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quarta-feira, 25 janeiro 2023 07:26

A LUTA CONTINUA!

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O punho cerrado de Hugh Masekela enquanto cantava “Bring Him Back Home” (Nelson Mandela), num memorável espectáculo, em Harare, no Zimbabwe, a 14 de Fevereiro de 1987 – eu estava à beira dos 20 anos! –, povoa, de forma vívida, a minha memória, necessariamente nostálgica daquele tempo. O som pungente do seu trompete ainda esplende dento de mim e acorda nas minhas entranhas os deuses africanos. Passaram-se quase quatro décadas e eu me lembro daquele momento exuberantemente singular. As imagens aparecem esbatidas numa vetusta TVE, predecessora da TVM: Paul Simon apresentava “Graceland” e estava acompanhado de magos sul-africanos no Rufaro Stadium. Para quem não viveu os duros e exaltantes tempos em que enfrentámos o apartheid tudo isto não tem a mesma carga simbólica e até pode parecer uma frivolidade.

 

Miriam Makeba cantou “Soweto Blues”, a música que Hugh Masekela fizera para ela. Cantaria também “Under African Skies” ou “N´kosi Sikeleli Africa” (com todos). “Soweto Blues” foi a primeira música de Masekela que eu conheci, ainda nos tempos em que vivia na mítica Nacala, nos anos 70, na voz de Makeba. Hugh cantou “Bring Him Back Home” (Nelson Mandela) e “Stimela”, com aquela sua força telúrica. Ele era uma brutal força da natureza. Ray Phiri, outro deus morto, estava na viola solo. Estão os três mortos na planície. Como estão outros. Os deuses da minha adolescência lírica, feita de versos, canções, sonhos e futuros.

 

Hugh Masekela impressionou-me ali para sempre. Estava na companhia dos seguintes músicos sul-africanos: Ladysmith Black Mambazo, comandados pelo carismático Joseph Shabalala, outro deus estirado na planície. Estavam ainda: John Selowane na guitarra, Bakithi Khumalo no baixo, Barney Rachabane no saxofone, entre outros, para além Nomsa Caluza e Sonti Mndebele, que faziam os coros. As duas grandes figuras, para além de Paul Simon, naquele palco e naquela tarde, foram, indubitavelmente, Miriam Makeba e Hugh Masekela.

 

Os dois eram, à época, expoentes da música sul-africana e activistas intrépidos na luta contra o apartheid. O seu apoio ao projecto de Paul Simon, que desagradou a cúpula do ANC, foi importante. Deles e de Ray Phiri e todos outros. Aquilo que fizeram como contributo na luta pela erradicação do regime do apartheid está por reconhecer. No meu entender, foi um contributo decisivo. Romperam barreiras, deram visibilidade a uma luta, foram a extensão da voz de Nelson Mandela, que estava encarcerado.

 

A importância de ambos não se pode aurir no facto de terem estado naquele palco, naquele dia e naquela tarde. Mas ali se pode dizer da poderosa metáfora daquela luta e de todas as vezes e de todos os palcos.

 

Há uma fotografia celebérrima de Peter Magubane, um deus sul-africano, hoje nonagenário, que mostra um punho cerrado. Foi a grande alegoria da luta. Não sei se naquele plano e naquele momento, Hugh Masekeka fazia o paralelo com essa imagem poderosíssima do mítico fotógrafo, outro combatente contra o apartheid, mas a sua voz poderosa, o seu trompete singularíssimo e aquele seu gesto enfático, mesmo depois de estes anos todos, ainda me deixam exultado.

 

Masekela usava ainda o cabelo grande e tinha, como sempre teve, aqueles olhos impressivos e esbugalhados. Tinha, à época, 48 anos, contava quase 30 anos de exílio, combatia intransigentemente nos palcos do mundo. Vê-lo cantar “Stimela”, com aquela força da natureza, com aquela energia, fez dele um dos músicos sul-africanos que eu haveria de cultuar para sempre. Eu nunca vira algo igual. Era extraordinário. Era libertador. Era exultante. Era poderoso. Era vigoroso. Era potente. Era veemente.

 

Aquele espectáculo de Paul Simon foi um marco na minha vida. Aquele disco de Paul Simon foi um acontecimento para mim. Para aqueles que sonhavam com a liberdade dos sul-africanos. Para aquele que pugnavam por uma África do Sul igual para todos. Decerto, aquele momento prenunciava um novo tempo e estava inscrito nele a esperança do porvir. Nós vivíamos na ânsia de ver Nelson Mandela liberto e “Graceland” e a incursão de Simon pela música sul-africana e com os músicos sul-africanos parecia um sinal inequívoco de que algo iria acontecer. Algo estava para acontecer. Isso só viria a suceder nos primórdios da década ulterior.

 

Oiço agora, como sempre, Hugh Masekela cantar: “There is a train comes from Namibia and Malawi/ there is a train that comes from Zambia and Zimbabwe. / There is a train that comes from Angola and Mozambique. / From Lesotho, from Botswana, from Swaziland. / From all the hinterland of Southern and Central Africa. / This train carries young and old, African men/ Who are conscripted to come and work on contract/ in the golden mineral mines of Johannesburg/ And its surrounding metropolis, sixteen hours or more a day / For almost no pay. / Deep, deep, deep down in the belly of the earth”. Deep! Deep! Deep!

