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sexta-feira, 29 setembro 2023 06:43

Salteadores do sepulcro

Escrito por

I

 

John Mac Gavin, director da mina de ouro de “Stanford Mine” na periferia de Joanesburgo estava transtornado com os resultados de produção dos últimos meses que não justificavam os investimentos por ele solicitados aos  em Londres e na cidade de Luxemburgo.

 

A mina já existia há mais de vinte anos e grande parte dos mineiros eram provenientes do país vizinho, Moçambique.

 

Desesperado, o director decidiu marcar uma reunião com os mineiros para explicar a grave situação que enfrentavam e que corriam riscos de perderem os seus empregos.

 

Carlos Mulungo, um experimentado mineiro moçambicano, trabalhava na Stanford Mine há mais de dez anos, saiu da sua terra natal, Manhiça, no sul de Moçambique na companhia de seu amigo de infância António Cossa para o eldorado em busca de melhores condições para si e suas famílias, aliás ele, era a quinta geração de mineiros da família.

 

António perdera a vida num incidente no interior da mina, não resistiu aos ferimentos causados pela queda de uma rocha na sua cabeça, o seu corpo foi transladado para sua terra natal, passaram-se seis meses desde do fatal incidente.

 

No final da tarde de uma sexta-feira decorreu uma reunião no pátio do escritório, estavam todos apreensivos sobre a decisão que a direcção tomaria, pois era sabido pelos mineiros que muitas minas que não geravam lucros acabam encerradas.

 

Estavam todos capturados pela fala do director, que se lamentava pelo rumo que a mina tomava, que certamente acabaria no descalabro.

 

Mas ele tinha interesse em salvaguardar o interesse de todos, dele inclusive, por isso pediu maior empenho na prospecção.

 

- Sei qual é o problema que acontece na mina. – manifestou inesperadamente Carlos.

 

Uma estupefectação colectiva apreendeu a atenção de todos, olharam-se num misto de admiração e desconfiança.

 

O pretenso salvador levantou-se, suspirou e pausadamente iniciou a sua fala:

 

- Temos que levar o espírito de António para casa, – afirmou convicto – Ele tem que voltar para a terra. – reafirmou sereno.

 

Depois de sua firme afirmação, um silêncio envolvente habitou o local, durou o tempo suficiente para a memória do falecido revisitar a mente dos presentes.

 

Mac Gavin largou um sorriso sarcástico influenciado pela erudição que herdara dos ensinamentos dos seus anos na Universidade de Oxford.

 

A visão místico-espiritual do mineiro não se compactuava com a sua percepção intelectual.

 

- Não me deixo corromper por atitudes pagãs. – afirmou o director seguro de si.

 

Formaram-se pequenas assembleias onde se debatia a proposta de Carlos para solucionar o problema que enfrentavam.

 

John Mac Gavin não tinha uma contraproposta convincente, por isso decidiu por um sufrágio para acalentar o mal-estar que se tinha gerado. O resultado do sufrágio foi apoio para execução do ritual para levar o espírito de António para sua terra natal.

 

24h após a realização  da votação e aceitação dos resultados, um mineiro da ala leste descobriu um filão de ouro.

 

O cepticismo do director foi suplantado pelo poder dos deuses.

 

Agora Carlos tinha por missão dar continuidade a cerimónia, precisava terminar o ritual na terra do falecido.

 

Todas as condições para efectuar a viagem foram criadas e ele partiu. No dia seguinte, chegou a Manhiça, não demorou, procurou os familiares do falecido para  efectuar-se a cerimónia de entrega do espírito.

 

Depois do intróito de apresentação dos espíritos dos antepassados da família do falecido, iniciaram o ritual com o “nyanga” a dirigir as cerimónias.

 

Inadvertidamente pelas cordas vocais do nyanga” fez-se ouvir:

 

- Obrigado por me trazeres a casa – afirmou António pelas cordas vocais do “nyanga”, mas ao som da sua voz.

 

Os desavisados alarmaram-se pelo “Kufemba” exercida pelo “nyanga”, o próprio curandeiro há muito que não era visitado por esse poder.

