Os 4Gs que aqui são discutidos são resultado de uma hermenêutica elaborada para tentar trazer a correlação entre factores que concorrem para o actual estágio do nosso país.
O primeiro “G” aqui trazido é referente a Governação. Governação esta que tem sido marcada por altos e baixos; por momentos de algum êxtase e também de alguma baixa efervescência e fulgor.
Numa análise transversal dos ciclos governativos vividos desde a instituição do multipartidarismo no país, os modelos de governação adoptados tem pautado por uma centralidade gritante, falta de continuidade e por vezes até falta de clareza do que se pretende. A ideia de governação e a prática da mesma tem sido a raiz de muitos dos nossos problemas que vão se replicando em cadeia.
Durante o período da guerra dos 16 anos, o país enfrentou períodos de grande instabilidade, sabotagem e de incertezas. Todavia com maior ou menor dificuldade conseguiu superar e avançar. Fomos mais país porque perseguíamos os mesmos objectivos (pelo menos aparentemente) e acreditávamos que os discursos iam de encontro com a realidade que tanto almejávamos.
De forma pragmática oferece-me dizer que a nossa governação é de mais um manancial de intenções e de campanhas, mas presa em camisas de força e interesses que atentam a solidificação e materialização dos verdadeiros desígnios governativos.
Entre a intenção, o plano e a acção há um quase vazio operacional. Este quase vazio esbarra com os esforços de erguer um país alicerçado no Estado de Direito, na ideia de progresso, de participação e integração de actores de diferentes esferas.
O período que se seguiu as primeiras eleições gerais e multipartidárias foi de elevada expectativa; de aparente abertura e tolerância política e também de grande desconfiança sobre os actores e partidos políticos emergentes. Vou chamá-lo de período incipiente da governação. Período onde tivemos um país que experimentou pela primeira vez ideia de um modelo democrático (ainda que mal cozinhado) e a reunião de vários partidos políticos diferentes (uns com muita expressão ideológica e outros nem por isso), movidos pelo trust fund criado para apoiar os emergentes e pelo sonho de fazer parte do tacho governativo.
Neste período que apelido de incipiente, tivemos uma oposição política da mais diversificada, com a confluência de inúmeros partidos e actores políticos, embora com ideias menos elaboradas e algum sensacionalismo a mistura. Tivemos mais discussão e algum progresso no campo das liberdades de expressão e respeito pelos direitos humanos. Acreditávamos que as bases para um futuro melhor e mais inclusivo estavam lançadas.
Segue-se o período em que vou denominar de período áureo da governação em Moçambique – com a ideia de praxis e pragma governativa viva e muito interventiva. Este período começa com uma aparente ruptura com o anterior (pelo menos no aspecto discursivo e na abordagem). O discurso do dia passa por uma discursiva aglutinadora, empreendedora e de ódio pela pobreza. Sob a guisa da luta contra a pobreza absoluta, o país conheceu um volume de incentivo ao investimento interno e externo; de realizações e de criação das bases para uma classe média aparentemente capaz.
Mas como as histórias de amor nem sempre tem um final feliz, o que tinha tudo para ser digno de júbilo e apologia, terminou num pesado fardo para o povo moçambicano – as dívidas ocultas. Um fardo de difícil digestão e de uma complexidade inexorável.
O terceiro momento governativo pós instauração da democracia multipartidária, inaugura-se com uma -vibrante e apoteótica mensagem de confiança – “Eu confio em ti” – e, - “É contigo que dá certo”.
Um momento em que o fardo herdado do período áureo cria uma tremenda descrença em relação a continuidade e prosperidade, pois as dívidas ocultas, o abandono dos principais doadores ao OGE, a continuidade da crise económica e social, sem contar com os eventos climáticos severos, dilaceraram o tecido social, económico e humano do país. As liberdades individuais e o livre associativismo sofrem um revés, e o espaço cívico não é mais um espaço de encontro de ideias e de discussão livre.
É um momento em que a governação rima com o gás – que é o próximo G do nosso enredo.
O segundo “G” do nosso enredo é o Gás – baptizado por uns, inicialmente como autêntica bênção e olhado por outros como uma maldição. As enormes reservas de gás descobertas na Bacia do Rovuma, mudaram a geografia política e a economia política dos recursos minerais na região, no continente e no mundo. Em termos práticos o gás surge como o elemento que pode ou que poderia transformar o país numa réplica do modelo de crescimento do Dubai – uma espécie de um Emirado Árabe na zona Austral do continente. Acreditou-se que o gás poderia ser o messias e mudar a nossa já penosa realidade marcada por muita pobreza, desenvolvimento lento, fome e doenças.
