Director: Marcelo Mosse

Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

Alex Dau

Alex Dau

terça-feira, 19 dezembro 2023 13:41

Falsa promessa

Fui arrebatado por uma leveza, depois de consumado o coito, olhei, candidamente, para a minha parceira, e ela ofereceu-me um sorriso matreiro. Acariciámo-nos, permanecíamos ali estendidos dentro da nossa nudez, deitados de costas para a vida, no colchão macio, que suportava o peso do nosso prazer .

 

Depois de um prolongado silêncio, quebrado de vez em quando, pelo meu arfar, ela balbuciou, de mansinho:

 

- Quero mais!

 

- Mais o quê? – questionei, incrédulo.

 

- Quero que me comas outra vez - ripostou ela impassível

 

- Oh, querida, terminamos agora - defendi-me.

 

Beijei-a, longamente, para compensar a sua insatisfação. Deixei-lhe de costas e procurei adormecer. Ela ainda sussurrou mil palavras de amor, antes de eu embarcar no meu sono.

 

Despertei, quando o meu braço descobriu a ausência dela na cama. Não me lembro se sonhei. Espreguicei-me, antes de abrir completamente os olhos. Busquei-a por cada canto do quarto, e nada. Levantei-me preguiçosamente, vesti as cuecas e saí do quarto.

 

Encontrei-a a preparar o pequeno-almoço, abracei-a, as suas costas contra o meu peito depois beijei-a, ela continuava completamente nua. Meimuna soltou-se levemente e caminhou em direcção ao quarto de banho, deixou o seu odor impregnado na cozinha . Nem o cheiro dos manjares em preparo ofuscavam a sua fragrância excitante.

 

Segui-a. Redescobri-a, através do envidraçado translúcido da banheira. Engoli a sua nudez e entesei-me. Penetrei na banheira, afaguei-lhe as costas contra o meu peito, senti o seu arfar, minhas mãos seguraram-lhe os seios.

 

Trocámos carícias. As minhas mãos viajaram pelos contornos do seu corpo, até acender o fogo das nossas entranhas. Depois, ela inclinou-se ligeiramente para a frente, levantei-lhe a perna esquerda e apoiei-a na borda da banheira, seu rabo abundou minha região pélvica, penetrei-a suavemente, ela libertou um gemido que me encheu de prazer. Vigiei, durante certo tempo o seu êxtase pelo número de gemidos que ela emanava. Depois perdi a conta, quando a volúpia tomou conta de mim, já gemíamos em uníssono.

 

Depois de extasiados, sentámo-nos à mesa, para desfrutar dos manjares, saboreei um pedaço de mandioca cozida com manteiga, e beberiquei o meu chá Gurué ainda quente.

 

O toque do meu telemóvel soou no quarto e quando me predispunha a alcançá-lo deixou de soar. Então, o som de entrada de uma mensagem de texto fez-se ouvir. Apressei-me a terminar o pequeno-almoço, e fui buscar o celular. “Tou chegar” lia-se na mensagem enviada pelo taxista que eu amiúde recorria para visitar Meimuna. Já passava das 10h da manhã e meu voo estava marcado para às 11h30.

 

Vesti-me precipitado, ela ajudou-me a arrumar a bagagem, ficámos ambos aguardando a chegada do taxista. Despedia-me dela, com um beijo prolongado e entrei para o táxi.

 

O taxista imprimiu velocidade ao seu veículo, contornou todas as curvas do bairro, com perícia, na corrida que fazia para chegar a tempo ao aeroporto.

 

Precipitei-me numa correria, para alcançar o balcão do check-in, que estava prestes a encerrar. Logo depois embarquei.

 

A aeronave despegou-se do solo e entranhou-se nos céus. Senti momentaneamente saudades de Meimuna.

 

A minha longa estadia na cidade de Nampula, com o propósito primário de fazer prospecção de mercado para posterior investimento teve resultados positivos. E para incentivar minha permanência na cidade, conheci Meimuna.

 

A viagem de pouco mais de duas horas estava quase no fim. A aeronave iniciou a descida em direcção ao aeroporto internacional de Maputo.

 

Desembarquei, recolhi a minha bagagem e caminhei em direcção ao átrio do aeroporto.

 

- Seja bem-vindo, meu amor!  Clamou Júlia, minha esposa.

 

- Olá, pai!  Cumprimentou a minha filhota de cinco anos.

 

Precipitámo-nos em direcção à casa, numa marcha lenta, condicionada pelo tráfico típico de Maputo. Minha filha disparava mil perguntas sobre a minha estadia em Nampula. No semblante de Júlia podia-se notar a felicidade que sentia por eu estar de volta. Foi um mês de ausência ditada pela imposição laboral.

 

Entrosei-me com a família numa animada brincadeira, por vezes com gracinhas oferecidas por Cármen, minha filha, outras vezes com carícias a minha esposa.

 

O meu calor emprestou à casa o ambiente masculino, deixando o lar coberto de uma redoma de paz.

 

Jantámos cedo, levei Cármen para o seu quarto, abri o seu livrinho de estórias, li com entusiamo, não demorou a adormecer.

 

Recolhi para o aposento conjugal e encontrei minha esposa trajando lingerie vermelho novo que lhe assentava no corpo, de forma majestosa, arrebatando completamente o meu ser. A luz das velas projectava o seu corpo numa das paredes do quarto animando mais o ambiente íntimo.

 

Segurou-me e conduziu-me à cama, acariciou-me, retribuí beijando-a. Olhou-me, com meiguice, despiu-se e deitou-se de costas na cama. Meus olhos vagaram pelo seu corpo. Também despi a peça de roupa interior que trajava e nu abracei-a. Continuámos a acariciar-nos. Percebi que minha parceira usufruía de volúpia quando segurou meu membro viril.

 

Quando entendi que meu falo não reagia aos estímulos proporcionados pela minha esposa, levantei-me e servi uma taça de champanhe. Depois de consumir três taças num trago, voltámos a trocar carícias. O falo recusava-se categoricamente a falar o que quer que fosse. Ela tentou todas as formas que conhecia para me proporcionar uma erecção, mas nada, nada mesmo!

 

Quando percebi que não tinha como ganhar uma erecção, aleguei que a viagem e o excesso de trabalho me conferiam aquele estado. Da nossa relação marital de pouco mais de dez anos era a primeira vez que algo do género acontecia.

 

Embebedei-me, para resgatar a auto-confiança que pudesse conferir-me o domínio e logo encontrar o estímulo para concretizar o coito. Nada acontecia. Senti-me desfalecer e horas depois, quando despertei, o sol já brilhava. Senti uma ligeira dor de cabeça. Olhei para o relógio, já se passavam das 10h. Minha esposa já tinha saído para o emprego e levado a minha filha à creche.

 

Precipitei-me nos preparativos, para ir ao meu posto de trabalho. Tinha uma reunião com os meus superiores. Momentaneamente a minha mente projectou a imagem de Meimuna, com todos os atributos femininos típicos daquela criatura extasiante.

 

Voltei à realidade, e lembrei-me do meu acto desastroso na noite passada, clareei a mente, e parti para o trabalho.

 

Levei a reunião a bom porto com a apresentação do relatório.

 

Já meio aliviado de trabalho, avancei em cogitações, para descortinar a disfunção eréctil da noite anterior. Hospedei-me num café da cidade. A manhã ia sendo consumida pela azáfama da urbe, com múltiplos sons de carros em suas correrias desenfreadas, à mistura com as sirenes de escoltas tentando romper o congestionamento de trânsito.

 

Mais uma vez, o rosto de Meimuna assaltou a minha mente. Desta vez ela apresentava-se trajando uma capulana multicolor e tinha o semblante mascarado com msiro¹. Desnudei-a quase telepaticamente, entesei-me, esbocei um sorriso de satisfação, afinal não era nada de grave.

 

Podia procurar compensar a Júlia mais logo.

 

O som polimórfico do meu telemóvel fez-se ouvir e na pequena tela surgiu o nome Dr. Amaral Muende, o cognome que havia atribuído a Meimuna.

 

- Anselmo você tesde que jegou não tiz nata, esdou com muiida sautate – rematou ela, eufórica, catapultando o seu sotaque emakwa².

 

- Olá, querida, muito trabalho aqui – repliquei, animado, por ouvi-la

 

- Quanto vens endão faser apresentação e petito? – lembrou-me da promessa que a fizera.

 

- Deixa-me terminar o trabalho por cá e logo venho – ripostei, para acalmá-la.

 

-Está pem, amor, peijo.

 

Senti no tom da sua voz a felicidade que a minha promessa fizera, mas que eu não tinha nenhuma intenção de cumprir.

 

Agora, cogitava na minha intenção de proporcionar a Júlia uma noite recompensadora, depois do desastre da anterior. Minha esposa foi tomada de dupla surpresa. Fui encontra-la, no seu trabalho, ofereci-lhe um buquê de rosas e tulipas. Comentários abonatórios foram disparados pelos colegas. Vi um largo sorriso moldar o seu rosto. Isto era só o introito da missão compensadora que eu tinha para ela.

