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segunda-feira, 11 novembro 2024 11:03

Não há reconciliação sem um diálogo fundado numa ética do reconhecimento

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Para compreender o persistente estado de conflito em Moçambique, é necessário mergulhar nas camadas históricas, estruturais e económicas que marcam o país.

 

Primeiro, as razões históricas revelam um processo de descolonização e luta pela independência conduzido por um movimento armado, a FRELIMO, que rapidamente se afirmou como partido único e centralizou o poder.

 

A sua posição como força de libertação nacional, acompanhada pela narrativa de “salvadora da pátria”, moldou a hegemonia política da FRELIMO, mas também criou uma narrativa excludente, que marginaliza outras vozes. Esse passado criou a ideia de que a unidade nacional é uma unidade sob a liderança de um único partido, e qualquer oposição se torna uma ameaça à integridade do Estado.

 

No entanto, a paz alcançada com a independência revelou-se insuficiente para resolver as diferenças internas. A guerra civil entre a FRELIMO e a RENAMO trouxe uma nova camada de sofrimento e divisão, deixando Moçambique em fragmentos.

 

A desconfiança enraizada durante este período permanece viva, como um eco das dores passadas, e qualquer tentativa de consenso enfrenta um fantasma do passado. Em segundo lugar, as razões estruturais também desempenham um papel essencial.

 

O país desenvolveu-se com uma estrutura económica e administrativa centralizada, com investimentos mais concentrados no Sul e nas cidades costeiras, enquanto o interior e o Norte, onde se concentram muitas das zonas de exploração mineral, permanecem relativamente abandonados.

 

Esse desequilíbrio criou desigualdades profundas que alimentam a alienação das regiões mais pobres, onde as populações sentem-se deixadas para trás e desconsideradas pelo Estado central. Em terceiro lugar, os interesses econômicos nacionais e internacionais acentuam essa instabilidade. Moçambique é rico em recursos naturais, especialmente gás e minerais, e as potências estrangeiras observam atentamente essas riquezas, criando uma interferência que, muitas vezes, piora as tensões internas.

 

Ao invés de se focarem em benefícios para toda a população, os recursos naturais tornaram-se motivos de luta de poder, intensificando as rivalidades internas e dando espaço para influências estrangeiras que apoiam diferentes facções para assegurar o acesso aos recursos. Esses fatores criam uma armadilha histórica de conflitos e alimentam a ideia de que a violência, para muitos, ainda pode ser uma via legítima de reivindicação ou de imposição. No entanto, mesmo neste cenário, a paz surge como a única solução com potencial verdadeiro de transformação para Moçambique.

 

A paz permite uma coexistência real, onde as diferenças se tornam riquezas, e não ameaças. Na paz, as forças políticas e sociais podem investir em infraestruturas que beneficiem todos, promovendo o desenvolvimento humano e econômico que reduz as desigualdades.

 

A paz abre a possibilidade de resolver as questões regionais através de uma maior inclusão e investimento nas áreas mais pobres, e o país torna-se mais atrativo para investimentos éticos, que respeitam as necessidades do povo moçambicano. A paz representa também o reconhecimento da alteridade: o outro não é inimigo, mas um parceiro na construção do país. A paz, como a filosofia nos ensina, é um exercício de humanização e de reconhecimento da dignidade alheia. Moçambique precisa de uma paz que reconheça o sofrimento de todos os lados, que cure as feridas do passado e crie uma memória comum que inclua todas as vozes, não apenas as da hegemonia histórica.

 

Diante da hegemonia da FRELIMO e das forças de oposição armada — ontem RENAMO, hoje Podemos de Venâncio Mondlane —, o caminho para a reconciliação exige uma abordagem filosófica que transcenda o imediatismo e o pragmatismo político.

 

  1. Uma ética do diálogo e do reconhecimento mútuo: A reconciliação não pode ocorrer sem um diálogo onde todas as partes sintam que suas dores e esperanças são reconhecidas. Este diálogo deve ser fundado numa ética do reconhecimento, onde se aceita que cada grupo representa uma parte da história moçambicana. Aqui, é necessário questionar a narrativa exclusiva da FRELIMO e abrir espaço para novas histórias, permitindo que todos os moçambicanos se sintam parte de um projeto comum.
  2. Reformas institucionais para garantir uma democracia inclusiva: Para que a paz seja sustentável, Moçambique precisa de uma reforma institucional que descentralize o poder e permita que as vozes de todas as regiões e facções sejam representadas. Uma justiça verdadeiramente independente e um parlamento que represente, de facto, o pluralismo do país são necessários para superar a política hegemônica e criar uma verdadeira democracia.
  3. Desenvolvimento equitativo para sanar as desigualdades regionais: O Estado precisa assumir um compromisso com o desenvolvimento das regiões marginalizadas. Apenas com um desenvolvimento que alcance o Norte e o interior é possível construir uma paz onde todos sintam que fazem parte do mesmo país. Esse compromisso inclui investimentos em infraestrutura, educação e saúde para as regiões mais pobres.
  4. Processos de reconciliação e memória: Moçambique precisa de um processo de reconciliação que vá além da política e penetre na cultura, na educação e na memória nacional. Este processo deve incluir comissões de verdade e iniciativas de reparação que abordem os crimes e as injustiças do passado. Somente ao encarar o seu passado com sinceridade, Moçambique poderá construir uma paz autêntica e duradoura.
  5. Educação para a paz e cidadania: Por fim, é essencial promover uma educação que ensine o valor do respeito e da convivência pacífica. A próxima geração deve aprender que o outro é uma extensão do seu próprio ser e que a paz é uma conquista coletiva e contínua. Em suma, para Moçambique, a paz não é apenas uma questão política, mas uma transformação ética e filosófica que redefine o sentido de comunidade. A paz representa um compromisso com a humanidade do outro e um projeto de nação onde cada cidadão, independentemente de sua origem ou ideologia, sente-se parte de um todo que valoriza a dignidade humana acima de tudo.

 

* Severino Ngoenha é filósofo, director da escola doutoral de filosofia na Universidade Pedagógica de Maputo, onde em 2020 lhe foi outorgado o grau de Professor Catedrático, na Cátedra de Filosofia Intercultural. Reitor da Universidade Técnica de Moçambique (UDM), Severino Ngoenha é membro da escola romana, que esta na origem da filosofia nos países africanos de lingua oficial portuguesa.

 

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