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Teodato Hunguana

Teodato Hunguana

O antigo juiz-conselheiro do Tribunal Constitucional, Teodato Hunguana, insurge-se contra o legalismo eleitoral, que remete para os tribunais a aferição do sufrágio universal, e sai em defesa de Samora Machel Júnior e de Mulweli Rebelo contra os seus detratores internos na Frelimo. Num texto escrito no quadro do actual contexto de crise eleitoral em Moçambique, e partilhado com “Carta”, Hunguana abre aquele que deverá ser, a nosso ver, o debate central nos próximos temos em matéria de gestão eleitoral: como reverter a actual judicializacão do voto e devolver a sua soberania perdida (a soberania do voto)? 

 

Eis o texto integral:

 

As eleições autárquicas, cujo desfecho definitivo só irá acontecer com as decisões do Conselho Constitucional, e enquanto não acontece, vão dando espaço, não só para o que é mais visível, que são as manifestações de repúdio ou de celebração, de uns e de outros, como de revelações sobre como elas foram realmente organizadas e decorreram, e também de ulteriores desenvolvimentos que vêm ocorrendo á volta e por causa das mesmas. Tudo isso abre, amplia e alimenta, o espaço para análises e comentários nas redes sociais, nos órgãos de comunicação social, públicos e privados, e em conversas a todos os níveis. Pode-se afirmar, sem grande margem de erro, que este é o assunto dominante da vida nacional, desde a família, célula base da sociedade, até ao espaço público mais amplo, de forma contínua e ininterrupta, desde o dia 11 de Outubro.

 

Por isso, quer se queira quer não, este é um assunto que não precisamos de o procurar, porque ele vem a nós, nos persegue, nos entra em casa, nos inquieta, interpela e questiona, não deixa ninguém indiferente. Obriga a preocuparmo-nos, a reflectir seriamente. Tanto que não é lícito presumir que o silêncio de quem quer que seja, só possa ter um significado, qual seja…de assentimento, concordância ou cumplicidade. Esse não é o único significado, longe disso. E não é por várias razões objectivas, já devidamente identificadas por quem se esforçou por analisar as razões de um silêncio que é institucional e organizado como componente essencial de um sistema de poder. A partir de certos partidos, que não careço de nomear, e, depois, na sociedade e no Estado. Portanto, além das vozes em silêncio, de que se tem falado, temos vozes silenciadas, inúmeras, e para ouvir estas vozes basta ter ouvidos de ouvir e curar em ouvi-las. Mas deixemos este intróito sobre o silêncio e vamos adiante ao que interessa, até porque, no que me diz respeito, trata-se, uma vez mais, de romper esse silêncio. Então vejamos:

 

Não obstante as questões que envolvem este processo eleitoral, e o tornam problemático, não sejam de todo novas, por causa das mesmas, vemo-nos de repente na emergência de um momento decisivo e de grande perigo sobre o nosso futuro colectivo, sobre o destino do nosso País, na pendência de decisão sobre essas questões.

 

Não pretendo abordar aqui as questões de ordem estritamente constitucional ou legal, de foro criminal, meramente policial, organizacional ou procedimental. Importantes que são, essas questões têm merecido muita atenção, abordagem e discussão, e esperemos que do Conselho Constitucional nos venha finalmente a mais elevada e profunda consideração, ponderação e decisão sobre as mesmas. E não apenas de um ponto de vista estritamente legal ou legalista, como veremos adiante.

 

O que pretendo aqui reter, e relevar, é a abordagem de um ponto de vista e de um ângulo que, salvo poucas excepções, não tem sido privilegiado, sendo no entanto, a meu ver, o que é de maior relevância, visto que deve preceder todo o processo, deve acompanhá-lo em todo o decurso, e deve ser preponderante e determinante em todas as decisões que se tomem, até ao seu desfecho. Refiro-me ao fundamental ponto de vista ético e moral.

 

Deste ponto de vista, quero reportar-me em primeiro lugar ao Comunicado da CEM, pela inquestionável respeitabilidade e credibilidade dessa instituição na sociedade moçambicana.

 

Antes de mais a Igreja Católica não se limitou ao papel de simples espectador do desenrolar do processo. Tal como em eleições anteriores, como faz questão de nos lembrar, a Igreja Católica fez parte do grupo de observadores eleitorais da Comissão de Justiça e Paz, que, por sua vez integra o Consórcio Eleitoral «Mais Integridade».