 

Rumámos por uma via desabitual, enquanto o aparelho sonoro do carro reproduzia uma música romântica.

 

- Para onde vamos, amor? - questionou Júlia animada.

 

- Espera, para ver.

 

Vislumbrámos a fachada principal do hotel “paraíso” de quatro estrelas, quase em simultâneo.

 

Entreolhávamo-nos e ambos sorrimos. Era o hotel em que tínhamos passado a nossa noite de núpcias.

 

Alcançámos a recepção. Solicitei a chave do quarto cinco, o mesmo da nossa noite de lua-de-mel. Caminhámos de mãos dadas. O mobiliário rústico do quarto emprestava um ambiente íntimo. Tomei a iniciativa, despindo-me, minha parceira imitou-me, avancei com os preliminares, procurando criar o clímax necessário.

 

A minha manifesta vontade de materializar o coito redundou em mais um fracasso, o meu membro viril recusou-se mais uma vez a desafiar a força da gravidade e posicionar-se na horizontal.

 

- Isso acontece, meu amor! - afirmou Júlia procurando acalentar o meu espírito atormentado.

 

Desisti da minha empreitada sexual, refugiei-me no bar do hotel, e só depois de suficientemente embriagado é que me juntei à minha esposa.

 

Os dias que se sucederam foram de tentativas de tratamentos convencionais e tradicionais, que redundaram em fracasso absoluto, remetendo-me a uma total depressão.

 

A minha psico-libertação sucedeu, depois de muita insistência de Estêvão, um amigo próximo, para que conversássemos, pois há muito que não púnhamos o papo em dia.

 

Expus-lhe a minha incapacidade de levar a bom porto a cópula com a minha parceira.

 

- Desde que voltei da minha última viagem de Nampula, que não consigo nada. Relatei,

desabafando.

 

- Diz-me o que aconteceu lá. – Questionou curioso, Estêvão.

 

-Nada de especial, conheci uma macua, e tive uma relação amorosa.

 

- Oh, ohh! – meu amigo, aí poderá estar a causa do mal – Ela poderá ter-te engarrafado.

 

- Não acredito nisso – rematei, pouco convicto – Claro que lhe prometi que me casaria com ela, mas não passava duma falsa promessa.

 

- Meu amigo, um conselho, volta para lá, e resolve o assunto com essa mulher.

 

Aventei a possibilidade de rumar de volta a Nampula, não custava tentar, custaria sim a passagem aérea e a estadia, para tirar a limpo o pressuposto avançado pelo meu amigo.

 

Quando a aeronave entrou no espaço aéreo da província de Nampula, senti um movimento estranho na zona pélvica.

 

“Iniciamos a descida em direcção ao aeroporto de Nampula, a temperatura exterior é de 27 graus Celcius”. O comandante desacelerou a aeronave, baixou a altitude, o sinal de apertar os cintos acendeu, a assistente de bordo emitiu o pedido de apertar os cintos. Continuava tenso e o meu membro viril permanecia erecto. O avião aterrara por volta das17h. A temperatura exterior revigorou-me. Sentia-me um homem completamente novo.

 

- Foltaste padrão! - conferiu o taxista quando me reviu.

 

Entrei para o táxi, que se dirigia em direcção ao hotel onde eu ficara da última vez. Corrigiu-o dizendo-lhe o nome de um hotel de três estrelas onde ficaria desta vez.

 

- Vem buscar-me às 18h- anunciei.

 

Não avisara a Meimuna da minha vinda, queria surpreendê-la. Descansei no hotel, aguardando a hora de visitá-la. Busquei meditabundo uma explicação, para a anomalia que se operava com o meu falo.

 

Encontrei Meimuna submersa nos seus afazeres domésticos.

 

- Ishhh, amor xecaste nem afisaste! - exclamou ela surpresa.

 

Catapultei-me para ela, como que arrebatado por uma força suprema, carreguei-a e a pousei no banco do lava-loiças. Meu órgão genital serpenteou entre as suas coxas até alcançar a vulva, senti suas matunas³ enroscarem meu pénis, um baque forte sacudiu meu peito, ela soltou um gemido.

 

- Ahhh!- libertou-se ela.

 

- Ohhh – repliquei, eufórico.

 

Depois de extasiados, ela perguntou-me:

 

- Vais me cazar?

 

-Sim caso-me, sim – redargui completamente relaxado.

 

¹ m’siro- No Norte de Moçambique e principalmente na Ilha de Moçambique, as mulheres usam diariamente uma pasta branca no rosto, uma máscara de beleza natural.

² emackwá– língua falada na província de Nampula

 

³ matunas – alongamento do clítoris efectuado pelas mulheres do centro e norte de Moçambique.

domingo, 03 dezembro 2023 21:21

O Gajo do Cachimbo

Gustavo Mabebe fora durante longos anos um verdadeiro metropolitano, moldou o seu carácter graças ao meio em que vivia; a cidade de Maputo dera-lhe oportunidades ímpares de lidar com a grande nata intelectual do seu país, desde filósofos, sociólogos, músicos, escritores, cineastas entre outros.

 

As conversas de café e restaurantes permitia-lhe alicerçar o seu intelecto, era um ouvinte paciente, até mesmo um escutador de silêncios, sempre que as cavaqueiras pausavam.

 

O bairro onde vivia permitia-lhe fazer caminhadas solenes, desapressado e descobrir um novo café, reencontrar um amigo e fazer novas amizades, havia uma intimidade profunda entre ele e a cidade.

 

Dos seus conhecidos aprendeu a apreciar o agradável aroma emanado pelos fumadores de cachimbo, essa apreciação tornou-se logo uma paixão, e mais tarde ele tornara-se também um fumador, gostava de  acomodar-se num canto de um café ou restaurante e desfrutar do poder que o cachimbo tem de levar alguém a abstrair-se completamente da realidade material do mundo e viajar além galáxias e experimentar uma sensação onírica ímpar.

 

Por conta dos malabarismos sociais, abriu-se uma janela e ele teve que se mudar para um bairro suburbano a mais de vinte e cinco quilómetros do centro da cidade.

 

O processo de adaptação foi deveras penoso, apartado dos seus lugares habituais, Mabebe  deambulava pela ruelas irregulares de areal do bairro e deparava-se com imponentes moradias de alvenaria que se revezavam com casas de cimento inacabadas, cruzava com meninos andrajosos que levantavam poeira nas suas corridas desenfreadas a caminho de uma missão comandada por um mais velho da casa, empurradores de “txovas” aceleravam os seus veículos carregados de mercadoria, o processo de assimilação terminava quando já estafado voltava para casa.

 

O cântico vespertino e matutino dos pássaros estacionados nos galhos das árvores era um dos únicos elementos compensadores da sua realidade suburbana, para além do silêncio que abraçava o bairro no final da tarde e princípio da noite.

 

Um saudosismo passeava pela sua mente, lembrava-se dos lugares da cidade, as conversas com os seus iluminados amigos.

 

Das suas diligências inquiridoras pelo bairro por vezes descobria uma barraca, acomodava-se, tomava uma cerveja, dava umas cachimbadas, sempre só, aliás com ele mesmo e as suas memórias. Por vezes um fulano descontraído aproximava-se e metia conversa, ele geria o papo em volta do assunto avançado pelo seu interlocutor, sem impor o seu ponto de vista.

 

A barraca “Lurdes” havia inaugurado recentemente a sua majestosa esplanada, decorada com toques rústicos; o bairro parou contaminado pelo ambiente festivo, um renomado músico que viu a sua fama emporcalhada por um escândalo ofereceu os seus dotes artísticos para animar os clientes que se fizeram presentes.

 

Depois da inauguração, a esplanada era o lugar mais aprazível de estar-se, quer para tomar uma bebida ou para degustar de um bom acepipe, aliás era o único lugar perto de sua casa onde podia desfrutar de uma boa chávena de café.

 

Numa sexta-feira soalheira, pelo final da tarde, Gustavo decidiu ir tomar uma bebida na barraca “Lurdes”

 

Chegou e foi prontamente atendido, quando se sentiu refrescado, levou a boquilha do cachimbo para a boca, segurou com a mão esquerda a base, introduziu tabaco no fornilho e com a mão direita manuseou o isqueiro fazendo rolar a roda dentada e de seguida pressionou o disparador, a faísca  atingiu o gás contido no tambor, depois de alguma insistência o tabaco ardeu e foi crepitando no interior do fornilho.

 

O fumo do tabaco viajava pelo corpo cavo do cachimbo e entrava boca adentro do fumador, este expelia o fumo que se evolava esplanada afora impregnando o ambiente com o seu aroma.

 

A combinação entre o fumar e tomar uma bebida num lugar agradável levava-lhe a uma completa descontração.