 

O possesso ainda confessou uma última vontade do espírito e depois cessou a sua mediunidade.

 

II

 

Dois petizes, Mário o mais velho e Benedito órfãos de pais haviam abandonado a escola para se dedicar ao serviço de tratadores de campa, para que com os ganhos adquiridos ajudarem as suas mães e irmãos.

 

Honravam contratos verbais que tinham com os seus clientes de cuidar de campas dos familiares e amigos destes.

 

Um recente túmulo devidamente ornamentado que desconheciam os seus representantes chamou-lhes atenção.

 

Um reflexo luminoso advindo de um dos objectos que ficavam na sepultura chamou atenção de Mário, movido pela curiosidade convocou o companheiro para darem uma vista de olhos.

 

O que descobriram encheu os seus quatro olhos e aguçou-lhes a ganância, retiraram os 1000 rands que estavam depositados numa chávena, Mário como o mais velho, por ter descoberto ficou com a maior fasquia e o restante para o colega.

 

Empolgados com a sua aquisição rumaram apressadamente para a loja do “monhé” na sede da vila da Manhiça para procederem o câmbio para a moeda nacional. Ali mesmo fizeram as primeiras compras, arroz, açúcar, sabão entre outros produtos.

 

Cada um foi recebido nas suas casas como benfeitor, Mário foi quem mais compras fez, e na noite desse mesmo dia preparou-se um banquete.

 

Mário apareceu para o festim junto da sua família todo bem aprumado, usava tudo novo, uma camisa colorida, calças de caqui e sapatilhas que havia comprado na loja mais concorrida da vila.

 

O frenesim inicial extinguiu-se quando o patrocinador da banga se retirou para o seu quarto movido pelo embriaguez e cansaço. Logo que se descalçou atirou-se para a cama, não demorou para começar a ressonar, sua mãe e irmão ainda riram quando o ouviram.

 

Cântico dos xiricos que debicavam restos de comida do festim da noite passada, anunciavam  a manhã que acabava de nascer.

 

Quando os raios solares adentravam pela janela, dona Ana, mãe de Mário, a muito custo despertou, saiu para varrer o quintal, os xiricos agora, num número considerável cantavam e debicavam a comida.

 

Fez-se silêncio, os pássaros  calaram-se, o som do vento leve que sacudia a ramagem das árvores também cessou, instantes depois o mesmo gemido sofrido voltou a fazer-se ouvir.

 

O instinto materno de dona Ana fez com que ela corresse para o quarto de seu filho Mário, encontrou o corpo desmedido ocupando toda a extensão da cama, as roupas romperam-se, banhas de carne extravasavam a borda da cama. O corpo franzino estava completamente inchado.

 

Ela soltou um grito, depois lágrimas banharam-lhe o rosto, soluçava enquanto chorava. De repente pela boca do moribundo saiam larvas, não se aguentou, vomitou, vomitou incessantemente.

 

O filho mais novo ouviu os gritos da mãe e correu para acudir, quando deparou com os factos pôs-se logo a vomitar.

 

O inchaço de Mário incrementava-se rapidamente enquanto sua mãe e irmão continuavam a vomitar enchendo o chão de uma amalgama malcheiroso. 

 

Pum, um estrondo fez-se ouvir, a barriga do moribundo abriu-se e as entranhas ficaram expostas, os intestinos mergulharam no vómito.

 

Dona Ana e o filho empreenderam uma correria desenfreada pelas ruas da vila, ora gritavam ora choravam. 

 

A loja do “monhé” foi fustigada por uma praga de ratos e quase todos os produtos ficaram contaminados, sem dinheiro para um novo investimento acabou arruinado.

 

Benedito o comparsa de Mário amalucou.

 

Os residentes da vila e arredores sussurravam sobre o acontecimento e temiam despertar a ira do espírito de António.

 

A vila ficou submersa num temor colectivo, as manhãs dominicais não eram mais preenchidas pelas visitas ao cemitério, os vivos coibiram-se de tal missão. Os mortos sentiram-se mais abandonados.

 

Os funerais eram realizados sob os auspícios de um curandeiro destacado para esse fim.

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