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segunda-feira, 01 abril 2024 07:00

MIGUEL BUENDIA, 80 ANOS

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A 20 de Fevereiro de 1973, Miguel Buendia, aos 28 anos, expulso de Moçambique, consegue, dissimulado no casaco, levar para fora do país o relatório que estaria na origem da vigorosa denúncia empreendida por Adrian Hastings sobre o tenebroso massacre de Wiriamu, ocorrido na província de Tete a 16 de Dezembro de 1972, cometido por tropas portuguesas, um dos mais hediondos da história da humanidade. A polícia da DGS interpelou-o. Ele trazia dois livros sobre a teologia da libertação, que foram cuidadosamente revistados, página a página.  Levava o relatório no bolso do casaco, a polícia não teve coragem de revistar a sua roupa do corpo. Como emagrecera muito desde que chegara a Moçambique, ainda temeu a possibilidade de lhe descobrirem o manuscrito explosivo. Quando lhe perguntaram: “Tem alguma coisa a declarar?” Foi seco na resposta: “Não!”, olhando o agente, olhos nos olhos. O relatório não incluía as vítimas de Chaworha. Provavelmente, na pressa de fazer sair aqueles documentos, se tenha optado por um deles.

 

Miguel Buendia e Júlio Moure, ambos da congregação Padres de Burgos, tinham ordens para abandonar Moçambique, em duas semanas, desde 6 de Fevereiro. Na véspera da partida pernoitaram na casa da ordem na Beira e no dia 20, uma terça-feira, quando estavam prontos para seguir para o aeroporto, o padre José Camba, da mesma congregação, que fizera duzentos quilómetros desde a missão de Chimoio, para se despedir deles, entrega a Miguel Buendia o relatório Wiriamu.

 

Adrian Hastings (1929-2001), padre, historiador e proeminente autor inglês, conseguiu, em Julho de 1973, honras de primeira página no “The Times”, de Londres, e faz a intrépida denúncia. “Um paranoico com a mania de escândalo” disse dele o “A Época”, um órgão afecto à Acção Nacional Popular, em Portugal. Hastings, que mais tarde romperia com a Igreja Católica, não via na liderança da mesma vontade e capacidade de esta estar à altura da renovação do Concílio Vaticano II. Tinha vários anos de experiência em África. “A Igreja Católica em Moçambique está hoje agonizante, não só devido ao carácter altamente opressivo do governo português como também à Concordata. “É preciso que os cristãos de todo o mundo e de todas as igrejas saibam o que se passa”, escreverá Hastings no seu pungente livro “Wiriyamu” (1974).

 

Miguel Buendia tinha igualmente convicções que se reviam nas ideias defendidas pelo Concílio Vaticano II sobre a função socialmente transformadora da Igreja, sobretudo nas sociedades em desenvolvimento. Não compreendia nem aceitava o silêncio da hierarquia do clero perante a violência sobre os moçambicanos. Escolheu o lado certo da História e combateu, sobretudo nas reuniões sinodais, mas também no apoio material e clandestino aos combatentes e aos jovens que se juntariam à Frente de Libertação de Moçambique. “Buendia era um padre de acção”, afirmará Mustafah Dhada, no seu impressionante livro “O Massacre Português de Wiriamu – Moçambique, 1972” (2016).

 

Buendia nascera numa Espanha sob o jugo de Francisco Franco, um general que havia liderado as forças nacionalistas na Guerra Civil Espanhola. Os nacionalistas opunham-se aos republicanos, leais à Segunda República progressista, e aglutinavam falangistas, monárquicos e católicos. Os nacionalistas  de Franco venceram a guerra e governaram a Espanha a partir de 1939 até à morte do caudilho em 1975.  

 

Foi num clima de acirrada política ultra-nacionalista e autoritária, que inibia liberdades políticas, que deserdara a Espanha de qualquer possibilidade de democracia com base em eleições, que o jovem Miguel haveria de crescer. Aos 16 anos, Buendia descobriu o que tinha sido a Guerra Civil e começa a distanciar-se e a conviver com uma outra Espanha que dissentia da Espanha fascista. A sua trajectória, ligada à religião cristã, faz-se através do distanciamento da ditadura de Franco. A sua fé, como crente primeiro, mais tarde como sacerdote, arreigada numa fé em Deus, opunha-o à falta de liberdade, à opressão e à exploração do homem pelo homem, à ausência de democracia e de justiça.

