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segunda-feira, 21 outubro 2024 09:42

Trilogia do Amor, da Emancipação e da Libertação

Escrito por

JorgeFerraoNova_4.jpg

O Eco da tua voz grafa a verdade de uma biografia que é autobiográfica. Estes volumes são o testamento de que os princípios fundacionais de Moçambique, a despeito dos contextos revolucionários nacionalista, pan-africanista e internacionalista da sua luta pela independência, consagraram centralidade política à mulher e ao homem.

A harmonia entre Janet e Mondlane, retractada nestes textos, elucida na plenitude que a ética intelectual e a liderança política de Mondlane foram moldadas, também, pela parceria com Janet, seu maior amor. O provérbio africano, que diz “Numa família africana, o homem é a cabeça e a mulher é o pescoço”, resume bem essa dinâmica: Eduardo Mondlane liderava, mas Janet, com sua força intelectual, ajudava a direccionar o movimento e universalizava a causa.

 

Podemos traçar paralelos entre o relacionamento de Janet e Eduardo Mondlane e a emblemática relação de permeio, entre Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre. Ambos não viveram, apenas, histórias de amor, mas, também, protagonizaram profundas alianças intelectuais que deixaram marcas no curso da história.

 

Em suas famosas correspondências, Beauvoir e Sartre revelaram como seu vínculo transcendia o romance convencional para alcançar as esferas da reflexão filosófica e do compromisso político. Eram parceiros de vida, porém, acima de tudo, aliados na luta por causas sociais que exigiam coragem, integridade e uma constante redefinição do papel do indivíduo no mundo.

 

De maneira semelhante, Janet e Eduardo Mondlane estabeleceram essa parceria que ia muito além do romance e laços matrimoniais. Eles foram companheiros de ideias, de luta e de visão revolucionária e, até, messiânica. Janet, ao lado de Eduardo, tornou-se uma figura essencial no movimento pela libertação e independência de Moçambique e, mais especificamente, na emancipação das mulheres moçambicanas dentro deste contexto. Sua experiência cristalizava a centralidade da mulher na luta armada e a relevância dessa paridade.

 

Diferente de Simone de Beauvoir, que, apesar das pressões da sociedade, teve aceitação nos círculos intelectuais de Paris, França, Janet Mondlane enfrentou desafios bem maiores e mais complexos e subjectivos. Ela se inseriu em um movimento onde a maioria dos combatentes era iletrada e nutria uma visão clara e compreensível do “branco” como o inimigo a ser combatido. Num contexto de colonialismo e opressão racial, Janet, sendo uma mulher branca e estrangeira, representava, aos olhos de muitos, uma figura difícil de se assimilar no processo de luta de libertação nacional. O dilema de uma outra luta , dentro da esfera da própria libertação.

 

Essa resistência se manifestou, claramente, nos eventos de 1968, no Instituto Moçambicano, onde a insatisfação e o desconforto, com a liderança de Janet, transbordaram. Esses acontecimentos não eram, apenas, uma reacção a questões administrativas, mas, também, um reflexo desse sentimento latente de desconfiança e de rejeição à ideia de que uma mulher branca pudesse ocupar um papel central numa luta anticolonial. Entretanto, ao longo do tempo, Janet provou, por meio de suas acções, dedicação e inteligência, que seu compromisso era genuíno e profundo.

 

A relação da Janet e Eduardo Mondlane constitui a dimensão romântica da fundação da ainda complexa história revolucionária moçambicana. A ascensão de Eduardo Mondlane ao cargo de Presidente da FRELIMO, nas eleições de 25 de Junho de 1962, em Dar es Salaam, Tanzânia, marca o início de sua experiência maior na história internacional da época, cujo florescimento intelectual de sua personalidade acontece, desde Agosto de 1951, em confidencialidade de consciência com a Janet Era, nos Estados Unidos da América.

 

Essa confidencialidade chega-nos de sua carta na qual Mondlane partilha com a Janet, em Setembro de 1951, a sua consciência intelectual sobre a história política, económica e social de Moçambique. Lê-se:

 

[…] não é preciso obrigar uma pessoa esfomeada a [ir] trabalhar em qualquer sítio para ganhar ordenado. Uma pessoa esfomeada trabalhará até no inferno […] se souber que, se trabalhar o suficiente, terá algo para comer. É uma questão de escolha entre a fome e a degradação. Penso que todos os seres humanos normais iriam escolher a última.[1] 

 

Como companheira romântica e intelectual de Eduardo Mondlane, e por esta presença na história da fundação da FRELIMO, é justo reconhecer que esta presença da Janet Mondlane, senão ela mesma, em abono da verdade histórica, é a fundadora do movimento político emancipacional feminista moçambicano. O Instituto Moçambicano, por ela fundado e dirigido, em 1963, é a ilustração histórica da sua presença fundacional, não sendo por acaso que tenha sido sob a presidência de Eduardo Mondlane que o discurso da emancipação das mulheres, de início, caracterizou a ideologia da libertação da FRELIMO.