 

Quatro marmanjos ocupavam uma mesa, um deles monopolizava a conversa escutada atentamente pelos demais. Quando o fumo aromático os atingiu-os, fez-se um silêncio repentino, ficaram meio extasiados, como que hipnotizados.

 

Quando o efeito se dissipou, o jovem falador fez uma investida ao encontro de Mabebe, interrompendo o desfrute e tranquilidade deste.

 

- O que o senhor esta a fumar? – questionou incisivo.

 

- Boa tarde! – disse calmamente Gustavo. – posso saber quem pergunta?

 

O homenzinho pôs a mão no bolso e tirou a sua carteira, e exibiu o seu distintivo.

 

“João Cassanga, sargento principal” leu Gustavo.

 

- Fumo, “captain black royal” – afirmou seguro Mabebe.

 

- Parece-me uma variedade de suruma. – afirmou irreverente o bufinho.

 

- Pode crer que não é! – disse Gustavo. Para de seguida dar um trago na sua bebida e voltar a dar uma cachimbada.

 

O acto executado por Gustavo constitui uma afronta para o bufinho.

 

Uma pequena turba ia dando atenção ao debate, a medida que a assistência aumentava, o tom de voz do sargento principal subia, interferindo já com a música tocada no interior.

 

Quando os seus argumentos esgotaram, ele afastou-se o suficiente para não ser ouvido, pegou no telemóvel e fez uma chamada.

 

Instantes depois os clientes da barraca ouviram um som estridente coibindo a música que ouviam, a discussão entre Gustavo e o polícia havia cessado há pouco mais de 15 minutos.

 

A medida que o tempo passava, o som aproximava-se, até descobrirem o carro da polícia que para além da sirene, o pirilampo riscava o céu azul do fim de tarde.

 

Agentes armados até aos cabelos saltaram da carroçaria empunhando os seus fuzis, o chefe interagiu prontamente com João, este por sua vez apontou para Gustavo e dois polícias marcharam na sua direcção.

 

A música havia parado, as atenções estavam voltadas para a acção protagonizada pela polícia que escoltava o gajo do cachimbo.

 

Uma viatura parou bruscamente defronte da entrada principal da tasca. O condutor pulou do seu acento e abriu a porta traseira, o seu ocupante apeou-se, tirou da sua bolsa o seu cachimbo e acendeu-o, deu duas cachimbadas e só então iniciou a caminhada em direcção ao interior.

 

O grupo de polícias que escoltava Gustavo seguiam na vanguarda e logo no seu encalço vinha o chefe operativo acompanhado de João.

 

Quando o chefe da polícia divisou o cavalheiro que acabava de chegar, este sempre de cachimbo na boca, interrompeu a sua marcha, firmou os pés no solo, sacudiu uma ruidosa continência.

 

- Quem é ? – perguntou João.

 

- Não conheces, é novo comandante distrital da polícia. – respondeu o seu colega.

 

Quando o chefe da polícia alcançou o carro patrulha, os seus colegas pediam que Gustava subisse.

 

- Deixem o ir. – comandou o chefe.

 

O agente a paisana encolheu o seu orgulho entre as pernas e decidiu ir-se embora, enquanto isso Gustavo regressou a esplanada pediu outra bebida, reacendeu o seu cachimbo e deu largas baforadas enquanto desfrutava do ambiente.

terça-feira, 10 outubro 2023 07:19

Defunto sem rosto

I

 

A vontade de urinar era tão grande que o motorista da camioneta foi freando o seu veículo até esta imobilizar-se completamente a berma da estrada.

 

Saiu e correu para a mata, largou um jato de urina para a moita, já aliviado, quando fechava a braguilha eis que se depara com alguém que o mirava com olhos esbugalhados.

 

Assustou-se, deu um recuo com dois passos, mais movido pela curiosidade voltou a posição inicial, trocaram olhares até que mais uma vez o temor tomar conta de si.

 

O ser desconhecido tinha a cara muito ressequida, com certeza de muitos dias ao relento, o  cabelo crespo estava completamente desgrenhado e pousavam moscas que zuniam imparavelmente, aparentava ter uns vinte e poucos anos. Tinha o rosto oval,  pálpebras descaídas, o  olhar vítreo desarmava quem o mirasse.

 

O olhar estranho continuava impávido a foca-lo, decidiu então, abalar logo dali, voltou a assumir o comando da sua camioneta de quatro toneladas, e afastou-se rapidamente do local.

 

Só voltou a parar na esquadra policial do bairro “floresta” na periferia da cidade para relatar o estranho caso do homem com olhar ameaçador que o espreitava.

 

A policia intrigada com o relato acorreu de imediato para o local explicado pelo motorista, depois da devida perícia recolheram-no e trataram logo de o levar para o hospital central de Quelimane para ter os devidos cuidados que este merecia.

 

O médico de serviço recebeu o estranho trazido pela polícia e orientou os seus colegas no sentido de o proverem de melhores condições que se adequavam ao seu tratamento.

 

Os técnicos da FRIZA Lda, empresa que ganhara o concurso público depois de  evidentemente enluvarem os funcionários do UGEA, apareceram na manhã de segunda-feira no sector de manutenção do hospital para procederem a reparação do sistema de frio da morgue.

 

O pessoal de sector de manutenção haviam garantido aos técnicos da “friza” que as condições estavam criadas para que estes laborassem tranquilamente. Três frigoríficos faziam parte de sistema de conservação de cadáveres dos seres que desencarnavam na cidade e arredores.

 

Compressores, termóstatos foram trocados nos primeiros dois frigoríficos  e os técnicos avançaram para trabalhar no terceiro. O técnico chefe fazia as devidas afinações aos aparelhos reparados, para flexibilizar o trabalho pediu que os seus dois colegas iniciassem com o desmontagem das peças que iriam ser substituídas no terceiro.

 

- Ahhhh! – uma dupla gritaria, bastante estridente foi disparada pelos técnicos quando se depararam com algo bizarro dentro da câmara frigorifica.

 

Os funcionários da morgue que se encontravam nas redondezas a tomar o pequeno almoço acudiram prontamente aos alaridos, chegaram manuseando seus pães e badjias e encontram os técnicos aterrorizados.

 

II

 

Quando a noite adentrava os moradores dos bairros circunvizinhos do cemitério da cidade eram abalados por um ser, que diziam os visados ser um anómalo desprovido de cabeça, que andava acompanhado pelo seu ajudante de campo, este servia de interlocutor entre as reivindicações do homem sem cabeça e os moradores visitados.

 

“Ele quer a cabeça dele” – dizia o seu ajudante de campo.

 

O anómalo falava por gestos furibundos deixando os visados mortos de susto.

 

A empreitado nocturna do estranho ser e o seu ajudante acontecia amiúde logo que escurecesse, o primeiro acto do evento era um assobio emanado em decibéis hipnotizadores, depois ouvia-se um bater na porta do morador que iria receber a visita.

 

O pânico já havia capturado a cidade, e para o cúmulo havia uma crise na rede de distribuição eléctrica da cidade.

 

A recessão económica agredia as contas dos comerciantes da cidade e arredores, os mais prejudicados eram os “barraqueiros”, os seus clientes recolhiam cedo para as suas casas, por conta do terror protagonizado pelo homem sem cabeça e seu ajudante.

 

Uma assembleia geral dos anciãos dos bairros atacados foi realizada numa sala disponibilizada pela autarquia da cidade, um “nyanga” vindo de Inhassunge auxilio-os para averiguações inerentes a solução para o questão que os assombrava.

 

Um decreto para afastamento das incursões malignas do estranho ser foi aprovado por unanimidade, sob comando do “nyanga” devia-se sacrificar uma galinha cafreal e colocar a cabeça do animal na parte interna da porta principal e no chão do principal acesso a casa devia-se fazer um círculo com um “X” no interior.

 

III

 

Depois de recuperam o fôlego os técnicos iam tendo focos de lucidez que lhes permitia usufruir da sua racionalidade. Os funcionários da morgue depois de gargalharem até não puderem mais, recobram a serenidade.

 

Então um dos técnicos que vivia no bairro da periferia do cemitério afirmou:

 

- O dono dessa cabeça esta a sua procura! – afirmou aliviado.

 

Nos dias que se seguiram foram de procedimentos para encerrar o inédito caso que engolia a periferia e já se arrastava para a cidade.

 

A burocracia para exumação  foi prontamente atendida, a vereação dos cemitérios da autarquia, sabia da porção de terra que guardava o corpo.

 

Numa tarde lúgubre de sábado, procedeu-se a reconstituição do corpo e o reenterro.

sexta-feira, 29 setembro 2023 06:43

Salteadores do sepulcro

I

 

John Mac Gavin, director da mina de ouro de “Stanford Mine” na periferia de Joanesburgo estava transtornado com os resultados de produção dos últimos meses que não justificavam os investimentos por ele solicitados aos  em Londres e na cidade de Luxemburgo.

 

A mina já existia há mais de vinte anos e grande parte dos mineiros eram provenientes do país vizinho, Moçambique.

