Inspirado no filme Roman J. Israel, Esq., interpretado pelo grande Denzel Washington, no qual um advogado se vê forçado a processar a si mesmo, este documento serve como minha própria acusação, para que os meus algozes depositem aqui todas as suas indignações. Assim, nos meus textos futuros, poderemos discutir ideias sem ataques pessoais.
Acusado: Rui Lamarques
Crime: Pensar, escrever e questionar sem autorização
Juiz: Opinião Pública Enviesada
Procuradores: Os Verdadeiros e Únicos Guardiões da Verdade
Acusações
- Crime de falar de temas irrelevantes enquanto o país colapsa.
O réu é acusado de perder tempo a debater temas que não têm a aprovação do Ministério das Prioridades Populares. A denúncia exige que ele aborde exclusivamente tópicos de extrema gravidade, sob pena de ser considerado cúmplice do sistema.
- Crime de questionar sem ser autorizado pela maioria
O réu teve a audácia de escrever um texto sem antes submeter a sua opinião à validação dos verdadeiros representantes da indignação nacional.
- Crime de não identificar os verdadeiros culpados
Ao invés de atacar os alvos correctos indicados pelo Ministério da Indignação Se(Co)lectiva, o réu desviou a sua atenção para questões secundárias, o que demonstra uma perigosa falta de alinhamento com a cartilha oficial da revolta.
- Crime de defender um criminoso de Internet
“Criminoso é o autor deste post. No Facebook, o Unay Cambuna é um criminoso de longa data. Haver um jornalista que vem apoiá-lo é duplamente criminoso.”
O réu cometeu o grave erro de exigir tratamento digno a um moçambicano. Tal atitude o torna-o automaticamente cúmplice dos supostos crimes cometidos por essa pessoa.
- Crime de não compreender a Cultura do Povo
“Quando as pessoas vêem o mundo apenas pelos seus olhos (privilegiados), jamais irão perceber a atitude dos outros (os tais diferentes).”
O réu foi formalmente acusado de ter nascido num contexto que não sofreu dificuldades o suficiente para opinar sobre o comportamento de outras pessoas. Para sanar esse erro, recomenda-se que ele abdique de seu pensamento crítico e aceite que o comportamento inadequado é sempre culpa da sociedade, e nunca do indivíduo.
- Crime de esquecer que a anarquia já começou há 50 anos
“O caos que se vive hoje em Moçambique é para estabelecer uma nova ordem no país!!!”
O réu incorreu no erro de apontar a desordem em situações triviais, ignorando que o verdadeiro colapso do país já está em curso e tem objectivos superiores. Sendo assim, está proibido de discutir qualquer tipo de problema social ou urbano sem antes reconhecer formalmente a existência da Grande Anarquia.
- Crime de exigir coerência e educação cívica
“Se queremos ter cidadãos que sabem se comportar, temos de garantir primeiro a qualidade de educação, sim, educação!”
Ao sugerir que comportamento e civilidade dependem de educação e não apenas de contexto socioeconómico, o réu cometeu um acto de opressão epistemológica. A sua visão elitista desconsidera que comportamento é apenas um reflexo da marginalização social e nunca uma escolha individual.
- Crime de sugerir que há problemas além das Eeleições
“A anarquia que a mim assusta, é ver um indivíduo a ser empossado como ministro da justiça por ter ajudado de forma fraudulenta um cidadão a ascender ao cargo de Presidente da República.”
O réu é acusado de debater temas variados, quando todos sabem que o único problema digno de atenção é o processo eleitoral. Qualquer iniciativa de discutir outros problemas sociais é vista como uma tentativa de desviar o foco da luta principal.
- Crime de errar em público
O réu errou! E se errou uma vez, deve ser para sempre desacreditado. Uma das grandes acusações contra o réu é a de ter cometido o grave pecado da falibilidade. Ele já interpretou sinais de maneira equivocada, já previu cenários que não se concretizaram e, como qualquer ser humano, já formulou hipóteses que o tempo desmontou. Quando os primeiros indícios de uma possível manobra para um terceiro mandato surgiram, o réu foi dos que suspeitaram. Parecia-lhe plausível, dados os discursos de figuras próximas ao poder e a forma como certos eventos políticos se desenrolavam. Mas os desdobramentos provaram outra coisa. Ele estava errado.
Pedido do Ministério Público Popular:
Diante de tais crimes, solicita-se que o réu aceite humildemente sua condenação e se submeta à penitência digital, que pode incluir:
- Silêncio absoluto sobre temas controversos. O réu só poderá se manifestar sobre assuntos que não gerem debates acalorados.
- Autocensura preventiva antes de cada publicação. Antes de escrever qualquer coisa, o réu deverá submeter suas ideias ao crivo do Ministério da Verdade Popular.
- Retratação pública. O réu deve admitir que os seus questionamentos foram inadequados e reafirmar o seu compromisso com o pensamento coletivo.
Defesa do Réu:
O réu declara-se culpado de ter opinião própria, mas nega as acusações de má-fé. Argumenta que questionar faz parte da essência do pensamento crítico e que, se pensar for crime, a prisão do conformismo será o destino de todos.
Diante disso, submete-se ao julgamento popular e aguarda sua sentença nos comentários.
Em suma: O réu enfrenta a peculiar maldição de ser compreendido, ao mesmo tempo, como um traidor da pátria e um inimigo da revolução, um defensor do status quo e um subversivo perigoso. Os seus algozes variam conforme o vento das conveniências, atacando-o de um lado num dia e do lado oposto no dia seguinte. Essa inconsistência levanta a suspeita de que a verdadeira ofensa do réu não está no que ele diz, mas no simples facto de não pertencer cegamente a nenhuma cartilha. Curiosamente, os mesmos que hoje o atacam por essa leitura equivocada em várias situações são os que, se tal cenário tivesse se concretizado, o acusariam de não ter alertado a tempo. Ou seja, o verdadeiro problema não é o erro, mas o facto de o réu pensar por conta própria, sem esperar que a verdade lhe seja servida em bandeja oficial ou militante.
* Jornalista e Director Executivo na empresa Mídia Lab