Enquanto reflectia em torno do tema que inspirou o presente texto, não deixava de pensar nos efeitos da sua recepção, não por conter um conteúdo polêmico, e sim, pelo receio de polemizar mais o próprio tema, o papel Vs silêncio dos intelectuais na actual conjuntura social e política moçambicana. Há mais de duas semanas que escrevi, mas não o encaminhei à publicação, pois os receios confundiram-se, de certo, com temores, mas não se traduziram, felizmente, em covardia de quem prefere “ficar no muro” por conta do ambiente social e politicamente polarizado.
Se é verdade que a polarização não constitui um problema em si, a mesma transforma-se num mal social, quando degenera e contamina o espaço público de debate. É como se todos andassem impacientes e com os nervos em franja. Ninguém ouve o que não lhe convier ou não apelar à sua comoção. Simulam-se debates, nos quais assistimos monólogos colectivos (ou polílogonos, como prefere chamar Severino Ngoenha), em que cada grupo se fecha nas suas próprias convicções, e os polos se convertem em inimigos. Lamentavelmente, é nesse estágio em que se encontram muitas democracias ocidentais, numa espiral de progressiva corrosão de seus fundamentos. Ora a crise na qual estamos mergulhados parece conduzir-nos, lentamente, para esse último nível de polarização. Consequentemente, e por conta do “raciocínio motivado”, qualquer colocação directa ou indirectamente ligada aos temas que dividem opiniões, é motivo de aplausos por uns, ódios e apupos por outros. Eu estou ciente de que por mais cuidadoso que seja a minha escrita, a interpretação e os efeitos de sentidos dela decorrentes não dependem de mim; deste texto pode dimanar variadas reações. Ainda assim, prefiro “não adiar mais a palavra”.
Ora, há praticamente dois meses que o país está mergulhado na mais intensa crise pós-eleitoral. Já de tudo um pouco se disse, se escreveu e se falou. Porém, o tema continua a pautar a informação e a agenda nacional. Provavelmente dar-nos-emos conta, findo período, que tenhamos tido mais informação produzida a respeito do fenómeno numa desproporção sideral em relação à própria realidade. É que tal como não se tem precedentes de uma tamanha crise, talvez não se tenha memória de uma profusão de debates na media tradicional e digital, bem como nas colunas de jornais nacionais e internacionais a respeito do fenómeno ora vivido.
Antes de prosseguir, preciso ponderar que como cidadão compreendo e revejo-me nas principais causas que deram origem ao que prefiro designar de revolta popular. E reconhecer isso não significa ser-se da oposição ou da posição, partidário deste ou contra aquele grupo. Sou um simples jovem cidadão moçambicano, cresci numa província historicamente tida como bastião do partido no poder, aquela que personifica(va) todo o tipo de intolerância política, onde os espaços cívicos estão(vam) bastante reduzidos. É o local onde o preço de não ser militante e alinhado se paga(va) caro, às vezes, com a própria vida, como foi do saudoso Anastáncio Matavel. Mas Gaza é, também, bastião da arrogância e prepotência dos seus dirigentes, da impunidade, da miséria, de toda sorte de carências, da falta de oportunidades de trabalho para jovens formados, da exclusão e desigualdades sociais, onde os índices de pobreza e indigência crescem na mesma proporção de certas enfermidades como acontece em quase todo o país.
Então não tem como não me rever em muitos dos dizeres que estão estampados naqueles dísticos. Ao contrário do que certas narrativas pretendem convencer a opinião pública, muitos desses jovens revoltosos agem conscientes e lúcidos e não movidos por estupefacientes como referiu o ministro do interior em rede nacional. É por estarem dotados de lucidez e uma forte consciência política e social – afinal é a existência que determina a consciência e não o contrário – que, saturados, dão peito às balas, reivindicam mudanças.
A improcedente cruzada anti-intelectual: os intelectuais nunca estiveram em silêncio
Paralelamente ao que acontece nas ruas, nas TV’s e nas redes sociais o acontecimento é espaçado por meio da “batalha discursiva”. Ora um dos temas que têm ganho força nos últimos dias tem que ver com os intelectuais, ou melhor, o seu papel na actual conjuntura. Há semanas viralizou um post de um conhecido escritor tecendo uma crítica directa às iniciativas de um conjunto de intelectuais que se reuniu e propôs o Manifesto Cidadão. Não foram poucos que, pela reação, concordaram, julgo eu, com o teor do texto. Já antes, num debate televisivo, um dos membros daquela organização, José Jaime Macuane, também teve que defender a iniciativa, diante de uma intempestiva crítica de um dos seus colegas de painel, o também intelectual Régio Conrado, que levantava questões que diziam respeito, sobretudo, ao alcance da iniciativa. Na sequência, seguiram-se, em diferentes contextos, discussões correlatas – algumas que se confundiam com ataques – galvanizados pela crítica pública, feita por Venâncio Mondlane, numa das suas últimas lives.
Ora tal como referi no limiar do texto, uma das facetas da polarização é o acirramento de posições que resvala na falta de abertura às ideias contrárias, produzindo, não raras vezes, uma “cegueira” deliberada perante os factos. E os factos estão expostos, mas não se resolvem por si. Penso que é sob esse prisma que nascem iniciativas internas de busca por uma solução pacífica e sustentável da crise vigente. Eu encaro iniciativas como Manifesto Cidadão e outras que, eventualmente, possam surgir, como respostas oportunas às críticas em torno das métricas excludentes dos políticos no passado, que envolviam apenas partidos políticos na tentativa de dirimir problemas nacionais, mesmo estando certos que não representam boa parte dos interesses dos moçambicanos. Além do mais, as soluções não passavam por negociatas entre grupos de interesse, por isso que as soluções eram superficiais, com um alcance episódico, uma vez que os problemas continuaram e se agravaram.
