para acompanha-la e outra vez em substituição. Noutras vezes, voluntariou-se devido a indisponibilidade pelos trabalhos em turnos, numa rede de telefonia móvel. Ambos tinham apanhado um susto, quando o Sr. Sítone estive internado por um quadro de hipertensão arterial severa. A rotina familiar acabou mudando para todos. Reduziram o sal na confecção alimentar, a ingestão de alimentos gordurosos, abandonaram os temperos artificiais, praticavam exercício físico regularmente. O grande mal a ser eliminado era o alcoolismo. Uma psiquiatra austera conseguiu reinserir o pai novamente na vida social. O trabalho se tornara um refúgio da solidão após a morte de sua esposa. Não podia se dizer, de todo, que o vício estava ultrapassado todavia controlado.

 

Durante a semana, conseguia ludibriar o vício sepultando-se no trabalho. Porém, aos fins de semana passava as tardes, na casa do velho Pedro, para olvidar o luto que ainda lhe pesava sobremaneira. O local era uma tentação pela exposição ao álcool. Dizia que bebia moderadamente. O seu principal divertimento era jogar Ntxuva (xadrez africano) com os demais vizinhos. Na maioria da vezes perdia. Entretanto, não se importava. O importante era o entretenimento. As esposas daqueles homens havia imposto, como condições, que os jogos não envolvessem apostas. Já alguns anos, uma família fora despejada da casa por causa delas. Muitos infelizes aprenderam pela má via o preço das irreflexões.

 

Chegado a casa dos Sítones, todos acudiram o homem dispondo-o na cadeira traseira do carro. Por ventura, o bebé da Carolina desfrutava um sono profundo, alheio aos acontecimentos do domicílio. Ao espreitar-lho no berço, assossegou-se pelas fácies angelicais que contemplava. Findo os preparativos para saída, carregou o bebé e sentaram-se no assento lateral ao motorista. Um dos vizinhos, ficou no bairro para permitir conforto da viagem aos passageiros traseiros.

 

Infligindo as regras, lá ia o Sr. Tomé, tranquilizado pela pouca movimentação. Conduzia a alta velocidade para levar a pronto socorro o Sr. Sítone. O mesmo tinha mais afinidades com o seu irmão Jaime do que ele. A um quarto de distância do Hospital, o bebé acordou chorando aos berros. Aquele som estridente empurrava o Sr. Tomé para fora da bolha do fingimento. Inspirava profundamente para se controlar. A mãe sentindo os nervos por um fio, deu-lhe de mamar cantando baixinho melancolicamente, uma música para ninar. A música era mas para ele do que para o bebé.

 

Cena 4

A cerca de três quarteirões do Hospital, o nível de consciência do Sr. Sítone decresce para uma estado de imobilidade completa do corpo. O vizinho que o tinha com a cabeça no colo, aflito sussurra pelo nome, dando palmadas gentis na face e movimentando o tronco:

 

- “Tio Sítone, tio Sítone!”, aterrorizado afasta-se do corpo desajeitadamente, gritando por socorro abraçando o motorista.

 

A filha na frente junta-se aos gritos pelo pai, voltando a acordar o seu filho, que se põe novamente aos berros. Descontrolado, o Sr. Tomé ameaça:

 

- “Larga-me, seu estúpido”, ordena removendo rispidamente as mãos que lhe envolvem.  Com os olhos fixos na estrada, declara “Fechem a boca ou vos atiro a todos da janela!”. O seu carácter explosivo era sobejamente conhecido pelos passageiros, excepto o bebé que continuava pranteando. Furioso intimida mãe, dizendo:

 

- “Se esse, bebé não terminar o circo rebento-vos agora.

 

A Carolina num impulso cobre a boca do bebé com a mão, embalando-o com o tronco e braço contralateral. O Sr. Tomé completamente decidido a desfazer-se deles na entrada do Hospital, afunda o pé no acelerador, coloca o carro em sinal de emergência e vai buzinado em intervalos regulares. Cinco minutos depois, entra numa das grande avenidas da segunda cena.