 

Em Dezembro de 1970 chega a Moçambique aos 26 anos. Chega ao país, ao seu novo país, como padre da congregação dos Padres de Burgos. Encontra Moçambique mergulhado na guerra. Os nacionalistas moçambicanos lutam pela independência. Os soldados  portugueses fazem a guerra colonial. A guerra, nessa época, descia em direcção ao centro de Moçambique. Miguel Buendia defronta-se, de novo, com uma sociedade desigual: país colonizado por um país em ditadura, igualmente fascista, regime profundamente injusto. Não tem dúvida quando escolhe o seu lado. A Igreja e a hierarquia estavam na ala do regime. Buendia do lado da liberdade e do direito dos moçambicanos à independência.

 

A sua acção cristã faz-se nessa pedagogia pela liberdade. Será, como é óbvio, em grande parte, uma acção clandestina. Para ele, como para muitos dos padres da sua geração, Deus não estava em contradição em relação à liberdade do povo moçambicano. Buendia apoia a Frente de Libertação de Moçambique. Estava em Murraça, na província de Sofala. Um grupo de jovens, interceptados pela DGS, quando se dirigiam ao Malawi, confessam, sob tortura, que tinham estado em casa do padre Buendia e que tinham tido o apoio deste, que os ajudara e facilitara no seu empreendimento e fuga. Miguel Buendia, que apoiara não só estes jovens, como apoiara a Frente e os combatentes, recebe ordem de expulsão.

 

A Igreja em Moçambique vivia também uma situação complexa. Na Beira, depois de um longo período de pontificado, por assim dizer, do Bispo D. Sebastião Soares de Resende, que sempre que interpusera a favor dos moçambicanos e da liberdade e da justiça, tinha ao leme um bispo vacilante e cobarde. Dom Sebastião morrera a 25 de Janeiro de 1967.

 

A Concordata de 1940 esteve na origem do aumento de missionários católicos em Moçambique. Chegam ao país companhias missionárias, que trabalhavam há muito em África, como o caso dos Padres de Verona, os Padres de Consolata (ambos italianos na sua maioria), Padres Brancos (que se espalhavam pelo mundo) e os Padres de Burgos. Muitas destas congregações e missões tinham na sua prática missionária a aprendizagem e o conhecimento das línguas africanas, criação de escolas e desenvolvimento local.

 

Dom Sebastião Soares de Resende acolheu, na diocese da Beira, os Padres Brancos e outros missionários. Para além da sua acção eclesiástica dirigia o jornal “Diário de Moçambique” e tinha à sua volta o apoio de padres que o coadjuvavam nesta acção a favor dos moçambicanos, entre os quais Soares Martins, que se revelaria um dos mais notáveis historiadores sobre o império negreiro em Moçambique – José Capela.

 

Quando morre o famoso Bispo da Beira, a diocese entra num período turbulento. D. Manuel Ferreira Cabral, nomeado para o substituir, é manifestamente incompetente e tem posições dúbias. Os padres não têm apoio do bispo na denúncia das iniquidades do regime, das prisões arbitrárias, torturas e outras injustiças que são praticadas contra os moçambicanos. Os Padres Brancos vivem mergulhados nesta ambiguidade. Querem uma clarificação da hierarquia, mas esta não se desfaz das ambiguidades nem do apoio velado às iniquidades do regime. Confrontados com esta situação, denunciam a situação. Serão expulsos, em Maio de 1971.

 

Entretanto, o bispo não resiste. Demite-se. É substituído por um bispo de origem goesa, oriundo da então Sá de Bandeira, actual Lubango, em Angola: D. Altino Ribeiro de Santana. É designado Bispo da Beira em 19 de Fevereiro de 1972. Não resistiu um ano. Morre a 27 de Fevereiro de 1973 de ataque cardíaco. Isto na sequência do julgamento de dois padres e da expulsão de Miguel Buendia e Júlio Moure. A pressão era grande.