Como sociedade, não podemos perpetuar as formas de resolução de conflitos que se mostraram fracassadas no passado e, com efeito, parece-me ser contraproducente ridicularizar iniciativas que pretendem uma discussão abrangente e profunda dos caminhos que, doravante, queremos trilhar sem precisar de derramar mais sangue entre irmãos. Não duvido que a campanha contra a classe intelectual resulte do clima de desconfiança, saturação e oportunismo que caracteriza a sociedade moçambicana contemporânea. Sucede que conhecemos a filiação política de alguns dos intelectuais que fazem parte do Manifesto, mas precisamos reconhecer um pensamento equidistante e equilibrado dos mesmos, mesmo quando a atmosfera política era bastante desfavorável.
Haverá dúvidas da genuína preocupação de intelectuais como Brazão Mazula e Severino Ngoenha? Dos quais se reconhece, em grande parte da sua produção intelectual recente, bem como das suas intervenções públicas, contribuições recalcitrantes sobre os problemas que degeneraram na actual situação em que nos encontramos? Não é excessivo lembrar, no caso de Ngoenha, que, para além da regularidade das suas colocações na media, em muitos dos seus livros, o intelectual já alertava para os perigos da quebra do contracto social. Como hoje, já no passado, junto com José Castiano, foi acusado de busca de protagonismo político directo quando lançou o Manifesto por uma Terceira Via, uma hipótese rechaçada pelos próprios autores no livro. Estes, ancorados no conceito de historicidade, realizam uma síntese da primeira (socialismo) e da segunda (liberalismo), procedendo a um escrutínio crítico das contradições e limitações que caracterizaram as duas primeiras, por um lado, e, por outro, relevando os aspectos positivos nas duas, que podem ser aproveitados em vista de uma Terceira Via.
Há, pois, um diagnóstico dos problemas que conduziram o país ao caos que agora se vive. E o problema não é de hoje: tal como não o é a constatação da progressiva dissolução de valores humanos (Castiano, 2018), em lugar da “roubalheira e malabarismos” nas relações sociais. Não é novidade a denúncia da dólar-cracia (Ngoenha, 2016), que tem (des)configurado os meios de actuação da elite político-empresarial do Estado moçambicano, inclusive de algumas Organizações da Sociedade Civil, ao normalizarem posturas eticamente desviantes e politicamente nocivas ao bem-estar comum. Ainda em 2014, Severino Ngoenha para além de diagnosticar as causas que têm gerado as divisões internas entre os moçambicanos, apontou, como caminho para a superação dos sucessivos conflitos sociais, a necessidade de cultivar-se a tolerância que, no fundo, nunca existiu. É, ao contrário, a intolerância instrumentalizada – um outro corolário da (in)reconciliação, como prefere designar Eduardo Sitoe (2024) –, que mais vingou e estruturou a forma de pensar e agir dos atores políticos nacionais.
Quem deu atenção aos estudos e relatórios de transparência nacional e internacional, alguns produzidos por intelectuais moçambicanos, associados a alguns Centros de Pesquisa e Organizações da Sociedade Civil como CIP e IESE, esta última, por exemplo, que não cessou de partilhar gratuitamente, ao longo dos últimos anos, pesquisas reunidas em 11 volumes intitulados “Desafios para Moçambique”, integrando pesquisadores de diversos campos de conhecimento, que têm empreendido um laborioso trabalho intelectual sobre os problemas, desafios e soluções para Moçambique, nas suas diversas dimensões. Na última coletânea adstrita a 2023 – 2024, só para elucidar, nos primeiros dois capítulos dedicados à política e economia, respectivamente, o leitor é confrontado com abordagens que ressaltam problemas associados ao actual estado de caos, como seja o das consequências sociais e políticas da falta de reconciliação nacional, bem como o das relações e implicações da violência político-eleitoral no enfraquecimento da nossa democracia, da relação das oligarquias nacionais com a guerra de Cabo Delgado, entre outros estudos. Mas quem tem lido. Quem tem levado a sério esses estudos neste país?
Os intelectuais sempre estiveram no silêncio? Como assim?
Quem foram os constituintes do Comité de Conselheiros (CdC) de elaboração da Agenda 2025? Não foram intelectuais de diversos domínios de conhecimento e actuação profissional, protagonistas daquela que pode ser considerada a primeira Agenda Nacional, salvo o equívoco, com a radiografia do estado da nação, visão e estratégias, frutos de um debate amplo, inclusivo e participativo?
Em que medida essas e outras reflexões foram tomadas em conta por aqueles que estão ao leme do Estado, há quase 50 anos? Na verdade, boa parte dessas e outras contribuições soaram como uma vox clamantis in deserto. Hoje esquecemos-nos de que houve vozes que jamais se calaram diante dos sinais de decadência do Estado.
Ainda no passado, se considerarmos que o campo intelectual é composto, entre outros, pelo campo cultural, artístico e literário, devemos, desse modo, recuar para o tempo colonial de modo a dissipar alguns equívocos e reavivar a memória dos moçambicanos – tal como nos lembrou Lourenço Do Rosário, no podcast Gapi – do inesquecível papel das artes e da literatura na “profecia” a determinadas saídas da nossa sociedade. Não foi o barulho das armas que soou primeiro em busca da liberdade, e sim de vozes insubmissas de poetas e escritores que, em sucessivas gerações, denunciaram os males do sistema colonial e vaticinaram uma nação livre, antes de 62 e 64, e continuaram depois da independência, associados a Charrua (1983) e não só. Mas o problema não é e nunca foi o silêncio dos intelectuais, e sim, observa Rosário, “daqueles que detêm o poder”. Pois, conclui: “a maior parte daqueles que detêm o poder assobiam ao lado, não têm o cuidado de respeitar a opinião pública e a opinião dos intelectuais como sendo os melhores conselheiros para corrigir as assimetrias”. Portanto, não há silêncio [dos intelectuais], o que existe é o desencontro entre aqueles que pensam e aconselham e aqueles que devem tomar decisões conducentes à mudança de paradigmas.