 

E é nessa condição que o Comunicado da CEM, além dos «ilícitos e irregularidades eleitorais, uns mais graves que outros, aqueles reportados oficiosamente e difundidos pelos Mídias sociais, e outros reportados pontualmente pelos observadores eleitorais», nesse contexto, acolheu relatos essencialmente sobre o seguinte:

 

- destruição de materiais de campanha, confrontos violentos, pessoas presas injustamente;

 

- actuação questionável dos que deveriam garantir a ordem e segurança das pessoas;

 

- diversidades de irregularidades na votação, contagem e justeza dos resultados pronunciados;

 

Neste cenário, constata, com muita preocupação, o crescimento dos níveis de incompreensão e de expressões de descontentamento no povo, sobretudo dos que se sentem trapaceados.

 

Face a esta situação, os Bispos Católicos de Moçambique fazem um veemente apelo «a todos os homens e mulheres de boa vontade para manter a PAZ, como valor supremo da nossa convivência e cidadania”, o que deve, segundo eles, compreender necessariamente:

 

1-Diálogo entre o Governo, os órgãos de gestão eleitoral, os Partidos políticos, a sociedade civil, o Conselho Constitucional, o Conselho de Estado;

 

2- Reposição da legalidade, sabendo que não há legalidade sem verdade, fazendo com que a força da lei seja a que dirima e ajude a superar toda a possível manipulação de resultados ou fraude eleitoral;

 

3-Busca da justiça, que é o maior caminho para a paz e para a convivência saudável e fraterna de todos os moçambicanos;

 

4-Respeito da razão e da ética para que se evite por todos os meios qualquer possibilidade de derramamento de sangue entre irmãos;

 

5- Oração, uns pelos outros, que nos une como criaturas do mesmo Deus nas diferentes religiões existentes no país;

6- Aos órgãos eleitorais, a reverem com responsabilidade e justiça todo o processo de apuramento dos resultados, garantindo que os resultados sejam o reflexo verdadeiro dos votos depositados nas urnas, e, portanto, da vontade do povo;

 

7- Às lideranças do partido beneficiário desta crise eleitoral que chamem à razão os seus membros e simpatizantes para aceitarem a contestação dos resultados como parte do jogo democrático, multipartidário e inclusivo, e colocarem a viabilidade política, social e económica do país acima dos interesses partidários de uma mera vitória eleitoral questionável;

 

8-Às lideranças dos partidos que protestam os resultados eleitorais, a que chamem à razão os seus membros e simpatizantes a fazerem-no de forma pacífica, seguindo os princípios consagrados na Constituição da República e os trâmites legais, sem violência;

 

9-As Forças de Segurança assumam o seu papel de protecção do cidadão, independentemente da sua filiação partidária e zelem pela manutenção da lei e ordem, sem extremismos, não intimidando nem favorecendo ninguém;

 

10-Que não falte a ninguém a coragem de fazer presente a justiça que conduza os moçambicanos à concórdia e convivência saudável como nação.

 

Transcrevi, no que julgo serem todos os seus pontos essenciais, este posicionamento dos Bispos Católicos, por duas razões: por um lado, a consciência que tenho de que nos encontramos a caminho do pico de uma crise, que não cessou de se agravar, num crescendo que agudiza a iminência de um perigo catastrófico sobre nós; por outro lado a consciência de que é justamente nesse posicionamento dos Bispos Católicos que está a chave para que o perigoso curso dos acontecimentos não se torne irreversível, e retomemos rapidamente o caminho conducente à normalidade e à paz.

 

Com efeito, a complexidade e os perigos desta crise não se compadecem com atitudes de surdez e cegueira, de obstinação, arrogância e soberba, hostis ao diálogo profícuo e necessário.

 

Ainda menos se compadecem com o refúgio em tecnicidades de ordem legal, ignorando ou violando o princípio de que a legalidade tem que assentar na verdade, e que não há legalidade sem a verdade. A legalidade que nos impede o caminho da verdade pode ser legalismo mas não é legalidade.

 

Assim como não haverá justiça sem a verdade. Donde, a paz só será paz verdadeira se for o fruto da justiça.

 

Todos sabemos que não existe senão uma ética, essa que tem na verdade o alicerce fundacional. Neste sentido a ética confunde-se com o Bem, e tudo o mais que não se identifica com ela, ou lhe é contrário, não é outra coisa senão o Mal, as forças do mal, as forças negativas, da destruição, contrárias à sociedade, ao homem, à Humanidade.

 

Ninguém está acima ou à margem da ética, como quem possa dispensar a luz do sol para ter como suficiente a luz da sua própria lanterna ou candeeiro.

 

No curso cego de uma continuação da guerra por todos os outros meios, perdemo-nos da razão e da ética que nos ditam que não há pior vitória do que aquela que se alcança, ou se arranca, contra o seu irmão ou compatriota. Porque ela só nos pode votar à desgraça da continuação da guerra.