 

A retirada dos Padres Brancos coincide, no entanto, com o recrudescer da guerra na província de Tete. A luta avançava para sul, atravessando o rio Zambeze. Entre Maio de 1971 e Dezembro de 1972 ocorrem, na região, um conjunto de abomináveis atrocidades. Mucumbura foi dos primeiros  actos e dois padres de Burgos (Alfonso Valverde e Martin Hernandez) fazem a denúncia junto das autoridades políticas e eclesiásticas. Para além dos massacres, há prisões e torturas, destruição de aldeias, matanças indiscriminadas. Os missionários colocam-se em defesa das populações. Alguns são interrogados. É o caso, entre outros, do padre Vicente Berenguer, ou do padre Domingos Ferrão. Entretanto, Alfonso Valverde e Martin Hernandez são presos na então Rodésia (estavam de visita familiar) e enviados para Lourenço Marques. Nada os intimida.

 

Para o governo, os missionários são testemunhos indesejáveis em algumas zonas. O massacre de Wiriamu foi uma atrocidade brutal. Como noutros casos, serão os missionários a juntar informação, fazer o relatório para a denúncia junto do Bispo e da Conferência Episcopal. Os protestos junto do governador não surtiram efeito. Nem dos massacres anteriores, nem deste que era de maior envergadura. Os relatórios que corriam no país fora sendo copiados. Com o tempo se percebeu que não haveria localmente acção alguma. Era preciso passar para fora do país esses relatórios e essa informação, mas tal coisa não era fácil.

 

Adrian Hastings narra, no seu livro “Wiriyamu” como teve conhecimento destes documentos entregues por Miguel Buendia aos Superiores dos Padres de Burgos. Coube-lhe o papel histórico de fazer a denúncia no importante jornal inglês “The London Times”. Marcello Caetano, na sua visita a Londres em Julho de 1973, é confrontado com esta denúncia e com arrojadas manifestações. Hastings (“um inimigo declarado de Portugal”, epíteto dado por porta-vozes de Caetano), foi até às Nações Unidas e a sua incriminação ajudou, de algum modo, a desmascarar o regime que tentou descredibilizá-lo. O Secretário-Geral é Kurt Waldheim. Recebe Adrian Hastings em audiência e ouve-o atentamente. O Conselho de Segurança e a Comissão dos 24 aprovam numerosas resoluções solicitando que o governo português cesse “todos os actos de repressão”. A denúncia de Hastings perante a Comissão é enérgica, persuasiva, eloquente. Marcelino dos Santos está presente em Nova Iorque e fala a seguir ao depoimento de Adrian Hastings. O abraço entre ambos no final da sessão é caloroso.

 

Da denúncia do massacre à queda do regime passaram nove meses. Entretanto, Miguel Buendia não queria ficar em Espanha. Descoloca-se a Inglaterra para estudar inglês com o intuito de, mais tarde, ir para a Zâmbia. Encontra-se em Fevereiro de 1974 com Óscar Monteiro. Escrevem, ele e outros padres, ao Presidente Samora e contam a sua experiência e falam dos seus propósitos futuros. A resposta de Samora é comovente. Convida-os a juntarem-se à Frelimo. José Maria, Miguel Buendia e Vicente Berenguer escolhem, então, ir para Dar-es-Salaam.

 

Eclode, entretanto, o 25 de Abril e a história acelera. Os padres estavam divididos, entre a contradição da sua inequívoca solidariedade ao povo e à sua emancipação e a posição dúbia da Igreja. Escrevem a “carta dos Padres de Burgos”. Declararam-se cristãos e marxistas, afirmam que não utilizariam o Evangelho contra o povo e os seus interesses. Roma reage, demite a direcção dos Padres de Burgos. A posição do Vaticano provoca a ruptura de alguns destes padres. Os que estavam em Moçambique deixam a Igreja.

 

Junto dos camponeses de Chimoio, nas aldeias comunais, Miguel Buendia participa do nascimento da nova Nação. Vai dar aulas para uma escola secundária. A educação sempre fora o seu escopo, o seu desígnio, o sentido e o propósito da sua vida. Mais tarde embrenha-se na educação à distância. Homem do sector educativo, estuda-o e doutora-se na área. É autor de “Educação moçambicana – a história de um processo: 1962-1984” (1993). Nele faz o excurso crítico da educação num contexto colonial e do seu processo político e ideológico libertador no tempo ulterior, o da independência.