Alertou-se, inúmeras vezes, para os riscos do estágio em que vivemos, quando se buscou abafar as manifestações e o debate nacional franco, por meio da repressão e de intimidações. De modo que não deveria ser, de todo, surpreendente este estado de anomia social, na medida em que constatamos, todos, os recuos significativos em termos de ganhos que se esperava que fossem consolidados com o multipartidarismo. Debalde, pois vimos, muitas vezes impávidos, a progressiva degradação do Estado Democrático de Direito. Testemunhamos a saga, nada sutil, do sucateamento da saúde, da educação, da justiça, etc. À vista de todos nós, assistiu-se, por tabela, à perda do contracto social também, conforme referi, denunciado inúmeras vezes por Severino Ngoenha (Os Tempos da Filosofia), e por muitos desses intelectuais que integram o Manifesto Cidadão). Nada disso ocorreu de forma subliminar.
Mas quem acatou?
Quem, pelo menos, refletiu acerca dos fundamentos avançados na proposta do federalismo do então jovem Severino Ngoenha em “Por uma Dimensão Moçambicana da Consciência Histórica, depois refinada filosoficamente em “Das Independências às Liberdades”, ou mais recentemente, quem escutou e analisou as premissas avançadas por Ngoenha ao alvitrar-nos o regresso às ideias de Mondlane, no livro “Mondlane, regresso ao Futuro”? (2019).
Quem deu ouvidos aos comentários incisivos (Pontos de Vista) de Tomás Vieira Mário, que até bem pouco tempo foi uma das primeiras vozes a criticar a postura da PRG e o impacto da mesma na descredibilização e aumento da desconfiança do público com as nossas instituições de justiça, quando esta se mostrou diligente, ao urdir processos cíveis e criminais contra Venâncio Mondlane, e continua muda e cega diante da actuação desproporcional das Forças de Defesa e Segurança contra os revoltosos nas ruas. Quem?
Esquecemo-nos de que, quando não podiam “algemar as palavras” com armas, empreenderam a campanha de assassinato de carácter, que consistiu em demonizar e marginalizar os poucos intelectuais não-alinhados; aqueles que não viam a realidade da mesma forma e desafiaram a orquestra sinfónica do discurso triunfalista e panegírico, sendo rotulados de apóstolos da desgraça, inimigos do progresso, entre outros epítetos que não convém aqui lembrar. Não bastasse, sofisticaram os mecanismos de intimidação e coartação das liberdades, através da violência física precedida por sequestros e raptos.
No entanto, estamos todos acometidos por uma estranha amnésia coletiva! Perdemos a memória da razão que culminou com as pauladas às pernas de José Jaime Macuane e Erecino de Salema?
Apagou-se da memória o que levou ao assassinato bárbaro de Carlos Cardoso, Siba-Siba Macuácua, e num passado não distante, Jilles Cistac, intelectual, constitucionalista e defensor da descentralização.
Quantos exemplos mais poderia elencar para avivar a nossa memória?
O próprio Venâncio Mondlane, enquanto intelectual e analista político que sempre vocalizou os problemas de governação, em meio a uma “cegueira” deliberada e crescente de alguns, não escapou ao cerco dos famigerados grupos de choque como o G40, bem como da media pública nacional, ao serviço do partido que governa. Então esquecemo-nos de tudo isso?!
Pode-se criticar o exercício intelectual, mas não devemos misturar alhos e bugalhos.
Com efeito, há-de se fazer duas ponderações em torno da confusão que se faz entre os que designo de comentadores de TV ao serviço do governo, e de intelectuais que, independentemente, de todo tipo de condicionantes, não se curvaram, pelo menos explicitamente, às tentadoras benesses da cooptação.
Os primeiros constituem uma franja de académicos cooptados, muitos deles, docentes de Universidades – eles precisam de estar associados a alguma Universidade para conferir o ar de intelectualidade nos seus comentários” (cyber-intelectuais, chama-os Ngoenha em “A Terceira Questão”), mas todos sabemos como muitos chegam lá, e que a docência é apenas um meio para se consolidarem nos “mercados de postos”, tal como observou Antônio Cândido (2001), qual efeito de uma matriz de jogo de interesses que desvela, em parte, o ethos das relações entre os tais e as classes dirigentes do país, bem como o fosso da desvinculação social entre os mesmos e a sociedade. Não admira que os analistas de ontem sejam assessores, integrantes de fundos nacionais e deputados de hoje, e os de hoje (os Aníbais da vida e companhia…) serão amanhã (diga-se, nos próximos mandatos).
Entretanto, isso não surpreende, se considerarmos que tão pouco se trata de um fenómeno novo e estrito à realidade moçambicana. Na verdade, as relações entre os intelectuais e as classes dirigentes em Moçambique foram quase sempre definidas nos termos de uma relação entre “posição social” e “estruturas de poder”. Sintomático é a proporção e a indisfarçabilidade com que é feito hoje.
Sabemos que eles agem em estreita comunhão com boa parte da media nacional, que é co-produtora e disseminadora dos discursos da manutenção da legitimidade do Estado em todas as acções dos seus agentes, por mais absurdas que sejam. Avram Noam Chomsky, linguista, filósofo, cientista cognitivo e activista político estadunidense, denunciou veementemente esta subserviência política da media numa obra com um título já por si eloquente: “Media: Propaganda Política e Manipulação” (2024), do resto, com o foco na realidade política dos EUA, mas cujo padrão de actuação parece encontrar similaridades em contextos como o nosso.