 

Uma peona, funcionária num restaurante próximo a avenida, regressa a casa sozinha. O destino é a paragem de transporte semicolectivos. Na manhã do dia anterior, chamaram-na para fechar o lugar de uma colega recentemente expulsa por furto. Aquele extra vinha de bom grado para cobrir algumas contas que tinha a pagar. Infelizmente, naquele turno ninguém dormia no restaurante a espera do amanhecer  e todos iam embora em vias opostas a dela.

 

Analisava como o trabalho foi dinâmico. Aquele grupo de colegas era mais colaborador que os do seu turno fixo! Para variar, a casa esteve cheia, conseguiram uma generosa gorjeta dos clientes cuja repartição foi equitativa. Aquela seria um excelente altura para solicitar a permuta.  Agora na rua, magicava como pediria ao patrão para ficar até amanhecer para não regressar sozinha, nas próximas ocasiões. Enrolada em três capulanas  para reduzir a corrente de frio, caminhava pela estrada mal iluminada, para evitar o passeio escuro. Não se via nenhum guarda na avenida. Ouviam-se em alguns edifícios, uns sons abafados de algumas rádios ligadas, sem embargo, não reduziam a sensação de insegurança. Era a primeira vez, que regressava sem companhia naquela hora.

 

Quando se dava por sozinha, ouve de longe uns passos apressados ao seu encalce. Sem olhar para atrás, começou a acelerar o passo, quando de longe escuta:

 

-“Cremosa, queres que eu te acompanhe?”, uma voz masculina atrevida, autoconvoca-se a estar junta dela. Quando os sons dos passos outrora distantes, aparentam estar próximos, a jovem poem-se a correr. Em retorno, a reacção de evasão, a voz diz:

 

-“Sucá! Quando eu te apanhar vais ver, sua ranhosa desqualificada!

 

O semáforo em alucinações, ao ver o sinal de pisca-pisca contínuo do carro que aproxima pensa “Bem me quer ou mal me quer?”. Espera ver assim, uma luz verde ou vermelha, contudo a cor é a mesma. Em provocação, diz aos colegas:

 

- “Quem é mais velho aqui só eu. Acabou a anarquia! Todo mundo com cor verde!

 

Os outros semáforos sem participarem na tomada de decisão trocaram o sinal que tinham para verde.  Temiam o lunático que, em momentos de crises, assumia a liderança deixando tudo desordenado. A sensata preocupada tentava comunicar-se com outros para ao menos ficarem desligados. Os gatos miavam interpretando L’ORFEO de Claúdio Monteverdi, ao passo que um rato tenta atravessar de um lado da estrada para outro. Uma crise de desejo cresceu, no gato posicionado no muro. Depois de calcular o golpe, saltou para o passeio em direcção a rato.

 

A  jovem do outro lado da avenida, meteu-se no meio da estrada, assim que ouviu a buzina do carro que vinha em sua direcção. Em sua mente, pensou “Mil vezes morrer atropelada do que nas mãos desse abutre.” O Sr. Tomé ao desviar-se da alienada que quase atropelava, para de buzinar para recobrar o fôlego. Do outro lado da avenida da cena 2, vem o jovem que com os efeitos das doses ingeridas sente-se impelido a atropelar o gato que irrompe a estrada. O sinal está verde e pode acelerar ainda mais. Em fracção de segundos dois carros, embatem-se capotando, sem ficar nenhum sobrevivente excepto o bebé.