 

A letra e a música têm uma força e a interpretação de Hugh Masekela é inesquecível. As várias interpretações, digo.  Há pouco vi uma que ele fez em Lugano. Mas há várias nos vários palcos do mundo. Ele cantou esta música não sei quantas vezes, e sempre com uma energia, um alento, um dinamismo e um arrojo. Cantou-a, por assim dizer, até ao fim. A sua fibra, a sua vivacidade, a sua força moral, intelectual e política.

 

Era a música da sua causa maior: a luta contra a injustiça. Para além de a cantar, era seu hábito fazer um discurso sobre os explorados, sobre os espoliados, sobre os oprimidos, sobre a liberdade, o valor da liberdade, sobre os mártires, sobre os que tinham morrido nas minas ou na luta. O seu trompete vibrava em nós. Continua a vibrar em nós.

 

Vi-o cantar, mais tarde, em diversos lugares. Vi-o em Maputo, vi-o na Cidade do Cabo e em Joanesburgo. A última vez que o vi tocar e cantar foi no Kippies – assim se chama o palco em homenagem a Kippie Moeketsi no festival de jazz da Cidade do Cabo -, com a sala completamente cheia a cantar e a dançar numa explosão de alegria que não sei descrever. Masekela fazia uma extraordinária homenagem a Miriam Makeba, sua companheira de vida e de luta. Mas vi-o sobretudo naquele 14 de Fevereiro na minha vetusta TVE. Continuo a vê-lo nos meus dias. Continuo a ouvi-lo por estes dias aziagos. Continuo a encontrar nele o alento e o estímulo. A esperança. O tónico para estes dias ominosos. O lenitivo de que preciso.

 

Hoje, de 23 de Janeiro, passam 5 anos sobre a sua morte e volto a ouvi-lo. Oiço obsessivamente “Stimela”: a sua força, a telúrica força desta música, da sua música, que releva da fusão de vários ritmos, sobretudo da música dominante das townships da África do Sul, como mbhaqanga, marabi, jit e kwela, numa alquimia com o jazz, voltam à minha memória e vibram.

 

Ontem, por alguma razão que não sei explicar, pus-me a ouvir Brenda Fassie e a ver as imagens de Nelson Mandela e do seu milagre da nação arco-íris. Começara, por algum sortilégio, por rever as imagens lancinantes dos funerais de Samora, que são o ocaso de uma época e que se inscrevem nesta mitologia da libertação dos sul-africanos. Hoje retorno a Harare, a Hugh Masekela, a Miriam Makeba, a Joseph Shabalala e os seus companheiros, a Ray Phiri, a Paul Simon. Oiço, de novo, “Stimela”.

 

No alinhamento daquele memorável espectáculo: “Township Jive”, “The Boy in the Bubble”, “Gumboots”, “Whispering Bells”, “Bring Him Back Home”, “Crazy Love”, “I Know What I Know”, “Jinkel e Maweni”, “Soweto Blues”, “Under African Skies”, “Unomathemba”, “Hello My Baby”, “Homeless”, “Graceland”, “You Can Call Me Al”, “Stimela”, “Diamonds On The Soles of Her shoes”, “N´Kosi Sikeleli Africa” e “King of Kings”. Ali não se celebrava apenas o futuro inequívoco da África do Sul. Ali celebrava-se um tempo, que nos era comum e solidário, um tempo de uma história comum, de uma luta colectiva, de ideários partilhados, de sacrifícios que tínhamos consentido e compartilhado, de um destino igualmente comum e inexpugnável.  

 

Hoje tudo isso está perdido. Quando me volto para estes tempos e oiço estes músicos libertários, quando me empolgo com estes hinos emancipatórios, quando exulto com estas vozes e estes ritmos vibrantes, falo de uma época, falo de um contexto, falo de uma História. Hoje estamos nos antípodas dessa História, desse contexto e dessa época. Hoje é difícil explicar o punho cerrado de Hugh Masekela, o seu poder simbólico e encantatório, a sua força mobilizadora e empolgante. Hoje é difícil explicar que descíamos às praças para que Nelson Mandela fosse livre e que a África do Sul não fosse o lugar da segregação racial. Hoje é difícil explicar que a luta dos sul-africanos era a nossa luta e que hipotecamos muito do nosso futuro quando nos engajamos – eis um termo do vocabulário da época – nessa luta.

 

Oiço “Sitmela”, oiço sobretudo o disco “Hope” (1994), com o seu vigor metafórico indesmentível, oiço Hugh Masekela, a sua voz robusta e a pujança do seu trompete e não temo em assumir-me como um nostálgico de um tempo em que havia grandeza nos propósitos, havia ideários, havia lideranças e um futuro por cumprir. Havia lutas por fazer. É isso, não tenho pejo em dizê-lo, que o punho cerrado e a voz potente de Hugh Masekela, enquanto canta “Bring Him Back Home” (Nelson Mandela), ainda hoje acordam em mim.

 

A LUTA CONTINUA!

 

KaMpfumo, 23 de Janeiro de 2023

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