 

Desesperado, o director decidiu marcar uma reunião com os mineiros para explicar a grave situação que enfrentavam e que corriam riscos de perderem os seus empregos.

 

Carlos Mulungo, um experimentado mineiro moçambicano, trabalhava na Stanford Mine há mais de dez anos, saiu da sua terra natal, Manhiça, no sul de Moçambique na companhia de seu amigo de infância António Cossa para o eldorado em busca de melhores condições para si e suas famílias, aliás ele, era a quinta geração de mineiros da família.

 

António perdera a vida num incidente no interior da mina, não resistiu aos ferimentos causados pela queda de uma rocha na sua cabeça, o seu corpo foi transladado para sua terra natal, passaram-se seis meses desde do fatal incidente.

 

No final da tarde de uma sexta-feira decorreu uma reunião no pátio do escritório, estavam todos apreensivos sobre a decisão que a direcção tomaria, pois era sabido pelos mineiros que muitas minas que não geravam lucros acabam encerradas.

 

Estavam todos capturados pela fala do director, que se lamentava pelo rumo que a mina tomava, que certamente acabaria no descalabro.

 

Mas ele tinha interesse em salvaguardar o interesse de todos, dele inclusive, por isso pediu maior empenho na prospecção.

 

- Sei qual é o problema que acontece na mina. – manifestou inesperadamente Carlos.

 

Uma estupefectação colectiva apreendeu a atenção de todos, olharam-se num misto de admiração e desconfiança.

 

O pretenso salvador levantou-se, suspirou e pausadamente iniciou a sua fala:

 

- Temos que levar o espírito de António para casa, – afirmou convicto – Ele tem que voltar para a terra. – reafirmou sereno.

 

Depois de sua firme afirmação, um silêncio envolvente habitou o local, durou o tempo suficiente para a memória do falecido revisitar a mente dos presentes.

 

Mac Gavin largou um sorriso sarcástico influenciado pela erudição que herdara dos ensinamentos dos seus anos na Universidade de Oxford.

 

A visão místico-espiritual do mineiro não se compactuava com a sua percepção intelectual.

 

- Não me deixo corromper por atitudes pagãs. – afirmou o director seguro de si.

 

Formaram-se pequenas assembleias onde se debatia a proposta de Carlos para solucionar o problema que enfrentavam.

 

John Mac Gavin não tinha uma contraproposta convincente, por isso decidiu por um sufrágio para acalentar o mal-estar que se tinha gerado. O resultado do sufrágio foi apoio para execução do ritual para levar o espírito de António para sua terra natal.

 

24h após a realização  da votação e aceitação dos resultados, um mineiro da ala leste descobriu um filão de ouro.

 

O cepticismo do director foi suplantado pelo poder dos deuses.

 

Agora Carlos tinha por missão dar continuidade a cerimónia, precisava terminar o ritual na terra do falecido.

 

Todas as condições para efectuar a viagem foram criadas e ele partiu. No dia seguinte, chegou a Manhiça, não demorou, procurou os familiares do falecido para  efectuar-se a cerimónia de entrega do espírito.

 

Depois do intróito de apresentação dos espíritos dos antepassados da família do falecido, iniciaram o ritual com o “nyanga” a dirigir as cerimónias.

 

Inadvertidamente pelas cordas vocais do nyanga” fez-se ouvir:

 

- Obrigado por me trazeres a casa – afirmou António pelas cordas vocais do “nyanga”, mas ao som da sua voz.

 

Os desavisados alarmaram-se pelo “Kufemba” exercida pelo “nyanga”, o próprio curandeiro há muito que não era visitado por esse poder.

 

O possesso ainda confessou uma última vontade do espírito e depois cessou a sua mediunidade.

 

II

 

Dois petizes, Mário o mais velho e Benedito órfãos de pais haviam abandonado a escola para se dedicar ao serviço de tratadores de campa, para que com os ganhos adquiridos ajudarem as suas mães e irmãos.

 

Honravam contratos verbais que tinham com os seus clientes de cuidar de campas dos familiares e amigos destes.

 

Um recente túmulo devidamente ornamentado que desconheciam os seus representantes chamou-lhes atenção.

 

Um reflexo luminoso advindo de um dos objectos que ficavam na sepultura chamou atenção de Mário, movido pela curiosidade convocou o companheiro para darem uma vista de olhos.

 

O que descobriram encheu os seus quatro olhos e aguçou-lhes a ganância, retiraram os 1000 rands que estavam depositados numa chávena, Mário como o mais velho, por ter descoberto ficou com a maior fasquia e o restante para o colega.

 

Empolgados com a sua aquisição rumaram apressadamente para a loja do “monhé” na sede da vila da Manhiça para procederem o câmbio para a moeda nacional. Ali mesmo fizeram as primeiras compras, arroz, açúcar, sabão entre outros produtos.

 

Cada um foi recebido nas suas casas como benfeitor, Mário foi quem mais compras fez, e na noite desse mesmo dia preparou-se um banquete.

 

Mário apareceu para o festim junto da sua família todo bem aprumado, usava tudo novo, uma camisa colorida, calças de caqui e sapatilhas que havia comprado na loja mais concorrida da vila.

 

O frenesim inicial extinguiu-se quando o patrocinador da banga se retirou para o seu quarto movido pelo embriaguez e cansaço. Logo que se descalçou atirou-se para a cama, não demorou para começar a ressonar, sua mãe e irmão ainda riram quando o ouviram.

 

Cântico dos xiricos que debicavam restos de comida do festim da noite passada, anunciavam  a manhã que acabava de nascer.

 

Quando os raios solares adentravam pela janela, dona Ana, mãe de Mário, a muito custo despertou, saiu para varrer o quintal, os xiricos agora, num número considerável cantavam e debicavam a comida.

 

Fez-se silêncio, os pássaros  calaram-se, o som do vento leve que sacudia a ramagem das árvores também cessou, instantes depois o mesmo gemido sofrido voltou a fazer-se ouvir.

 

O instinto materno de dona Ana fez com que ela corresse para o quarto de seu filho Mário, encontrou o corpo desmedido ocupando toda a extensão da cama, as roupas romperam-se, banhas de carne extravasavam a borda da cama. O corpo franzino estava completamente inchado.

 

Ela soltou um grito, depois lágrimas banharam-lhe o rosto, soluçava enquanto chorava. De repente pela boca do moribundo saiam larvas, não se aguentou, vomitou, vomitou incessantemente.

 

O filho mais novo ouviu os gritos da mãe e correu para acudir, quando deparou com os factos pôs-se logo a vomitar.

 

O inchaço de Mário incrementava-se rapidamente enquanto sua mãe e irmão continuavam a vomitar enchendo o chão de uma amalgama malcheiroso. 

 

Pum, um estrondo fez-se ouvir, a barriga do moribundo abriu-se e as entranhas ficaram expostas, os intestinos mergulharam no vómito.

 

Dona Ana e o filho empreenderam uma correria desenfreada pelas ruas da vila, ora gritavam ora choravam. 

 

A loja do “monhé” foi fustigada por uma praga de ratos e quase todos os produtos ficaram contaminados, sem dinheiro para um novo investimento acabou arruinado.

 

Benedito o comparsa de Mário amalucou.

 

Os residentes da vila e arredores sussurravam sobre o acontecimento e temiam despertar a ira do espírito de António.

 

A vila ficou submersa num temor colectivo, as manhãs dominicais não eram mais preenchidas pelas visitas ao cemitério, os vivos coibiram-se de tal missão. Os mortos sentiram-se mais abandonados.

 

Os funerais eram realizados sob os auspícios de um curandeiro destacado para esse fim.

quarta-feira, 20 setembro 2023 09:28

Zubeida

(inspirado numa velha lenda urbana da minha cidade)

 

A regularização de sua conta bancaria era o último empecilho para que a direcção de finanças do seu emprego desembolsasse o seu primeiro e muito aguardado salário.

 

Para dar conta da resolução do estorvo para o seu recebimento salarial, Lucas Chitato pediu dispensa ao departamento dos recursos humanos para tratar do assunto.

 

Ficou, aguardou espetado na fila desde das primeiras horas da manhã no balcão de uma das maiores instituições bancarias do país, sucursal localizada na cidade de Quelimane.

 

Posicionou-se em diversas poses que a sua mente concebia, cansou-se, sentou-se, levantou-se, acedeu as diversas plataformas das redes sociais até o telemóvel ficar sem carga, antes de ser atendido, nas vésperas do fechamento, finalmente atenderam-no.

 

Na manhã seguinte, quinta-feira, apresentou o comprovativo da regularização da conta, e esperou que o salário caísse, os colegas já desfrutavam das benesses providas pelos niqueis do ordenado.

 

Lucas, jovem recém licenciado em economia, teve que pagar, aliás pagou-o o pai para conseguir obter uma vaga numa instituição pública da cidade. E nos dias que se sucederam ao pagamento da vaga o remanescente salarial do pai só deu para o básico, as iguarias mensais a que estavam habituados a degustar desaguou num riacho de saudades.