 

Miguel Buendia é um homem compassivo e intelectualmente honesto. Impressiona a sua imensa humanidade e a sua espantosa humildade. Chega a ser comovente como ele é humilde, como se esquiva quando lhe é perguntado sobre o seu papel na História deste país, atribuindo a outros a importância que ele também tem, como libertador. A amnésia e a ignorância e a incultura, entre nós, estão na origem de muitas injustiças que praticamos sobre muitos daqueles que, corajosamente, lutaram por nós e que são nosso inequívoco património histórico. Quando pensamos em heróis somos maniqueístas e atribuímos este distintivo apenas a uns. Miguel Buendia e os seus companheiros, Padres de Burgos, lutaram por este país e são nossos heróis e merecem a nossa homenagem e o nosso preito.

 

Miguel Buendia é um ser humano superior, de elevadas qualidades humanas, intelectualmente comprometido pelo nosso destino e pelo devir moçambicano. Mesmo nos momentos sombrios – e estes são cada vez mais impressivos – vejo, sobretudo no seu vívido olhar e na sua alocução apaixonada, um amor declarado ao futuro e a este país. 

 

Ao longo destes muitos anos, de convívio e amizade, de irmandade, de camaradagem e de fraternidade, nunca vi o Miguel Buendia reivindicar o seu papel – corajoso, sublinho eu! –  na história de Moçambique. A sua humildade é desarmante. Conheci, através dele, o padre Vicente Berenguer, outra grande personagem e tive pena quando este, há seis anos, foi embora de Moçambique, sem haver, oficialmente, um reconhecimento da sua acção e luta. Berenguer falou-me com ternura infinita de Buendia e da sua figura, carisma e grandiosidade. Viviam, Sara e Miguel, vivíamos todos nós, familiares e amigos, a dilacerante partida do filho Mike.

 

Neste testemunho, necessariamente breve, queria celebrar a vida deste homem livre e lutador pela liberdade, este homem que viveu para a educação, que quis aprender sempre, este homem de uma imensa sabedoria e de uma imensa humanidade, este homem de um coração enorme e de uma bondade incomensurável, este moçambicano sem favor de ninguém, este herói que nos merece todos os preitos, que soube escrever, com os seus companheiros, uma página nobre na história deste país – Moçambique.

 

Devemos-lhe um tributo, todos os tributos. Devemos um tributo aos Padres de Burgos e a todos os que se interpuseram contra as perversidades, crueldades, injustiças, iniquidades do colonialismo e do seu sistema brutal, feroz e atroz.  A todos os que lutaram por este país. Miguel Buendia é um dos nossos melhores. É daqueles que souberam libertar-nos. Nós temos que saber reconhecer isso. Nós merecemos estar à altura da sua imensidão, da sua grandeza, da sua humanidade – da sua compassiva humanidade. A nossa história também tem o brio destas personagens.

 

Miguel Buendia Gomez nasceu a 1 de Abril de 1944 numa Espanha opressiva e ominosa que vivia mergulhada no nacional fascismo. Nasceu depois em Murraça, quando chegou a Moçambique, aos 26 anos. Nasceu quando foi expulso e levou consigo o relatório que denunciou o tenebroso massacre de Wiriamu a 20 de Fevereiro de 1973. Nasceu quando, na carta dos Padres de Burgos, foi contra o silêncio e a tibieza da Igreja em relação aos povos e abandonou o sacerdócio. Nasceu com a nossa independência. Nasceu depois nas aldeias comunais. Nasceu em Chimoio. Nasceu no ensino à distância. Nasceu quando pensou, reflectiu e escreveu sobre a experiência da educação. Nasceu com a Sara. Nasceu com o Mike. Nasceu no tremendo dia 26 de Outubro de 2003. Miguel Buendia nasce todos os dias com toda a sua imensa humanidade. Hoje, 1 de Abril de 2024, ele nasce aos 80 anos.

 

KaMpfumo, 1 de Abril de 2024

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