Alguma literatura desenvolveu a teoria de maldição de recursos (resource curse), onde se defende a ideia de que países com ocorrência de consideráveis reservas de recursos minerais, tendem a experimentar instabilidade política, desenvolver o efeito gastador e conhecer possíveis focos isolados ou localizados de guerras e conflitos militares. Verdade ou não, o país debate-se desde 2017 com a insurgência e o conflito extremista na província nortenha de Cabo Delgado – por sinal a província que aloja as maiores quantidades de hidrocarbonetos do país. De simples casos de polícia como foram chamados na altura, a conflitos religioso, os conflitos evoluíram ao ponto de Distritos inteiros serem capturados e sitiados pelos terroristas que nunca reivindicaram nada palpável. O terrorismo periga não apenas a província de Cabo Delgado, mas também o país como um todo e a região Austral pois pela complexidade pujança demonstrada ele não respeita fronteiras.
O terceiro “G” aqui apresentado é a Guerra. Ainda que muitos preferem ignorar que estamos em estado de guerra, quando o número de mortes e de deslocados ascende o milhar ou milhares, há que encarar o conflito com outros olhos. E infelizmente, o que se vive em Cabo Delgado é uma guerra que desafia muitas lentes e muitos livros, mas mata, fere e deixa um rasto de destruição tremendo.
Por coincidência ou não o foco escolhido para se derramar o sangue de inocentes foi a província que hospeda um dos maiores se não o maior projecto de exploração de gás offshore do continente africano e do mundo – Cabo Delgado. Uma odisseia que dura quase a cinco anos e que já custou a vida a milhares de moçambicanos e vitimou outras dezenas e centenas de milhares de moçambicanos, incluindo crianças, mulheres, raparigas e idosos. Uma guerra horrível de desmembrou famílias e destroçou a unidade e cooperativismo característico da nossa sociedade. A guerra criou novas fronteiras físicas e mentais; destruiu famílias inteiras e criou mais crianças soldado para alimentar a sede fundamentalista e radical dos insurgentes.
Este conflito adia não apenas o crescimento económico e desenvolvimento do país que figura entre os mais pobres do mundo com índice de desenvolvimento humano baixíssimo e um PIB per capita aquém da média regional, continental e mundial. Mas adia o sonho de sermos mais país, mais nação e mais humanidade.
A guerra é o que nenhum moçambicano nacionalista cogitou para o país, mas parece ser a saída que os donos do mundo viram para empobrecer ainda mais um país pobre e uma oportunidade que os senhores da guerra viram para manter sua hegemonia e poderio sobre os mais desfavorecidos. A guerra é um dos “G” mais complicado e doloroso de abordar. É assunto sensível e delicado – Na verdade é até proibido falar dele para leigos como eu – ainda assim falei. E como leigo afirmo que esta guerra é apenas um lado de uma moeda sem valência para os moçambicanos, mas com grande valor e dividendos para várias contrapartes.
O quarto “G” - o Género é dos mais falados contemporaneamente e igualmente menos percebido e as vezes combatido pelos mais incautos. Urge repensar a narrativa sobre o género e falar dele não como teoria apenas, mas, como parte integrante e integral das relações sociais homem-mulher; respeitá-lo e aplicá-lo na prática.
Os discursos em torno do género são recentes em Moçambique e uma breve retrospectiva pode situar-nos nos finais dos anos 80. Porém antes dos anos 80 já se falava de forma tímida de movimentos de mulheres na política, na academia e nas organizações sociais. Expressões como "Isto é uma questão de Género!" "O Género dentro do trabalho..." "O Género e a Política..." "A construção de Género... entre outras, foram ganhando espaço nos discursos e agendas.
Ao tentar fazer este rasgo retrospectivo concluímos que os últimos 20 anos foram de lançamento e da socialização do debate sobre o género e de uma construção identitária do mesmo. Era preocupação inicial clarificar a dicotomia movimento de mulheres e movimento feminista para de seguida lutar pela inclusão do género na vida quotidiana, seja ela doméstica como institucional e desconstruir as narrativas sociais existentes. (...) Visualiza-se a mulher, com esta perspectiva, dentro dos movimentos gerais, tentando apontar para a ocupação de um segmento importante e, qualitativamente, numeroso no âmbito do Macro-social, ou seja. 'Mulher: Participação e Representação Política', podendo ser este o slogan deste período" (Bandeira e Oliveira, 1990, p.5).
Contemporaneamente, conseguida a sedimentação e aceitação por uma franja social e política, é chegada a hora de incluir o género na vivência social desconstruindo a base teórica que sobre ele fomos educados e ensinados a pensar. Não advogo isto por simples quesito de números ou de imposição mas por reconhecimento e valorização desta luta de décadas e por uma justiça social que respeite a diversidade e de valor as conquistas alcançadas da independência aos nossos dias.
Para terminar, o extra “G” é de gratidão por ainda poder escrever livremente e ver meus desvaneios publicados e lidos na minha pátria amada.
Por Hélio Guiliche (Filósofo)