 

A ânsia pelo recebimento do seu primeiro vencimento governava as suas emoções, queria ter a sua desejada independência financeira, os pais haviam feito todo o sacrifício para que ele tivesse uma boa educação, e ele estava deveras grato, queria também constituir sua própria prole.

 

Sexta feira ao meio da tarde o seu telemóvel dançou sob o tampo da sua secretária, olhou para tela descobriu a mensagem de texto enviado pelo banco com alerta de creditação na sua conta com o valor do salário.

 

Dançou na cadeira animado pelo ritmo vibratório que  a mensagem produziu na sua mente, tamborilou o tampo da sua mesa, sem se aperceber que perturbava os colegas, quando percebeu da anomalia que protagonizava, desculpou-se. 

 

Olhava obcecado o relógio, o tempo parecia ter parado, colegas veteranos já se preparavam para sair, eram 14:50h.

 

Não queria precipitar-se para a saída como faziam muitos dos seus colegas, precisava ser um trabalhador exemplar, aliás a educação que recebera conspirava para tal.

 

Finalmente chegou a hora, saiu para a rua, foi logo engolido pelo alvoroço, parou um táxi bicicleta, correu para o balcão do banco que ainda estaria aberto.

 

Levantou todo o seu salário, usando o mesmo táxi bicicleta, pediu que o conduzisse para casa.

 

O crepúsculo vespertino ia engolindo a cidade, as pessoas regressavam as suas casas, um trafego de táxi-bicicletas impunha-se desafiando os automobilistas que tinham que finta-los para não se colidirem.

 

Candeeiros espetados nas ruas e avenidas derramavam seu de feixe emprestando um brilho artificial a cidade e periferia.

 

Chegou a casa, encontrou os pais abrigados no velho sofá, embriagando-se com notícias destiladas por uma estação de TV local.

 

Instantes depois Lucas juntou-se aos pais, quebrou o vínculo que vinham tendo com a TV, ganhou completa atenção deles e de seguida entregou o envelope que continha o seu primeiro salário.

 

O pai pegou no valor e sem conferir dividiu de forma aleatória, entregou uma parte do valor a Lucas enquanto fazia um discurso retórico e a sua mãe meneava a cabeça em gesto de concordância.

 

Sentiu-se impelido a celebrar aquele momento impar da sua vida, aperaltou-se, passou uma loção na sua tez de tom de jambire e fez o pente desbravar o cabelo encarapinhado, viu-se no espelho, sentiu que ultrapassava os seus 1.79m, largou um sorriso correspondido prontamente pelo seu duplo.

 

Tomou emprestada a motorizada de seu pai, emitiu uma mensagem de texto e enviou para o seu melhor amigo.

 

A rua pavimentada do bairro continuava movimentada, principalmente pelos táxis bicicletas, as barracas clonadas onde se salientava as cores vermelho, amarelo e verde, hospedavam clientes que vociferavam competindo com o som dos alto-falantes cantantes.  

 

Lucas encontrou o amigo já na companhia de uma garrafa de cerveja, conversaram animados pelos novos rumos de suas vidas, o tempo ia sendo confiscado pela noite. A dona da barraca anunciou que a qualquer momento fecharia, pois as autoridades reguladoras estavam atentas aos das normas.

 

Etilicamente energizado Lucas depois de se despedir do amigo dirigiu-se para a discoteca mais propalada da cidade.

 

Os únicos dançarinos que ocupavam a pista era a luz cromática, alguns clientes apeados no balcão que bebericavam e trocavam conversa, a medida que o tempo passava os fregueses multiplicavam-se.

 

Quando Lucas segurou o seu copo para dar um gole, um feixe de luz atingiu o rosto maquiado de uma rapariga que se sentava num canto da sala e emanava uma áurea arrebatadora.

 

Olhou, enlaçado no seu charme, estabeleceu-se um canal encriptado onde os dois falavam uma língua que o ruído da sala não perturbava. Caminhou sereno na direcção dela, e sem nada dizer pediu para dançar, aliás estendeu a sua mão e logo rodopiaram na pista.

 

Ao compasso rítmico, dançavam, entraram para um redoma isolando-se dos demais, Lucas acariciava-a estimulado pela coragem que o álcool produzia na sua pessoa.

 

A mudança rítmica protagonizada pelo “disco Joker” rompeu abruptamente o elo que se  estabelecera, o casal soltou-se, trocaram sorrisos, e foram acomodar-se em pequenas poltronas na esplanada da discoteca.

 

Conversaram informalmente como um velho casal de namorados, falava mais Lucas e ela limitava-se a responder ao seu inquérito.

 

A luz eléctrica da cidade continuava intensa mas não desarmava a noite que se adensava.

 

- Nunca te vi por aqui? – afirmou Lucas.

 

- Raramente apareço – confessou serena.

 

Continuaram a conversar por mais duas horas, até finalmente decidirem ir-se embora, era já madrugada de sábado.

 

Levo-a na garupa da sua motorizada, o motor roncou, engrenou e partiram, a brisa fina da madrugada fê-la estremecer, largou um calafrio, abraçou-o mais intensamente, Lucas parou a motorizada, tirou o casaco que usava e entrego-a, reiniciaram a partida. 

 

Deixou-a na porta de casa.

 

- Quando posso voltar a ver-te?

 

-Quando quiseres. – respondeu ela com um sorriso.

 

- Ligo-te amanhã. – disse Lucas.

 

- Estou sem telefone.

 

- Como faço então para te contactar? – questionou ele.

 

- Vem ter comigo a minha casa. – disse ela.

 

- Os teus pais?

 

- Eles são muito compreensivos. – afirmou ela convicta.

 

- Certo, então até amanhã, aliás até logo.

 

Na despedida, beijaram-se, ele ainda a viu entrar e instantes depois foi-se embora.

 

Lucas só despertou quando eram 9:30h da manhã de sábado, com uma desagradável “babalaza”.

 

Depois de um banho fresco, correu para a barraca da dona “mimi” onde tudo começou, socorreu-se de um petisco e bebeu umas duas cervejas bem geladas, recuperou o episódio da noite passada com ênfase na moça que conhecera e se apaixonara. Precisava, logo revê-la.

 

Abandonou a barraca, parou um táxi bicicleta e embarcou.

 

- Para onde patrão? – questionou o taxista.

 

- Torrone velho. – asseverou Lucas.

 

A pedalada iniciou, a velocidade aumentou e a distancia encurtou-se, chegou ao destino.

Ensaiou a abordagem correcta que devia praticar consoante a pessoa que lhe atenderia, pensou em desistir, um ímpeto encorajou-o, bateu a porta, esperou um bom tempo, ninguém atendia, quando pensava em desistir assomou a porta uma adolescente com parecença irrefutável com a moça que conhecera e se apaixonara na noite passada.

 

Trocaram olhares antes de Lucas pronunciar-se.

 

- Sim! – disse a menina.

 

- Posso falar com Zubeida? – articulou por fim Lucas.

 

Ela ficou petrificada sem saber o que dizer, dilatou as pupilas de seus olhos grandes, suspirou, mudou de posição dos pés para se reequilibrar, dos olhos nasceram lágrimas que transitavam pelo rosto, deixando-a completamente pálida, carpiu estrondosamente.

 

- O que se passa filha? – questionou a mãe com voz profunda.

 

A mãe juntou-se a filha, soube das pretensões de Lucas. Conteve-se antes de responder e corajosamente disse:

 

- Minha filha faleceu, faz exactamente hoje um ano. - conferiu a senhora para depois soltar lágrimas que logo inundaram-lhe o rosto.

 

“ Só podia estar a haver algum equívoco” - cogitou Lucas, arrependido, por bater a porta naquela moradia.

 

- Lamento imenso minha senhora, talvez enganei-me na casa. – disse.

 

Lucas lembrou-se de algo que podia dissipar qualquer equívoco. Socorreu-se do seu telefone, acedeu a galaria e exibiu a foto que tirara com Zubeida.

 

- É, é minha filha. – afirmou a senhora com a voz entrecortada. -  Quando a conheceu? – questionou serena.

 

- Estava com ela ontem à noite.

 

Mãe e filha prantearam copiosamente.

 

O senhor Matias chegou, foi adentrando quando deu-se conta do celeuma que decorria na sua casa, procurou inteirar-se do que estava a acontecer.

 

Convidou Lucas a entrar e sentar-se e então tratou de explicar que não era possível que a pessoa que estivera com ele fosse Zubeida pois ela falecera, e ele vinha buscar a mulher e a filha para irem visitar a campa da falecida em celebração de um ano desde que ela partira.

 

Lucas manteve-se incrédulo, e então o senhor Matias decidiu convida-lo a acompanha-los ao cemitério.