 

A jovem que era perseguida alegra-se por sua estranha sorte. Hoje teria sido o fim. Mantendo a sua corrida, ouve um gato a miar junto a um bebé ileso que chora. Depois de olhar para os lados, espanta-lhe a ausência do indivíduo que a perseguia. Sentindo que foi abençoada pega no bebé e vai para casa, guardando as reflexões para o desabrochar do dia. A lua crescente observa, vigilante, reconhecendo culpados e vítimas. Uma incomum regulação da sincronia dos semáforos marca-se, sem deixar sinais de alguma vez ter havido problemas. O gato mia insatisfeito por se achar manipulado. Perdeu a sua refeição, se não fosse o salto repentino dado, a esquivar um possível atropelamento. Ao concluir a observação: dos destroços; dos corpos sem vida espalhados no chão e outros retidos no carro; do vulto da mulher que se aparta com uma criança no colo; do semblante de um covarde que assiste os eventos escondido detrás de uma árvore, forte para as acções predatórias e fraco para as nobres; começa agora um peculiar miar semelhante ao choro! Todos os gatos circunscritos a zona miam de volta, acompanhando as nuances. Escutam-se vários timbres vocais. Em adição, a maioria dos cães da área ladram melancolicamente, em uníssimos com os gatos, em cortejo as almas que abandonam o plano físico. Os sensitivos que despertam com o som, lançam pragas aos gatos e cães com medo do que lhes possa acontecer. Vão rapidamente examinar nos quartos os seus entes. A seguir, leem as mensagens nos telemóveis, abrem os correios electrónicos, averiguam as diferentes estações noticiosas nacionais, em busca da fonte de inquietação. O mau agouro pesa-lhes sem perceber a origem. A senhora que a pouco rezava decide recolher-se nos seus aposentos. No seu pensamento expressa, “O que é mau não tarda a revelar-se! Até a pouco, fiz tudo correctamente. O que virá na sua hora se resolverá”.

terça-feira, 27 junho 2023 07:40

Olá Paz

MoisesMabundaNova3333

(Ao Reverendo Dom Dinis Sengulane)

 

Poucos anos após o restabelecimento da paz em Moçambique, na sequência do Acordo Geral de Paz assinado na capital italiana Roma, a 4 de Outubro de 1992, o Reverendo Dom Dinis Sengulane, então Bispo da Diocese dos Libombos, brindou o mundo com a sua incrível imaginação. Em variadíssimas sessões, encontros ecuménicos, reuniões diversas, pedia a todos os participantes para pronunciarem sorridentemente a expressão Olá Paz! Tipo uma confissão de verdadeiro comprometimento, engajamento, entrega desinteressada; ou aquela circunstância em que um homem quando tenta conquistar uma mulher de quem sente uma grande paixão! E todo o mundo pronunciava Olá Paz, com toda a solenidade, sinceridade e do fundo do seu coração, como uma espécie de confissão de amor que se sentia pela paz, ou uma tentativa de atraí-la, conquistá-la e amá-la! Lembro-me de, na sequência, o Presidente Chissano ter comentado agradavelmente e sobretudo agradecido a criatividade de Dom Dinis Sengulane. O país deve muito a este homem!

 

E a expressão Ola Paz entrou para o vocabulário político e social nacional. No início, com mais ímpeto, maior frequência, depois com menos e, hoje, quase ninguém se lembra dela. Mas, certo é que ao longo deste tempo todo andamos a tentar conquistar a paz, a tentar amá-la e a tentar conservá-la. Ao que tudo indica, sem o conseguir, pois, de tempo em tempo, as matanças e os impedimentos de circulação prosseguiam. Depois de Roma, houve mais acordos, uns quatro outros no total, com nomes rebuscados.