Na realidade, nestes últimos dias, temos estado diante do contrabando insidioso de mentiras empilhadas, descaradamente, a quem acompanha seus noticiários e debates promovidos, sobretudo, pelos órgãos públicos de comunicação social. Seu foco é deslegitimar as causas da revolta popular em favor do pânico económico. Por isso que neste conflito, vocalizam apenas interesses da oligarquia que controla a economia e o mercado financeiro. Ainda assim, e mesmo que estejam à margem da realidade por conveniência, sou daqueles que defendem o seu direito de fala até ao limite da tolerância, ou seja, até ao instante em que o debate for pautado por uma racionalidade que exclua a imposição da razão por outros meios que coloquem em causa a coexistência humana, sob pena de a intolerância acabar com a própria tolerância, dirá Karl Popper, no Paradoxo da (in)Tolerância.
O segundo grupo é aquele que, para mim, se enquadra no estatuto de intelectual orgânico de Gramsci (1997), que mesmo sendo parte de uma Formação Discursiva e Ideológica próxima da classe dirigente (parte deles), não se exime da sua vocação idiossincrática de reflectir em torno de questões candentes da nossa sociedade e actua numa práxis que esteja necessariamente atrelada aos problemas sociais vigentes. Ciente dos riscos que correm, esses intelectuais agem sob uma estratégia de transformação histórica em que dê reconhecimento aos dilemas e desafios colectivos. Não se arvoram à velha concepção de arautos da salvação, pois não estão e nem se colocam acima dos outros. É assim que vejo o grupo de intelectuais que se tem esmerado na busca de soluções para a actual crise, através de uma plataforma de diálogo que se quer permanente e consequente como a de Manifesto Cidadão.
Por isso, mesmo que ponderemos os primeiros como intelectuais, não devemos ter a ilusão de esperar uma reação unívoca de toda classe intelectual moçambicana perante os mesmos fenómenos sociais e políticos, por um lado; ilusório seria esperar um campo intelectual livre de interferências políticas, quanto mais numa sociedade como a nossa, profundamente marcada por um processo de formação social atocrático, por outro.
À guisa do fim: não os desencorajemos
É temerária a cruzada anti-intelectual em curso, pois sabemos que os discursos e significados não operam apenas no sentido cognitivo, mas também no normativo, e são passíveis de tradução em ações pelos indivíduos e grupos na luta política, independente mesmo da sua consistência lógica interna, das intenções manifestas ou latentes.
\São injustos os ataques junto daqueles que têm coragem de enfrentar o sistema e os problemas de governação neste país. Tal como referi, podemos criticar a forma, mas não desmerecer as iniciativas em curso, nem fingir amnésia do histórico papel dos nossos intelectuais em favor de causas mais nobres da sociedade moçambicana. Pois tenho comigo que atacar esforços de estabelecimento de uma plataforma representativa de diálogo nacional como a de Manifesto Cidadão é mais do que atacar intelectuais, é queimar as poucas pontes de que dispomos para aproximar os políticos à mesa do diálogo.
Não precisamos de análises profundas para percebermos que, no fundo, não há disjunção alguma entre as reivindicações dos revoltosos com as posições defendidas, não na estrada com dísticos como seria de esperar, mas nas intervenções públicas e não só, de intelectuais como Brazão Mazula, Severino Ngoenha, Tomás Vieira Mário, Tomás Timbane, José Jaime Macuna, Roberto Tibana, este último parte dos sugeridos por VM7 para integrar a mesa de diálogo junto de outras figuras públicas reconhecidas pela sua coragem e defesa dos Direitos Humanos e dos mais desfavorecidos. Posto que, ridicularizar a classe intelectual é ridicularizar a verticalidade e a coragem que sempre caracterizaram um Roberto Tibana, por exemplo, a quem eu muito admiro. Pelo que não encontro razão que justifique os ataques à classe intelectual.
Que as críticas estimulem e não retraiam todos os esforços com vista à refundação do nosso Estado, a partir da oportunidade que nos é gerada pela crise vigente. O grupo que integra o Manifesto Cidadão já estabeleceu uma ponte importante de diálogo entre os representantes dos partidos políticos, talvez precisem de seguir dialogando e inserindo vozes de diversos cantos deste país e, sobretudo, as lideranças que emergem e são reconhecidas entre os revoltosos, pois a esses intelectuais: não basta discorrer apenas sobre o povo, é preciso partilhar espaços de fala. Assim, reduziriam, talvez, o fosso de desconfianças que pairam, tornando o manifesto mais representativo e até polifónico. Porque não?
Por fim, não vejo problemas no protagonismo de intelectuais em meio a crises, mesmo que isso seja confundido com oportunismo. As críticas ao seu protagonismo só revelam mais uma contradição flagrante. Estranho seria o silêncio complacente diante do caos instalado. A história da humanidade está repleta de exemplos em que os intelectuais que tomaram dianteira ou colaboraram com ideias para a superação de crises, conflitos e consumação de revoluções populares. Afinal, foi em meio a convulsões que se consolida o conceito de intelectual moderno. Apesar da ideia de intelectual moderno irromper no século XVIII - na consignada Época das Luzes, época na qual se busca desarraigar do poder absoluto da monarquia e da omnipresença da Igreja – só nos finais do século XIX, com o célebre caso Dreyfus na França (1894-1906), é que se consolida a figura do intelectual comprometido, por exemplo na Europa, o que teve reflexos em muitos outros cantos do mundo. Desde esse período os intelectuais se tornaram num grupo politizado – possivelmente o mais politizado, na perspetiva de Debray (1979) – intervindo em assuntos políticos, participando ativamente na esfera pública, pronunciando-se e combatendo por causas políticas e sociais.
Ora, se toda acção intelectual em curso se mostrar infrutífera, se o conflito não encontrar um quadro regular, nem estabelecer vasos comunicantes, pelo menos não terá sido por apatia ou silêncio da classe intelectual moçambicana. Pois é melhor fazer algo, e ser alvo de críticas por uma acção engaja pelo bem maior do que por inação.