 

Não demoraram para alcançar o cemitério que ficava na periferia da cidade, foram adentrando em direcção a ala leste, depois seguiram por uma vereda entre campas até alcançarem a sepulcro que buscavam.

 

Incrustada na lápide vertical estava inscrito palavras de ternura, mas a que mais saltou a vista de Lucas foi o nome “Zubeida António Chipenda” e a foto da falecida. Um baque sacudiu-lhe o peito e o medo tomou conta de si. “Estaria a enlouquecer?”

 

Quando dona Marta mãe da falecida, agachou-se para iniciar a limpeza da campa, eis que se depara com algo aveludado sobre a laje. Tomou em suas mãos o estranho objecto.

 

Todos olharam para o casaco mas foi Lucas quem ficou completamente petrificado com a descoberta.

 

- Esse é o casaco que emprestei para a Zubeida esta madrugada.

sexta-feira, 08 setembro 2023 06:17

A Mala

O remetente chegou ao principal terminal de “Chapas” nas proximidades do mercado de Morrumbala.  Eram por volta das 15h00, o alvoroço típico do lugar era intenso como todos os dias de semana, excepto ao domingo.

 

Procurou o cobrador do primeiro machimbombo que partiria de madrugada para a cidade de Quelimane, mostrou a mala que precisava enviar e este depois de um golpe de vista deduziu o preço que o expedidor devia pagar, este resmungou e entraram em negociações até finalmente acertarem.

 

A mala tinha 54 cm de cumprimento e 37 cm de largura, pesava 25 kg, era de madeira devidamente esculpida por um exímio artesão e estava devidamente polida, tinha um pequeno fecho no meio, da altura central, era de cor preta e estava amarrada no seu cumprimento e largura com uma corda de sisal.

 

Quando o cobrador segurou a mala para arrumar sentiu uma vibração emanada por esta, então firmou maior destreza no seu manuseamento, guardou-a para posteriormente arrumar, solicitou e registou os contactos do remetente e do recebedor e por sua vez o expedidor registou o número da matrícula e o contacto do cobrador.

 

O lusco-fusco vespertino emprestava uma temperatura agradável, os raios do sol cessante incidiam ali e acolá no pequeno vilarejo.

 

Os passageiros ou os seus enviados iam chegando e adquirindo bilhete, a bagagem avolumava-se.

 

Uma hora depois, os lugares no pequeno autocarro já haviam esgotado, então o cobrador alertava aos passageiros que o autocarro partiria as 04h30 do dia seguinte. Os passageiros que vinham de lugares distantes iriam pernoitar no autocarro.

 

O cobrador dedicou-se a arrumar a bagagem no atrelado, os volumes maiores e pesados em baixo, os médios no nível intermédio e os mais pequenos em cima.

 

Coube a mala preta de madeira ficar por cima de uma pequena trouxa, posteriormente procedeu a cobertura do atrelado com uma lona.

 

A partida iniciou quando eram 04h45, os lugares estavam quase todos ocupados excepto dois reservados aos passageiros que embarcariam numa das paragens. O pequeno machimbombo evoluía na sua jornada e o som do motor propagava-se ao longo da via despertando ou alertando este e aquele animal. A luz dos pirilampos extinguia-se com o rompimento dos raios solares.

 

O autocarro sulcava nas ondas da estrada de terra batida, ora mergulhando nos buracos ora se elevando nas lombas, de repente o carro atinge uma lomba e o atrelado fica empinado com as duas rodas no ar.

 

A corda que prendia a lona soltou-se e alguma bagagem voou pelo ar e aterrou  no solo. Gritos de pedido de paragem dos passageiros soaram quase que uníssono. 

 

O veículo imobilizou-se abruptamente, o cobrador desembarcou para recolher a bagagem que havia caído; percebeu que a mala preta não estava no atrelado, procurou em lugares distintos, mas não a encontrou, reparou para uma pequena ravina e viu um pequeno feixe de luz, desceu e encontrou a mala.

 

Ficou completamente estupefacto com a posição que a mala se encontrava, olhou demoradamente para esta que estava assente numa dos vértices inferiores numa pedra e na parte superior apoiada num pequeno arbusto. Segurou a mala e levou-a para o atrelado, prende-a devidamente e retomam a viagem.

 

Uma hora depois o chapa alcançou o cruzamento de “zero”, entraram os dois passageiros e ocuparam os lugares vagos, a jornada continuou.

 

O machimbombo ziguezagueava para fintar os buracos que surgiam agora na estrada meio asfaltada, mas sempre esburacada. 

 

Uma hora depois chegavam a sede do posto administrativo de Nicoadala, desembarcaram uns e embarcaram outros, a viagem continuou.

 

O pequeno veículo circulava agora velozmente  na estrada de asfalto isenta de buracos em direcção a cidade de Quelimane.

 

Da planície densamente esverdeada via-se o arrozal que se extinguia para lá do horizonte.

 

O som produzido pelos passageiros que conversavam entre si ou então falavam nos seus telemóveis combinado com o ressonar de uns e o ronco do motor do carro criava uma melodia que parecia balançar o coqueiral que se estendia a berma da estrada.

 

Tempos depois o “chapa” alcançava a principal terminal rodoviária da cidade de Quelimane, passageiros desembarcavam e recolhiam as suas bagagens e partiam para os seus destinos finais.

 

Quando o azafama finalmente cessou, um homem franzino e calvo aproximou-se do cobrador.

 

- Bom dia, vim buscar a minha encomenda.

 

- Qual é a sua encomenda? – perguntou o cobrador.

 

- Uma mala preta. – respondeu prontamente o homem.

 

O cobrador, lembrou-se da mala pela sua peculiaridade e dispôs-se a buscá-la.

 

Depois de uma busca de mais de trinta minutos, o cobrador apareceu sem a mala.

 

- Não estou a encontrar! – disse apreensivo. – voltarei a procurar com mais calma, peço para voltar no final do dia. – propôs o cobrador.

 

O recebedor perambulou pelas artérias da cidade que há muito não visitava num compasso que fazia para resgatar a sua encomenda.

 

Quando o cobrador reviu o buscador, um baque sacudiu-lhe o peito deixando-o desconfortado.

 

- Não encontrei a sua mala, desculpa-me! – balbuciou entristecido.

 

- Não te preocupes. – afirmou serenamente o homem.

 

O produto surripiado descansava em cima de um comodo e o seu autor recuperava-se do cansaço da viagem na cama mirando gulosamente o troféu da sua acção.

 

Tinha a mente capturada pela vontade avassaladora de descobrir o conteúdo da mala, então soergueu-se da cama, encontrou uma faca e cortou as cordas. Agora precisava livrar-se do cadeado meio enferrujado que constituía o último empecilho antes de alcançar o que almejava, buscou um alicate e iniciou a operação de o quebrar, depois de mais de vinte minutos sem sucesso acabou por desistir, o cadeado continuava intacto.

 

Entretanto, do outro lado, o proprietário da mala, a cada vez que o larapio tentava cortar o cadeado a chave que guardava por trás da porta de seu quarto tilintavam. E então ele sorria, imaginando a tentativa frustrada do gatuno.

 

Não se sentido derrotado pelos empecilhos de abrir a mala, o jovem larápio infligiu uma machadada no tampo da mala, sem causar nenhum arranhão. Deu-se por vencido, talvez o cansaço causado pela viagem não lhe permitiam executar a operação com melhor discernimento.

 

Já passavam das 20h00, optou por recolher a cama e descansar, pela manhã veria como abrir a mala.

 

Não demorou a adormecer, duas horas depois acordava sobressaltado e aos gritos que ninguém ouvia, escutava uma voz indistinta, correu para o interruptor de luz, sem encontrar fugiu para fora, mas a voz prevalecia.

 

“Leva-me para o meu dono” – soava a voz gutural.

 

Distanciou-se quanto pode para escapar da voz sobrenatural, mas esta o seguia, tapou os ouvidos, mas a implacável voz continuava a ressoar.

 

Passou a noite no quintal da casa acompanhado pela voz da mala, a manhã nasceu depois de uma insuportável espera.

 

Armou-se de coragem e entrou para o quarto, a imponente mala continuava a sua fala.

 

Socorreu-se de um vizinho para ajudá-lo a compreender a aberração que o deixava inquieto.

 

- Estas a ouvir o que a mala está a dizer? – inquiriu atabalhoadamente.

 

- Não escuto nada.  – disse, sem perceber a aflição do seu vizinho.” Talvez o rapaz estava a ser vítima de algum estupefaciente que ingerira”.

 

“Tinha que se livrar da mala” -  cogitou.

 

Catapultado por uma energia desconhecida, aprontou-se, segurou a mala e foi caminhando estrada adentro até dar no terminal de chapas de Nicoadala. Eram já 6h00 da manhã.

 

Procurou embarcar num chapa que ia a Quelimane, quando segurou a mala para entrar esta não se desprendia do chão, forçou sem lograr o seu intento, procurou disfarçar a sua acção para não o acharem louco. Então decidiu abandonar a mala na paragem e continuar com a sua vida.