 

Por isso este ponto de vista dos Bispos Católicos tem carácter ecuménico, e está virado para todos os cidadãos, independentemente da sua filiação religiosa, política ou partidária, da sua etnia ou nacionalidade.

 

Esta é a ética fundamental que vincula a Sociedade e o Estado, de tal sorte que é imperativo que todos, cidadãos, instituições, partidos e Estado, a tenham como ponto de partida para enfrentar e responder aos desafios que o presente processo eleitoral nos coloca.

 

«A César o que é de César, ao Povo o que é do Povo»

 

Chegados a este ponto, lancemos mão daquele ensinamento segundo o qual se deve «Dar a César o que é de César», significando isso que os cidadãos têm obrigações para com o Estado, cujo cumprimento é irrecusável. Os cidadãos pagam impostos, taxas e outras contribuições ao Estado. Porém esta não é uma relação unilateral mas contratual. É que, sendo eles cidadãos e não meros súbditos, o Estado tem em contrapartida obrigações incontornáveis para com eles. Donde que seja imperativo que «César dê ao povo o que é do povo». E entre o que «é do povo» avulta, em lugar cimeiro, respeitar e fazer respeitar a Constituição e fazer justiça aos cidadãos. E nisto se resume toda a ética, razão e justiça, e toda a lei.

 

Na situação com que nos confrontamos, a das eleições, isso significa garantir que prevaleça a vontade do povo expressa nas urnas, e não qualquer outra coisa, fruto de manipulações, de fraudes, ou de decisões tomadas por quem se refugie e enfie a cabeça nos labirintos, ou nos becos e impasses legalistas, criados para impedir ou dificultar o caminho da verdade. Com o fim de não se confrontar com a verdade da vontade expressa nas urnas, e assim passar por cima ou à margem da mesma.

 

Assumindo que «a vontade do povo é a vontade de Deus», é imperdoável agir ou interferir, a qualquer nível que seja, institucional ou pessoal, para a perverter! Ou não agir para a fazer prevalecer!

 

Assim, se César não der ao povo o que é do povo, César estará a provocar o tumulto e a revolta daqueles cidadãos, que não mais são súbditos, e que, eventualmente, em algum momento, podem reivindicar e chamar a si a soberania, de que são donos, para decidir sobre César, e para decidir sobre o seu próprio futuro. Portanto, ao fim do dia, terá sido César quem terá criado este estado de coisas, e não os cidadãos.

 

Alguns outros pronunciamentos

 

Apesar de o pronunciamento dos Bispos Católicos merecer a especial atenção que eu dei, não é o único a assinalar, deste ponto de vista ético. Com efeito, e deste ponto de vista, são para mim de destacar ainda os pronunciamentos que lemos ou ouvimos de Samora Machel Jr, de Mulweli Rebelo, e de Brazão Mazula. Qualquer deles pronuncia-se assente fundamentalmente no imperativo ético que é, essencialmente, o dos Bispos Católicos. Senão vejamos:

 

Samora Machel Jr, depois de reconhecer que «por todo Moçambique o clamor do povo é de desacordo perante os atropelos flagrantes à integridade das escolhas feitas pelos eleitores», e de declarar o seu «total desacordo e desdém aos actos antipatrióticos, profundamente antidemocráticos» que «…comprometem a paz que se deseja para todo o povo Moçambicano, independentemente das opções partidárias», e de lamentar que que «em momentos cruciais da nossa vida, como são as eleições, interesses pessoais e de grupo se sobreponham ao desiderato colectivo, pondo em causa o nome do Partido Frelimo e da nação que um dia ousamos edificar», conclui que: 1- porque aquelas «acções e comportamentos minam a confiança que os cidadãos depositam nas instituições «…é fundamental que se esclareça, antecedido de uma exaustiva investigação para identificar os responsáveis» e que «Sem excepções os culpados devem ser levados  à barra da justiça..»; 2- que para «..o Partido Frelimo, é imperativo do momento a educação e qualificação de seus membros sobre a importância do respeito aos princípios democráticos, do estado de direito e a vontade do povo expressa nas urnas.»; 3-que «A  nossa postura em relação aos futuros processos eleitorais deve ser guiada pela ética e integridade, em vez de sentimentos meramente partidários»; 4- que «Não podemos, nem devemos tolerar nas nossas fileiras, indivíduos que cometeram actos condenáveis, pois a nossa conduta não se coaduna com este tipo de postura»; 5-que «Devemos continuar a trabalhar incansavelmente para assegurar que a visão e os princípios fundamentais do partido sejam restaurados e protegidos».