Atacar e desmerecer as actuais iniciativas de intelectuais em busca da paz e estabilidade, é atacar o alvo errado do problema e acirrar mais as divisões internas.
Tenho dito.
O nosso país enfrenta uma doença grave, que afecta a todos, ainda que em proporções diferentes. Essa doença foi identificada há já algum tempo, mas tratada com descaso. Durante décadas, seus primeiros sintomas foram ignorados, permitindo que se enraizasse no tecido social, afectando todos os segmentos de Moçambique. Hoje, ela não distingue entre a alta e a baixa sociedade, abrangendo a todos e colocando o país em estado de alarme, medo e incerteza. Essa enfermidade tem nome: má governação, caracterizada pela corrupção institucionalizada, desigualdades sociais gritantes e exclusão social.
Esse mal foi se instalando de forma lenta, como um câncer que cresceu e começou a fazer suas primeiras vítimas. Suas manifestações iniciais incluem as homenagens pacíficas aquando da morte do rapper Azagaia em 2023, o repúdio aos resultados das eleições legislativas do mesmo ano e, finalmente, a mobilização popular contra o que se considera manipulação eleitoral nas eleições de 2024. Esses eventos não são isolados; reflectem a pobreza generalizada, o desemprego, a precariedade dos serviços de saúde e educação, a insegurança pública, entre outros problemas estruturais. Soma-se a isso a forte repressão policial, com o uso indiscriminado da força contra civis, violência gratuita e o desdém pelos eleitores que confiaram nos governantes.
Milhões de moçambicanos sentem-se traídos por promessas vazias de um “futuro melhor”. Eles acreditaram que “o sol de junho para sempre brilharia” e que “nenhum tirano os escravizaria”. Contudo, viram o sol perder seu brilho e uma nuvem cinzenta anunciar uma nova era. Viram elites predatórias, mascaradas de libertadoras, empobrecerem ainda mais o povo e lhes retirarem aquilo que possuem de mais precioso: sua dignidade.
A frustração, a revolta e o desejo de mudança intensificaram os ânimos, desencadeando protestos que evoluíram para confrontos, saques e destruição. Não foi fruto do acaso. O povo clamava silenciosamente, por alguma dignidade. Pensou-se que as balas e o gás seriam suficientes para calá-lo e confiná-lo à miséria. No entanto, surgiu um novo fenómeno com o qual teremos de lidar: a perda do medo por parte do povo oprimido e a consequente retirada de legitimidade das autoridades e das instituições.
O gatilho social está prestes a disparar, levando-nos, em ritmo acelerado, para o caos total. Há um silêncio ensurdecedor por parte daqueles que deveriam agir para conter essa crise e evitar o caos. Tentativas de escamotear a realidade, discursos de ódio e narrativas que desumanizam o “outro” aprofundam a marcha rumo ao abismo. Falamos de tudo, menos da raiz do problema. Ignoramos os motivos que nos trouxeram até este ponto, onde o luto rima com a indiferença estatal, e as mortes são apenas números e estatísticas diante de discursos que priorizam perdas económicas e materiais.
E depois? Quando mergulharmos no caos, como reconstruiremos a visão de Estado, de Instituições e de defesa e promoção inclusão social?
De um lado, há uma classe saturada, cansada e exausta com anos e, talvez até décadas de uma má governação, que busca a reposição da verdade eleitoral como algum alento e um passo em frente na emancipação do povo, símbolo de justiça social. De outro, há uma elite governante, isolada no cimo das suas torres de marfim, que ignora os clamores populares e acredita ser merecedora de seus privilégios, mesmo que isso custe luto, lágrimas, sangue e vidas humanas. Em nome da ordem pública, essa classe autoriza o uso indiscriminado da força, acreditando poder silenciar o povo com balas e gás.
Chegamos a um ponto em que até as autoridades parecem algo desnorteadas e desorientadas, percebendo que nada é mais forte do que o povo. Antes, supunha-se que seu papel era proteger os cidadãos. Hoje, está claro que esse papel foi subvertido: as armas que deveriam defender o povo são usadas para semear luto em nome da segurança e pacificação do Estado. Esse mesmo Estado, que foi capturado por políticos ambiciosos e gananciosos, que ignoraram os sinais de revolta. Agora, encontram-se encurralados em um ciclo desumano, arrogante e cada vez mais promíscuo.
O povo, por sua vez, avança porque já não tem nada a perder. Uma vez arrancada sua dignidade e violados seus direitos fundamentais, o que resta da vida? É apenas o pulsar de um coração angustiado, um estômago vazio, uma cabeça confusa e pulmões sufocados por gás. O pouco de vida que resta transforma-se em arma para libertar e inspirar os mais jovens, que ainda não podem marchar.
Escrevi, em 2023, o texto “A Demissão do Povo”, no qual afirmei: “O povo foi demitido da sua função de fiscalizador da ação governativa” como que, de um prelúdio se tratasse. Hoje, essa percepção tornou-se ainda mais evidente. O povo sente-se marginalizado, irrelevante e tratado com desprezo pelos líderes que deveriam ser o garante do bem-estar social, da coesão e servir ao bem colectivo. Face a essa exclusão, os movimentos populares mais ou menos estruturados, emergem como o único instrumento para manifestar suas demandas e buscar a transformação tão necessária.
A escrita não deve pretender prever o futuro nem ser um exercício de alarmismo. De certeza não é isso que busco quando escrevo e quando faço minhas absrações. No entanto, o exercício de escrever, nos convida a analisar e reflectir os acontecimentos, passados, presentes até futuros, mesmo que, às vezes, suas interpretações sejam apenas compreensíveis a quem as escreve. Não se trata de um tarot literário, mas de observar a sociedade com lentes socio-antropológicas e uma perspectiva filosófica que transcenda os limites do óbvio.