 

Quando se predispunha a caminhar, os seus passos estavam grudados no solo, encetou um outro disfarce para não chamar atenção dos transeuntes, passageiros e mujeiros que circulavam perto de si.

 

Nunca na sua vida, de afamado larapio, havia-lhe acontecido algo semelhante, o seu feiticeiro havia-o garantido sucesso absoluto nas suas empreitadas.  Algo de muito estranho estava a acontecer.

 

Voltou a segurar a mala; levantou uma perna, a esquerda e esta obedeceu, levantou outra e iniciou a marcha, levava a mala consigo, foi caminhando sem saber para onde ia, completamente hipnotizado pela voz que comandava a mala.

 

Depois de calcorrear mais de cinco horas deu consigo completamente estafado; parou, socorreu-se da água de um riacho do afluente do rio domela, descansou por breves minutos e reiniciou a marcha.

 

Quando o sol já começava a pôr-se, alcançou o bairro de Manhaua na periferia da cidade de Quelimane.

 

Sons metalizados que advinham do portão de latão mesclado com uma voz de timbre débil de pedido de licença faziam-se ouvir, um homem franzino e calvo assomou ao portão, esboçou um sorriso, recebeu a mala e agradeceu o entregador.

sexta-feira, 30 julho 2021 06:57

Uma rechonchuda no machimbombo

segunda-feira, 19 julho 2021 07:50

INATTER, irresponsabilidade inebriante

(Acontecimento verídico, personagem fictícia)

No dia 13 de Julho do corrente ano, António Galopão deslocou-se a uma das repartições do extinto INATTER, agora Instituto Nacional de Transportes Rodoviários (INATRO) para proceder à renovação da sua carta de condução em vésperas de caducar. Eram aproximadamente 10:30h, de uma terça-feira do nosso calendário gregoriano.

Uma pequena multidão ocupava de forma desordenada diversas posições no exterior das instalações, à espera de ver o seu assunto solucionado.

Dois guardas de uma empresa de segurança procuraram atender este e aquele pedido dos utentes. Galopão expõe que precisava renovar a sua carta de condução e o guarda solicitou a sua carta e o atestado médico.

“Aguarde, vai ser chamado” – anunciou.

Assim, iniciou-se o longo processo de espera e um e outro eram chamados para efectuar o procedimento seguinte. Passaram-se horas e só quando eram 14:00h Galopão ouviu o seu nome.

“Senhor, a sua carta está suspensa e deve dirigir-se ao 1º andar, porta 13, sector das multas”

Galopão ficou apreensivo, pois procurava ser cidadão exemplar e cumprir com as normas de condução para evitar cair nas malhas das autoridades. Buscou na sua memória se havia alguma multa não paga, entretanto, havia pago a última que tivera e o agente da polícia de trânsito o advertiu que devia conservar o recibo para evitar qualquer embaraço.

Fez-se presente na sala de espera da porta 13 onde já estavam os outros que aguardavam a sua vez de serem atendidos, sendo que não se cumpria com o protocolo sanitário de distanciamento de 1,5 metros. Só quando eram 14:30h foi atendido pelo funcionário da instituição.

“Quero saber a situação da minha carta”, anunciou temeroso, pois tinha conhecimento de inúmeras irregularidades que aconteciam nesta instituição.

O funcionário pediu-lhe a carta de condução e ele imediatamente entregou-lhe. Depois de buscar no sistema informático, este começou a rabiscar um código referente à multa que devia pagar.

A sua inquietação tornou-se realidade e Galopão então perguntou: “Por favor, pode dizer-me que multa é esta?”

“Refere-se à falta de inspecção” – respondeu este.

“Falta de inspecção, quando e onde foi passada a multa?” – questionou, pois não se lembrava de nenhum evento referente a esse acto.

“Foi passada em Vilanculos, na província de Inhambane, no ano passado” – respondeu sereno.

“Caro senhor, eu nunca estive em Vilanculos” – respondeu um pouco fora de si.

“Senhor, não sei, é o que está no sistema” - afirmou sereno.

Depois de fazer as suas inúmeras contestações, António pediu que o funcionário imprimisse o histórico da multa para ele poder efectuar a devida reclamação. Entretanto, o funcionário alegou que o sistema não permitia executar tal operação.

Mas o funcionário foi benevolente e permitiu que este lesse o que o sistema mostrava; qual não foi o seu espanto, quando viu que a foto que o sistema mostrava pertencia a uma outra pessoa.

“Desculpe senhor, mas essa foto não é minha” – disse Galopão, completamente fora de si.

“Mas o nome é seu?” – perguntou descontraído.

“O nome é meu, mas a foto não” - respondeu quase aos berros.

“Senhor a multa foi passada em Inhambane, se quiser reclamar tem de ser com as autoridades que passaram que estão em Inhambane”

“Caro senhor, isso é ridículo e injusto” – afirmou completamente irritado.

Quando Galopão viu que ficava sem opções, ou pagava a multa para renovar a carta ou então procedia à reclamação e esperava o devido tempo para obter a resposta, sendo que durante essa espera não poderia conduzir, pois sua carta expirava dentro de dias, então optou pela segunda alternativa e depois iria pensar como proceder em relação ao imbróglio protagonizado por estes actores que deveriam servir o público.

Enquanto aguardava pelos procedimentos subsequentes, viu um outro cidadão a ser humilhado pelos funcionários da instituição por supostamente terem cometido infracções de que nem se lembrava ou então eram fictícias.

Às vezes, alegam que o indivíduo ficará inibido de conduzir pela infracção que cometera, como forma de pressionar o condutor a propor uma negociação para tal não acontecer.

Infelizmente, o povo oprimido continua vítima de chacais que vão brotando da pátria, imbuídos de intenções malignas de ganhar à custa do sacrifício do pacato cidadão, enquanto deveriam ser servidores públicos exemplares.

A introdução de multas no sistema parece ser uma cultura para alimentar os vícios da nova geração de vampiros que povoam o INATTER, aliás, INATRO.

quarta-feira, 12 agosto 2020 07:10

Uma cobra na varanda

Com o busto debruçado no parapeito de sua varanda no sexto andar, dona Mafalda vestia uma blusa de linho com alças e uma capulana amarrada à cintura cobria-lhe a parte inferior, toda esta vestimenta era por conta do calor tropical que assaltava a cidade.

 

Da sua varanda ia caçando uma aragem que não passava enquanto divisava um e outro quadro do filme que a cidade transmitia, carros atolados no asfalto ensopado ou com os capões abertos  e  radiadores fumegantes, meninas seminuas, sombreiros tentando amortecer os raios solares e proteger seus proprietários.

 

Olhava ali, via acolá, observava este e aquele entrosando-se com o dia soalheiro esperando que a temperatura logo amainasse.

 

De relance viu, não acreditou, socorreu-se dos binóculos que guardava na cabeceira e direccionou para a varanda do andar inferior  direito, regulou a focagem e viu, o ser que observava  movimentou-se. Continuou com os olhos arregalados colados aos binóculos, enrugou mais a testa envelhecida e segurou firme com as mãos caquéticas os binóculos até ter a certeza do que mirava.

 

-Mamanouu! – gritou ela buscando socorro.

 

Largou os binóculos que caíram para o chão da varanda.

 

- Carlos, Carlos – gritou pelo empregado doméstico que prontamente chegou, este levou os binóculos e deu a sua mirada para o ponto que a dona Mafalda indicava.

 

Depois de uma breve e atenta observação rematou convicto:

 

- É uma cobra grande sinhora . – conferiu – Muito grande mesmo. – Enfatizou assustado.

 

Despoletou-se um alarido doméstico comandado pela dona Mafalda e coadjuvado por Carlos que se alastrou pela vizinhança. Moradores mais próximos acudiram aos gritos e logo tomaram conhecimento da existência do inquilino reptil que se refrescava na varanda da casa de Susana.

 

Um rebuliço arrebatava o prédio e alguns moradores curiosos testemunharam a presença do animal na varada do quinto andar do apartamento ocupado pela dona Susana e sua filhota.

 

O mais prestativo dos moradores do prédio Monte & Silva, localizado na avenida 24 de Julho em Maputo, tratou logo de usar o seu telemóvel e fazer uma chamada para os serviços de bombeiros.

 

Os demais desceram e reuniram-se no átrio principal de acesso ao prédio e iniciaram pequenas conferências protagonizado pelos mais loquazes que especulavam sobre o aparecimento do animal.

 

O bulício ficou momentaneamente suspenso quando a sirene dos serviços dos bombeiros se fez ouvir.

 

Os bombeiros acompanhados de um especialista veterinário fizeram-se prontamente ao local onde o bicho se encontrava, procuram a todo o custo imobilizar e capturar o animal, mas sem sucesso, acabaram por abatê-la.