 

Mulweli Rebelo, no mesmo espírito, diz-nos na sua carta: 1-«Estamos actualmente num processo de eleições, em que está claro que o partido está envolvido em actividades questionáveis, talvez por saber que está prestes a perder. Isto não é algo que pode ser ignorado ou justificado»; 2- «Pessoalmente, sinto vergonha por fazer parte de um grupo elitista que continua a apoiar cegamente um partido ignorante e arrogante, sem uma avaliação crítica das suas acções, mas pelos benefícios pessoais e vantagens…»; 3-«Não foi para isto que nossos pais lutaram»; 4- «Que legado queremos deixar para os nossos filhos? De lambebotismo? Covardia de pais que seguiram a direcção de corrupção e da bajulação em benefício próprio? Como jovens podemos questionar juntos e tomar acções que busquem mudanças, escolhas que estejam alinhadas com a justiça, a transparência e o bem-estar não apenas deste grupo»

 

Estes são dois exemplos dos jovens da geração seguinte à minha geração, a geração dos seus pais. Sem dúvida que eles se situam na continuação, e reivindicam a restauração e preservação, dos valores e princípios pelos quais os seus pais tanto lutaram e se sacrificaram. O seu posicionamento significa a sobrevivência e perenidade desses princípios e valores fundamentais e é à luz dos mesmos que analisam e avaliam a situação que vivemos. Construindo e argumentando com solidez e elevada consciência cívica e patriótica, com maturidade.

 

O ponto de convergência entre o pronunciamento dos Bispos Católicos, e agora também o do Conselho da Igreja Anglicana (que acabo de conhecer pelos resumos dos telejornais já depois de terminado este meu texto), e os pronunciamentos de Samora Machel Jr e Mulweli Rebelo, é justamente a razão e a ética que devem iluminar-nos e guiar-nos a todos, cidadãos, instituições, Estado, para fazer prevalecer a verdade da vontade expressa nas urnas, ou seja, a vontade do Povo.

 

Finalmente, e neste contexto, o posicionamento de Brazão Mazula é uma inestimável contribuição, em convergência com as que antecedem, na medida em que:1- dá-nos os instrumentos de análise que permitem compreender melhor como funciona todo o sistema, pois que se trata de um sistema e de uma engrenagem; 2- de como nada acontece acidentalmente, como se fossem actos isolados, por erro ou por iniciativa individual, mas de forma orientada, organizada, portanto premeditada.

 

Brazão Mazula, ao introduzir os conceitos de uma CNE formal e de uma CNE real, de um STAE formal e de um STAE real, ilustra como, na prática, funcionam os mecanismos daquilo que, no contexto da análise da separação dos poderes no nosso País (isto é, da ausência real da separação dos poderes e da não despartidarização do Estado), eu designei de «centralismo presidencialista absoluto».

 

E a grande vantagem de Brazão Mazula é que ele conhece bem estas instituições, esteve envolvido no momento da sua emergência, do seu problemático parto. Acompanhou depois, como nós, o seu crescimento, e constatou, também como nós outros, a forma como a cada passo, a cada alteração, seja da Constituição seja das leis pertinentes, essas instituições foram sendo ajustadas de forma útil ao sistema de «centralismo presidencialista absoluto». Para podermos entender melhor como o problema não está propriamente nelas, sem que isso signifique isentar quem quer que seja das suas responsabilidades pessoais e de cidadania.

 

Não encerrarei este texto que já vai longo para o que era minha intenção( infelizmente não tive tempo para ser mais breve), sem um apontamento crítico a algumas vozes que criticam Samora Machel Jr e Mulweli Rebelo, por falarem «fora das estruturas». Na realidade só por indesculpável distracção ou por declarada má-fé se pode fazer tal crítica. É que por um lado se fala de um «silêncio ensurdecedor» de dentro da Frelimo, mas por outro lado quando se fazem ouvir corajosamente estas vozes, que são bem de dentro da Frelimo, lançam-lhes essa crítica. Sejamos honestos…ou somos intelectuais, analistas, comentaristas, jornalistas, livres e independentes, ou então se é para exigir publicamente que os membros doa partidos não saiam da caixa e se mantenham no silêncio do «falar só nas estruturas», acho que se deviam candidatar a membros dos «grupos de choque» organizados nos partidos para manter essa «lei e ordem». E, para não me alongar mais, permito-me remeter esses críticos ao capítulo sobre o «Debate interrompido» do Volume I de «À sombra da Utopia», de José Luís Cabaço, e ao comentário que eu fiz sobre o mesmo em entrevista ao semanário Savana.

 

Teodato Hunguana

 

26.10.23