 

Com efeito, Janet pode ter interiorizado do pensamento de John Stuart Mill, que exercia grande influência no contexto intelectual do período. Na verdade, a preocupação de John Stuart Mill com a justiça social inspirou movimentos progressistas e políticas voltadas para a distribuição de rendimentos e criação de oportunidades, como o 'welfare state', reflectindo-se também nas suas acções e visão no contexto moçambicano. A partir do seu livro ‘Sobre a Liberdade’, se entende a apologia ao tratamento da mulher como pessoa com todos os direitos.

 

Ao encabeçar todo este processo biográfico e autobiográfico, Janet mostra-se como a médium que, operando através das cartas da vida de Eduardo Mondlane e de ambos como companheiros, retorna o seu espírito, sob a metáfora de “Eco da tua voz”. Esta especialidade mediúnica da Janet Mondlane, a história reservou, na ausência de Eduardo Mondlane, unicamente a ela, não pela competência adquirida de sua biógrafa-mor, mas sim por ela ser a única pessoa em que o espírito de Eduardo Mondlane se corporificou e se apossou.

 

Por essa biografia que, em essência, é uma autobiografia, Janet Mondlane, muito para além de cumprir uma vontade, ela exerce uma mediação, que é uma dialéctica de amor e possessão pelo homem e sua história fundacional de um povo e nação. Aqui vale a pena ler a forma como ela epitomiza Eduardo Mondlane:

 

A existência de Mondlane foi um milagre porque, sob o ponto de vista lógico, não se compreende como é que um pequeno rapaz africano nascido com uma herança de opressão e de pobreza podia estar tão determinado a ter uma formação académica e, posteriormente, libertar o seu povo ao ponto de dar a sua vida por esse povo[2].

 

Janet documentou, ainda, que foi a personalidade extraordinária ou “especial” de Mondlane a condição que tornou possível a sua apropriação ou, melhor, adopção inicial pelo Rev. Sr. André Clerc e depois institucional pela Missão Suíça na África Austral, como a pessoa identificada para realizar a missão de formação de uma liderança africana no contexto histórico mundial da época de meados do século XX. Dentre várias menções, citemos as seguintes:

 

Quando mais novo, sempre demonstrou um verdadeiro espírito de abnegação. […] Mondlane é uma pessoa muito dotada. Embora tenha iniciado a vida estudantil tarde e em circunstâncias muito difíceis […].

 

[…]. A minha opinião sincera é que estou a dar apoio a uma das pessoas mais dotadas e capazes que podemos encontrar aqui.

 

Se as circunstâncias e Deus o permitirem, a minha intenção é ver Mondlane formado, e bem formado, para ser um Líder da Juventude para todos os jovens de Lourenço Marques, dando início a uma coisa noiva que nós, como missionários, não podemos fazer. […] Gostaria de acrescentar que EM conquistou a confiança das principais missões que aqui trabalham[3].

 

Em carta aos amigos, escrita pelo casal Darrel e Mildred Randall, depois de Eduardo Mondlane sair da Wits University e nos esforços coordenados para a continuação de seus estudos universitários nos EUA, lê-se:

 

Não podemos prever o que Eduardo Mondlane virá a ser no futuro. Mas estamos convictos de que Deus lhe deu uma maior capacidade intelectual do que aos outros jovens africanos que conhecemos, e África precisa imenso de líderes do seu calibre[4].

 

Inquestionável destacar o papel fundamental de Janet Mondlane como uma parceira tanto emocional quanto intelectual de Eduardo Mondlane. Ela não foi apenas um apoio silencioso para Eduardo; sua contribuição foi tangível, directa e decisiva na história revolucionária de Moçambique. É por esse motivo que, dentre as figuras históricas que podem ser consideradas Mães da Nação moçambicana – como Josina Machel, Marcelina Chissano, Graça Machel, Marina Pachinuapa, Celina Simango, entre outras – Janet Mondlane merece igual destaque e reconhecimento. Apesar de seu nome nem sempre ser lembrado ao lado dessas heroínas, seu papel foi igualmente transformador.

 

Janet não só ajudou a orientar e promover eventos que visavam aumentar a consciencialização sobre a luta de libertação de Moçambique, como promoveu a educação e a ascensão das mulheres combatentes. Ela tem de ser recordada como promotora do activismo e engajamento social na busca pela justiça. Ela é uma escritora nata e, como Mondlane dizia, uma repórter com quem partilhou o mesmo tecto.

 

[1] Mondlane, Janet R. O eco da tua voz. Vol. I – 1920-1950. Cartas seleccionadas e editadas de Eduardo Chivambo Mondlane. Fundação Eduardo Mondlane, 2012, p. 32, 33-34.

[2] Mondlane, Janet R. O eco da tua voz. Vol. I – 1920-1950 … op. cit., p. 20.

[3] Mondlane, Janet R. O eco da tua voz. Vol. I – 1920-1950 … op. cit., p. 129-130. Cf. Carta de André Clerc para Director da Jan Hofmeyr School, de 15 de Setembro de 1947.

[4] Mondlane, Janet R. O eco da tua voz. Vol. I – 1920-1950 … op. cit., p. 249.

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