 

Só que, como diz um ditado xangana, ‘swilo swa ku kala swinga heli swa lhola’, em português: não há nada, mesmo um mal, que perdure para todo o sempre! Conseguimos encontrá-la lá nas matas de Gorongosa e, sexta-feira 16 de Junho, ao invés de assinalarmos o massacre de Mueda, ou o dia do nosso Metical, encerramos a última base e recolhemos a última arma da Renamo, ao que se seguiram belíssimos discursos de ocasião. Intervenções confluentes na imperiosidade da necessidade de conservar a paz conseguida. Todo o moçambicano com acesso aos media e disponível viu aquela cena a partir de Gorongosa. O mundo viu e aplaudiu. Até hoje, as congratulações brotam de todos os quatro cantos do mundo. Parabéns a Moçambique e aos moçambicanos, parece que, finalmente, encontraram a paz! Olá Paz!

 

Só que, com muito espanto e lamentação, há moçambicanos que entendem que alguém ganhou a guerra contra outrem. Definitivamente, estou com dúvidas se vamos conseguir manter a paz que almejamos, ou auguramos, como gosta de dizer ultimamente o chefe do Estado. Se tivesse havido um vencedor, ter-se-ia imposto: um vencedor não é apresentado, impõe-se!

 

Estamos todos tão empolgados e emocionados que até nos esquecemos de certas aporias. Esquecemo-nos que aquela arma que Ossufo Momade entregou a Filipe Nyusi, que demonstrou não ser expert na matéria, não foi parar onde estava, nas matas de Gorongosa, por si só: ela não tem pernas, não anda, não se compra a si próprio, não dispara sozinha, ela não mata sozinha. Esquecemos que é uma mente humana que dela se serve/serviu: que a foi comprar onde a comprou, levou-a para onde a levou, fê-la disparar onde e quando bem lhe apeteceu; e fê-la tirar a vida a quem entendeu, ou destruiu os bens que entendeu destruir. Em palavras mais precisas, dela se serviu para a consecução de um determinado propósito!

 

Mais importante ainda, esquecemo-nos de que a luta não se faz somente de material bélico nas mãos. Mahatma Ghandi fez escola no mundo. ANC fez escola no mundo. Marchas, manifestações, absentismo, greves, paralisações… são também modalidades de luta. Portanto, o facto de a Renamo ter entregue as últimas armas não pode ser tido e entendido como, ipsis verbis, que ela abdicou de lutar pelos objectivos por que se tem batido desde… 1977! Que ficou reduzido a zero! Nada.

 

A par de jubilarmos, interessa agora decifrar o propósito que levou a que aquela arma fosse adquirida onde foi adquirida, trazida e usada para matar compatriotas. Uma oportunidade soberba de, com muita solenidade, seriedade e sinceridade, esmiuçarmos as razões que nos leva(ra)m a diferenças que conduziram a matanças, destruições e retrocessos no nosso desenvolvimento.

 

Todos os discursos apontaram para a necessidade de reconciliação e reunificação da família moçambicana. Há que traduzir estes conceitos em acções concretas. Falaram da necessidade de inclusão, de democracia genuína, de liberdades de facto, de boa governação, séria; pois, é chegado agora o momento de se decifrar o conteúdo de inclusão e implementar no concreto. Se não formos capazes de tudo isto e persistirmos na exclusão ou rejeição ao outro, a cercearmos as liberdades, a trapacearmos a democracia que escolhemos, continuarmos a praticar nepotismos, a patrocinar a corrupção, não terá valido nada todo o esforço despendido para chegarmos à paz. Voltaremos à estaca zero, àqueles ou outros bang-bangs!

 

E convém dizer uma coisa: nós não chegamos à paz! Chegamos, sim, a entendimentos sobre a paz. Como alguém disse e bem, a paz não é algo consumado, tangível; é, sim, um processo, um estado que precisa de muito cuidado e rigor na observância, conservação e manutenção das suas premissas. Como um jardim. A paz advirá dos actos que doravante formos a praticar. O que conseguimos é um momento em que dizemos: “ok, vamos recomeçar”! Tudo dependerá do que todos os moçambicanos forem a fazer daqui em diante, sobretudo aqueles que dirigem, decidem e orientam.

 

Olá Paz!

 

ME Mabunda

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