 

Silvino sentiu o segundo baque sacudir-lhe o peito com a chamada que Susana acabara de fazer a propósito do sucedido, o primeiro sentira horas antes.

 

- Arrumas todas tuas coisas e vai para a casa da tua mãe. – afirmou autoritário Silvino, o seu parceiro.

 

Susana era a segunda mulher de Silvino, que a sua esposa desconhecia e ele muitas vezes simulava viagens de trabalho para juntos alcovitarem-se no apartamento que alugara para ela. Já tinham uma filha de cinco anos.

 

Dias depois todos os pertences de Susana foram-na entregues e o apartamento abandonado por completo.

 

Ela continuava estupefacta e abalada com o sucedido. Vino, como ela tratava o seu parceiro, deixou de dar sinal nem sequer respondia as suas chamadas telefónicas.

 

Silvino, empresário bem-sucedido da praça, procurava efectuar este e aquele negócio, mas já não era bem-sucedido. Em uma semana os prejuízos acumulados eram na ordem de milhões, teve que se desfazer de alguns bens para suprir despesas pontuais.

 

A sua depreciação social era já comentada em círculos que ele já não frequentava.

 

Depois de uma certa ponderação e reflexão, ele decidiu conferenciar telefonicamente com o seu guia espiritual e fornecedor da cobra.

 

“ Mataram Ansuane” – alertou Silvino

 

“Já sabia” – conferiu relaxado o inhamessoro. – “Sabes das consequências para voltares aos negócios” – afirmou sereno o homem de contactos sobrenaturais.

 

Vinculado pela vontade arrebatadora de recuperar seu estatuto social, Silvino vingou o seu desejo e rumou para a terra do macangueiro.

 

Embarcou num machibombo, depois outro, saindo do sul para o norte do país, chegou finalmente ao destino levado por uma táxi-mota, era já meio da tarde.

 

No quintal da casa do inhamessoro, uma galinha debicava o chão duro, um bezerro chuchava o seio da progenitora, um galo cantou, Silvino encaminhou-se ao encontro de uma mulher que se abeirava do fogo e mexia uma panela de barro.

 

“Ele saiu, mas disse para esperar” – conferiu a mulher, oferendo uma cadeira de palha.

 

Tempos depois a mulher chegou oferendo uma toalha e indicando-o a casa de banho.

 

“Pode ir tomar banho” – rematou humildemente.

 

O sol já se tinha posto quando finalmente o dono da casa chegou, cumprimentou o hóspede e desenvolveram um breve paleio informal. Depois este retirou-se para a cabana dos espíritos onde efectuava os rituais.  Uma hora se passou quando Silvino foi convidado a preparar-se para entrar.

 

O inhamessoro estava indumentado a preceito, uma batina de pele de zebra, uma tiara de pele de crocodilo reluzia na sua testa, um grande colar de missangas abraçava-lhe o pescoço.

 

Quando o cliente entrou encontrou-o sentada na esteira, este mandou tirar a capulana que envolvia seu corpo, ficando Silvino completamente nu. Espargiu-lhe com uma mistura usando um objecto feita na base da cauda de um animal.

 

Uma hora passou-se entre contactos com falas mediúnicas e interpretações de ossículos e conchas que terminaram com psicografia com os ditos que Silvino devia seguir. A noite já se adentrava quando o ritual terminou.

 

“ Vais tomar um banho com esta mistura, e depois dormiras aqui nesta cabana” – conferiu por fim o feiticeiro, dando por terminada o ritual.

 

Já alvorecia quando o galo quebrou o silêncio, uma brisa matinal oferecia frescura e a cacimba afrouxava a visibilidade.

 

“O táxi já chegou para te levar à paragem, nesta sacola esta o irmão mais novo de “Ansuane””

 

Ainda meio ensonado Silvino recebeu a encomenda e tratou imediatamente de se preparar para empreender a viagem de regresso.

 

“Muito obrigado” – afirmou Silvino subindo para o táxi-mota. Não esperou muito para embarcar num autocarro ido de Nampula com destino à Maputo.

 

Já acomodado no seu assento deu uma vista ao telemóvel e descobriu que estava sem cobertura, logo que se restabeleceu a transmissão com a torre celular, mensagens foram entrando com destaque para a sms de Susana com o seguinte teor “liga urgente” por isso Silvino tratou logo de ligar.

 

“ Olá tudo bem?” – questionou ele enaltecendo o timbre de voz para superar o som do motor do machibombo.

 

Ela demorou a responder, soluçou antes de prantear profusamente e quando reuniu forças disse:

 

“Per, per, demos nossa menina, é é ela se foi” – gaguejou sofridamente

 

“Tens que ser muito forte Susana” – rematou ele solidário e logo depois o contacto com a torre voltou a perde-se.

 

Quando entraram nas redondezas da vila da Massinga, o telemóvel voltou a readquirir o sinal e então outras mensagens entram com destaque para uma que dizia:

 

“ Podemos fechar aquele negócio”

 

Sorriu e olhou para o saco que o “inhamessoro” o havia entregue, este remexeu-se momentaneamente.

terça-feira, 04 agosto 2020 07:22

Balázios na Munhava

Um projéctil voava a uma velocidade de 715 m/s, fuzilando o ar no percurso que efectuava em direcção ao alvo, que devia estar a trinta metros de distância.

 

Os populares das redondezas, alarmados com o som do fuzil, procuravam averiguar o que estava a acontecer.

 

Um agente da lei, devidamente uniformizado e empunhando uma AK 47, seguia no encalço de um civil que já se distanciava notavelmente. O polícia, quando viu que não alcançaria o exímio corredor, decidiu disparar o segundo tiro.

 

A competição, disputada numa pista de pavê, teve início no mercado da Munhava e era executada por dois indivíduos, um seguia na dianteira e outro vinha no seu encalço.

 

O som do balázio serviu de estímulo para o corredor de vanguarda acelerar o passo e alcançar a Escola Primária Completa Amílcar Cabral, e aqui se perdeu na multidão.

 

A bala ricocheteou na plataforma de um camião e perdeu a direcção inicial, seguindo um percurso incerto.

 

Estafado, o corredor perdedor desistiu. Ofegante, buscou descanso no chão de argamassa da loja de um comerciante indiano.

 

O tiro parou no corpo de um menino que voltava da escola. Antes de soltar o segundo gemido, o corpo do miúdo caiu no chão de pavê, e o sangue que jorrava do seu peito avermelhou o livro de Português da 5ªclasse.

 

O primeiro popular chegou e testemunhou a partida do menino. Em pouco tempo, outras pessoas  se juntaram para lamuriar o fatídico incidente.

 

Inquiridores descontentes desencadearam uma pequena sublevação, iniciando buscas para apurar a causa da morte do menino, que era aluno da Escola Primária Completa Amílcar Cabral.

 

Encontraram o polícia homicida e iniciaram as averiguações.

 

“Foi um acidente” – protestou o agente da lei

 

“Acidentii, estamos fartos de vocês” – imperou a voz de uma senhora.

 

A segunda razão apresentada pelo polícia para justificar o balázio mortal foi rematada com as costas das mãos de uma senhora, a cara do homem movimentou-se da esquerda para direita.

 

“Agredir um agente da autoridade é punível por lei” – determinou o homem de uniforme.

 

Outra bofetada voou e a cara do polícia Constantino balançou outra vez. Quando sentiu o caso mal parado, empunhou a sua arma, criando ainda mais a fúria dos moradores, que o espancavam por todo lado. Um ex-guerrilheiro desmontou prontamente a AK 47 e as peças do artefacto mortífero ficaram expostas no chão.

 

“Esse uniforme não serve para nos humilhar, torturar e matar” – discursou um morador.

 

Uma mão forte arrancou-lhe a camisa, deixando-o mais a merce da justiça popular.

 

Dois pilotos voltavam da “bacia”, depois brincadeiras acrobáticas junto à margem do sistema de drenagem das águas pluviais montadas pelo município. Vinham empurrando pneus com ajuda de dois paus.

 

Em nome da nova justiça social, um dos pneus foi confiscado para ser colocado no pescoço do polícia, que já tinha sido amarrado a um poste de corrente eléctrica. Tentaram incendiar o pneu, mas não conseguiram. O petróleo doado por um comerciante anónimo não serviu para iniciar a fogueira.

 

Um txopelista animado, que passava pelo local transportando um passageiro, parou e decidiu prontamente ceder uns mililitros de gasolina que tinha como reserva.

 

Longas labaredas envolveram o corpo do homicida, populares ululavam ante o espectáculo macabro.

 

Marejado de lagrimas, o larápio testemunhava o aniquilamento do agente da lei, jurou que jamais voltaria a surripiar.

 

A imprensa popular documentava o facto, fotografando e escrevendo sobre o que sucedia e difundindo nas redes sociais.

 

O corpo do menino continuava no chão coberto por uma capulana, as páginas do livro de Português ensanguentado esvoaçavam ante o vento leve que soprava nessa tarde de Quinta-feira.

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