Tenho receio pelo futuro. A semente do ódio foi plantada, e o terreno para sua germinação é mais do que fértil. Minhas preocupações e meus medos, se agravam ao perceber a apatia e a fraqueza de nossas instituições e daqueles que as dirigem, que parecem atreladas a interesses individuais, e incapazes de promover o diálogo, o entendimento e um meio termo ou superar as adversidades do agora. Essa fragilidade se reflecte no desprezo pelas autoridades e na deterioração do respeito aos símbolos nacionais.
O futuro, exigirá muito mais do que um governo seja ele de esquerda ou de dreita — independentemente de sua orientação ideológica ou partidária. Ele demandará que a sociedade reencontre sua identidade e reinicie o ciclo da reconstrução da moçambicanidade. Será necessário o esforço conjunto de milhões de braços para realizar um profundo trabalho de reconstrução sociológica, psicológica, antropológica, literária, histórica e filosófica. Mais do que narrar os acontecimentos, precisaremos curar as feridas do corpo e da alma, e de seguida desenhar um novo ideal de país.
O barril de pólvora está prestes a explodir, e a chaleira social encontra-se em ebulição. A tampa já está quase saltando. Se não encontrarmos uma válvula de escape, será o vapor que nos queimará sem dó nem piedade.
Na minha recente reflexão, intitulada - “Premissas para um Diálogo Nacional Profícuo”, mencionei que, “ainda não fomos capazes de criar um diálogo consistente, promover o perdão e a reconciliação”. Em vez disso, recorremos a tácticas ilusórias, enganando a nós mesmos e aos outros.
Escrevo estas palavras com um profundo pesar. Para além de Cabo Delgado que sofre com a insurgência, todo Moçambique está em chamas, caminhando para a barbárie. A questão inevitável é: será que precisaremos afundar ainda mais em um banho de sangue para que o luto assuma o controle de nossa história e de nossas vidas?
Finalizo com uma citação de Paulo Coelho: “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor.” Parafraseando, acrescento em minhas palavras: quando a governação não é inclusiva, orientada a resultados e dialogante, o risco de criar fissuras e fragmentações sociais é imenso. O excluído, então, transforma-se em parte de um problema gerado e perpetuado pela própria má governação.
Disse!!!
Desde as primeiras eleições multipartidárias de 1994 em Moçambique, os resultados nunca foram consensuais, incluindo diversos casos de eleições municipais. Como consequência, vários processos foram seguidos de conflitos pós-eleitorais violentos, geralmente localizáveis no centro do País. Um dos maiores marcos dos sucessivos conflitos pós-eleitorais violentos, foi a revisão constitucional de 2018 que passou a incluir a eleição da figura do governador provincial e nomeação de secretários de Estado para as províncias. Pela trajetória e história da transição para o multipartidarismo, os conflitos atribuíram primazia ao uso da violência armada como reacção, assumindo-se a raiz rebelde da Renamo como o único trunfo para pressionar a Frelimo aceitar cedências.
A via armada não implica em si uma forma de pressão para aceitação de derrotas, embora tenham sido alterados alguns resultados a favor da Renamo através do Conselho Constitucional (CC). Mesmo assim, os acórdãos desta entidade foram problemáticos, sem justificação pública da razão da alteração dos resultados, exemplos disso, foram as eleições de Quelimane, Vilankulo, Matola que resultaram respectivamente na vitória da Renamo nos primeiros dois municípios e alteração significativa de assentos para a Assembleia Municipal em 2023. Os processos eleitorais pós-2018 revelaram um aparente desvanecer da via armada, uma vez que a contestada vitória da Renamo na Cidade de Maputo, reduziu-se a protestos pacíficos, com reacção armada como uma incógnita. Mas a experiência recente mostra que a força militar mantém-se instrumento-chave para o período pós-eleitoral.
A primazia do uso da força como meio de busca ou manutenção do poder político em Moçambique prevalece. Enquanto no período anterior a 2019 a primazia da força militar era confundida com a violência pós-eleitoral tradicionalmente liderada pela Renamo, as eleições de 2024 revelam duas dimensões. A primeira, foi sempre tida como reação legítima do estado na preservação do monopólio do uso da força para o interesse nacional, a segunda dimensão enfraquece a primeira. Enquanto o estado é tido como republicano e de reacção armada legítima contra o uso da ilegítimo da força, as manifestações e protestos pacíficos, embora com focos localizados de violência, a Frelimo usa dos meios de coerção do Estado como meio de manutenção do poder. A Polícia da República de Moçambique (PRM) bem como a Unidade de Intervenção Rápida (UIR) têm optado pelo uso desproporcional da força, deixando patente o cunho de entidades partidarizadas.
Nas recentes eleições gerais de 2024, revelou-se a falência da via armada bipolar como meio de contestação eleitoral, em resultado do processo de desmobilização, desmilitarização e reintegração (DDR) previsto no Acordo de Maputo de 2018. Embora a Renamo tenha registado um forte declínio tanto nos municípios, como ao nível central, o processo do DDR revelou que a força militar não desvaneceu. O novo ciclo revela o demérito da Comissão Nacional de Eleições (CNE) como instrumento de manipulação eleitoral e falência do lema de ‘eleições livres, justas e transparentes.’ Com a via de injustiça eleitoral, um novo movimento de protesto emerge e com a particularidade de ser urbano, retirando assim a histórica base rural-militar.
Afinal a primazia da via militar não foi apenas maléfica para a Renamo, mas também contra a fundação da democracia em Moçambique. A Frelimo, partido que domina os órgãos eleitorais revelou seu uso ilegítimo da força que, até 2018, se confundia com a reacção do Estado para impor a lei e ordem. Na verdade, como estudos prévios revelam pelo mundo, os partidos incumbentes têm maiores chances de cometer fraude eleitoral pelo nível de controlo que exercem na função pública. No caso moçambicano, o domínio é de nível sufocante, dada a história do sistema monopartidário e subsequente Estado partidarizado por conta das regalias aliadas à manutenção do poder. Entretanto, as eleições mantêm a primazia da violência militar pós-eleitoral, não pela conquista do poder, mas pela apetência à manutenção do poder.
A Renamo está desmilitarizada, desmobilizada, mas pouco reintegrada, entretanto, sua liderança revelou-se incapaz de usar meios pacíficos na busca do poder. Seu uso da violência desvaneceu e as regalias Estado emergiram contra afogamento do partido. O Movimento Democrático de Moçambique (MDM) é de natureza civil e urbana desde a sua criação e apenas uma terceira força política. Mediante forte poder de liderança adquirido ao longo do tempo, mas bloqueado no congresso da Renamo em Alto Molócue eis a figura de Venâncio Mondlane que redesenha o esquema político em Moçambique.
Após afastamento do Congresso da Renamo e posteriormente afastado quando o CC desclassificou a candidatura da Coligação Aliança Democrática (CAD), Venâncio Mondlane buscou como última opção o apoio do Partido Optimista para o Desenvolvimento de Moçambique (PODEMOS). Mediante este cenário, o xadrez político sofre uma reviravolta, o desconhecido PODEMOS torna-se segundo partido mais votado com cerca de 20% nos resultados oficiais. Mesma tendência oficialmente apresentada pela CNE para Venâncio Mondlane.
Todavia, os actores políticos não estão confinados nos partidos concorrentes, mas sobretudo na CNE, oficialmente partidarizada e dominada pela Frelimo. Os resultados são contestados e o CC não se mostra apartidário, prefere levar o anúncio dos resultados para o último momento dos prazos legalmente estabelecidos. Ademais, perante o cenário político turbulento do qual faz parte, busca a todo o custo leccionar direito constitucional a todos os actores político-partidários, apartidários e a imprensa. Dos resultados oficiais que a CNE reconheceu serem problemáticos, O CC exigiu explicação que chegou de obscura, sem transparência, mas a vitória eleitoral prevalece fortemente inclinada à Frelimo. Com todas as manobras abertas e as desconhecidas, o que se pode esperar da possível validação dos resultados do escrutínio?
A primazia do uso da violência tende a favorecer a manutenção do poder, mas à beira do colapso. A PRM e UIR revelaram ser entidades partidarizadas, entretanto, a população frustrada com o actual estágio da economia, o contrato social está na incerteza. Ademais, as relações entre o povo e as multinacionais não é saudável. Kenmare foi ludibriada pelo governo e sancionada pelo povo; a SASOL está de costas voltadas com população de Inhassoro e Govuro; motivos de força maior prevalecem com a TotalEnegies em Cabo Delgado; a mineradora australiana Syrah invocou força maior em Balama. Quo vadis Moçambique?
A UIR e a PRM já revelaram seu cunho partidário pró-Frelimo. O Exército mostrou-se amistoso em relação ao povo durante as manifestações, mas tal não é tido como dado adquirido, pois o Ministro da Defesa Nacional não pareceu conciliador no início das manifestações contra os resultados apresentados pela CNE. Em Cabo Delgado, o terrorismo recuperou algum terreno durante o conflito pós-eleitoral e a parceria entre o governo do Presidente Nyusi e as forças ruandesas é uma incógnita. Que tipo de relação podemos esperar com ascensão do novo governo após a potencial validação dos resultados eleitorais? Quem irá proteger o novo Presidente? Estará Moçambique à beira de um regime militarizado?
As pragas do Egipto continuam a cair sobre nós, a última dos quais foram as calamidades que se abateram sobre as províncias do Norte, Cabo Delgado, sobretudo, e a província de Nampula.
Parece sermos um povo que seja destinado a lamentar-se, a ler o livro das lamentações, e a ter que fazer um exame de consciência e perguntar o que fizemos ao bom Deus e ao mundo para que todas as pragas caiam sobre nós.
Mas de vez em quando temos boas notícias.
As meninas da UP foram campeãs regionais. As meninas do Ferroviário ganharam o Campeonato Africano de Basquetebol. São notícias que nos confortam e alegram o nosso coração que tanto precisa.
Ontem, o Venâncio Mondlane, no seu encontro, como foi noticiado, com parlamentares da União Europeia, disse ter falado pela primeira vez com o Presidente Nyusi. Esta é uma boa notícia. Pegamos pela parte positiva, e é isso que conta, é que eles estão a falar. Nós agradecemos e encorajamos que este processo de diálogo possa continuar e que possa chegar a um bom fim, para que se encontre uma normalidade nova, quer dizer, transformada, que pretenda reformar tudo que é possível que tenha que ser reformado, mas que essa reforma se faça em paz.
Volto ao dilema de Kant. A ideia de que a revolução e as transformações são necessárias, mas que a gente tem que encontrar maneira para que elas se façam de maneira pacífica, sem perdas de vidas humanas, mais do que aquelas que já perdemos, quer por baleamentos, quer por motins, ou quer até por doenças, pessoas que não conseguiram chegar ao hospital, até para serem curados.
Viva este diálogo, que ele continue e que nos traga frutos. Nós moçambicanos estamos esperançosos e fazemos todo o barulho, como os "tifosi" no futebol, para que esta partida onde se joga a nossa vida, o nosso futuro, continue e que chegue ao bom termo.
Uma notícia hoje do semanário dominical de Joanesburgo “City Press” reza assim:
“Oficiais americanos de inteligência estiveram na África do Sul na semana passada para discutir a situação em Moçambique com seus colegas daquele país (…)
Uma enorme aeronave C-17 Globemaster da Força Aérea dos EUA causou comoção em Lowveld quando aterrou na semana passada no Aeroporto Internacional Kruger Mpumalanga.
De acordo com fontes da publicação
‘Rapport’, oficiais dos EUA realizaram várias reuniões com o Comité Nacional sul-africano de Coordenação de Inteligência (Nicoc) (…)
Ao mesmo tempo, um Airbus A400M da Força Aérea Real do Reino Unido aterrou em Gaborone, Botswana, na última sexta-feira (13). O indicativo de chamada desta aeronave mostra um voo operacional de emergência.
De acordo com fontes da aviação, várias reuniões foram realizadas no aeroporto de Lanseria nos últimos dias para discutir a possível evacuação de emergência de várias embaixadas e estrangeiros em Moçambique”.
Ainda hoje, domingo, foi notíciado que o Reino Unido avisou os seus cidadãos para evitarem viajar para Moçambique.
Registe-se, pois, este alerta. Por outro lado, a colocação de meios de evacuação nas próximidades de um país com uma escalada de violência pós-eleitoral é um indicador de que a situação tende a agravar-se.
De fontes seguras, “Carta” sabe que o exército moçambicano está sob alerta máximo.
Fontes da inteligência militar suspeitam que, nos últimos dias, poderá ter havido entrada de armas e munições através da fronteira de Ressano Garcia.
De facto, na quarta-feira, dezenas de carrinhas com carga pesada entraram em Moçambique sem passarem por qualquer procedimento de fiscalização, aproveitando-se da “moratória fiscal” “decretada” por VM7 a partir do seu desconhecido lugar de asilo.
Houve quem assumisse que eram transportadores de “frescos”, mas nem todos.
Na quinta-feira, por suspeitas de entrada de armas e contrabando em Ressano Garcia, as Forças de Defesa e Segurança reforçaram sua presença em Ressano, reprimindo os manifestantes com tiros e gás lacrimogéneo, demovendo a entrada ilegal de viaturas e permitindo o fluxo dos camiões com ferro e crômio para o Porto de Maputo.
No dia seguinte, sexta-feira, foram dezenas de viaturas militares a Maputo, também por via da mesma fronteira, por caminho de ferro. “Carta” soube que essas viaturas militares chegaram do Burundi e a encomenda não é recente.
Estamos perante alertas que apontam para o dia (?) do anúncio do Acórdão do Conselho Constitucional sobre resultados das eleições de Outubro como um dia de eventual violência exacerbada. Parece claro que o campo de Venâncio Mondlane, em caso de o CC confirmar que ele não ganhou, está predisposto a elevar a voz do seu protesto. Para VM7, “derrota” é uma palavra desusada.
Estes dias de canícula pós-eleitoral veio-me à memória o Professor José Negrão, falecido académico e proeminente activista social moçambicano. A memória em questão não se prende com assuntos eleitorais, mas sim com a habilidade de pensar e agir estrategicamente, sobretudo na criação e gestão das condições necessárias para que um determinado propósito siga com tranquilidade o curso previsto, quer anulando ou mitigando, antecipadamente, as potenciais ameaças, quer capitalizando oportunidades para a respectiva viabilização.
Nesta linha, partilho um episódio por mim vivenciado, enquanto membro de um grupo de trabalho, em 2003-2004, quando foi do processo de participação da sociedade civil na monitoria do plano governamental de redução da pobreza absoluta, cuja liderança – da coligação da sociedade civil, denominada G20, que fora criada para o efeito, envolvendo vários segmentos da sociedade, incluindo o sector privado, sindicatos, academia e confissões religiosas, fora as tradicionais ONGs – esteve à cargo do Professor Negrão.
Nessa altura, o país ainda vivia a ressaca da tensão pós-eleitoral das eleições de 1999, as consequências das cheias de 2000 bem como o habitual frenesim da proximidade e realização das eleições, no caso das autárquicas de 2003 e as gerais de 2004, contando estas últimas com a emergência de Armando Guebuza como o candidato antecipado do partido Frelimo, então assumindo o cargo de Secretário-geral do seu partido.
Ainda nessa altura, destacavam-se na influência da opinião pública, entre outras figuras: o jornalista Machado da Graça com a sua ''Talhe de Foice'' no Jornal Savana; o jornalista Salomão Moiana com os seus editoriais no Jornal Zambeze; e o músico José Mucavele que, repetidamente, na imprensa, alertava sobre o potencial (neo)colonialismo nos processos de governação nacionais, tendo sido, nesta linha, crítico da candidatura do Doutor Gagnaux , um moçambicano de raça branca e de ascendência suíça, para edil da capital do país.
O ponto: numa das reuniões do grupo de trabalho de preparação para um encontro da cúpula do G20, o Professor Negrão sugeriu que convidássemos as três figuras acima para começarem a participar na reunião da cúpula. Nas reuniões os três não falavam. O Machado da Graça até passava o tempo a desenhar. Numa das reuniões de balanço do grupo de trabalho acabei por perguntar ao Professor Negrão qual era a mais-valia em ter os três nas reuniões do G20.
Em resposta, o Professor Negrão disse que era estratégico tê-los próximos e mesmo calados do que distante e a hostilizarem. O argumento: para o Professor Negrão uma ''Talhe e Foice'' de Machado da Graça a questionar se o G20 não seria mais uma encomenda ou organização de quadros do partido Frelimo, um editorial do Salomão Moiana a questionar a transparência e integridade da iniciativa, e uma entrevista de José Mucavele, a acusar que se estava diante de mais uma iniciativa neocolonial ocidental (sublinhar que o Professor Negrão era de raça branca), seriam mais do que suficientes para derrubar as boas intenções do G20.
Dito isto, e embora tenha mencionado no início de que a memória que me acossara não estava directamente relacionada com assuntos eleitorais, mesmo os decorrentes da actual tensão pós-eleitoral, agora percebo que tem, e tem muito. Mas, como diz um outro professor e académico, Elísio Macamo: ''Pensar dói!''. E ''Pensar e agir estrategicamente'' deve doer ainda mais, tal a ausência generalizada na política da Pérola do Índico.