É maré cheia e daqui deste aconradouro, o arquipélago de Mucucune que se estende do outro lado de lá, lembra-me o filme de Francis Coppola, Apocalipse Now. A diferença ´porém é gritante, entre a película que vi nos princípios da década de oitenta no Cinema Manuel Rodrigues em Inhambane, e a história que estou a viver neste lugar esplendoroso, mesmo assim vituperado pelo matadouro que nos impregna com o fedor da bosta. No filme o actor principal era Marlon Brando e era ficção, aqui o personagem de proa sou eu e tudo isto é real.
Estou à espera, com mais gente, do barco que nos vai levar a Guidzivane, uma das ilhotas do mítico Mucucune e que se localiza no extremo norte, escancarada para o oceano Índico. É a efectivação de um sonho antigo, uma oportunidade de viver esses ritos apregoados desde os tempos. Então, sinto uma grande incapacidade de suster a ansiedade que me devora.
Fui o primeiro a entrar na linda barcaça acaba de pintar, logo a seguir vinha uma rapariga a tocar música no seu celular e sentou-se ao meu lado. Esta foi a primeira contrariedade, pois, o que eu queria ouvir ao longo da viagem, era a melodia do vento moderado que sopra do sul, em consonância com o mar sendo amorosamente rasgado pela quilha. Queria contemplar aquela paisagem inteira em silêncio.
Partimos sem alarido, deixando as ondas que se iam esbatendo na margem e nas paredes do repugnante matadouro, e aqui dentro do barco com cerca de quinze passageiros, o silêncio parece triunfar, mas é desmentido pelo som do celular que já está demais. Não consigo concentrar-me no detalhe da viagem e a miúda está animada ouvindo aquilo que até podia ser boa música para os ouvidos dela, mas que oiça isso sozinha porque nós outros queremos escutar a composição da natureza.
Eu já estava no limite da irritação diante desta violação ao meu sossego, era insuportável, e na falta de palavras suaves para não magoar a inoportuna “DJ”, eu disse, moça, porque é que não usas os auriculares? Ela olhou para mim e ignorou-me completamente. E repeti, moça, porque é que não usas os auriculares? Desta vez a rapariga exasperou-me questionando-me, afinal qual é o seu problema?
Calei-me profundamente, suportando a faca enterrada no meu peito por uma miúda com problemas sérios de formação. Uma companheira de viagem que podia ter a idade da minha neta, e ela disse mais perante o meu silêncio de derrota, se o senhor não gosta de música a culpa não é minha.
A fuga de Adriano Bomba, um dos melhores pilotos moçambicanos formados na então União Soviética na categoria de Mig-17, inspirou-me a escrever uma crónica nos princípios do ano 2000, publicada no jornal Notícias. Foi um texto contestado pelos pilotos que o leram, pois não correspondia à verdade, ou seja, a história que eu contava desmentia absolutamente os princípios da física, a não ser que o “caça”, segundo esses mesmos pilotos diziam, estivesse a ser conduzido por mim. Adriano Bomba jamais cometeria aquela peripécia, não por incapacidade, mas porque a gravidade da terra não o permitiria.
Eu descrevia Bomba dirigindo a máquina de guerra a baixíssima altitude, num voo mais do que rasante, ainda por cima fazendo gincanas entre os imbondeiros que se estendem de Chicualacuala à fronteira com a África do Sul, numa acção que visava despistar os radares, mas o que eu dizia era ficção exagerada, nenhum caça-bombardeiro faz aquilo, mesmo voando nas mãos dos pilotos mais sagazes do planeta como Adriano Bomba, o que se descrevia na minha prosa era uma paranóia.
Eu referia ainda que o homem desbaratou temporariamente – no Aeroporto Internacional de Maputo - os controladores de tráfego que assistiam às manobras de um avião que acabava de sair dos trabalhos de manutenção, o qual devia ser testado pelo aludido elegido por ser reconhecido como um “as”, e essa destreza era demonstrada num determinado momento dos exercícios, Bomba elevou em impressionantes acobracias o seu Mig-17, para logo baixar a níveis quase do chão, apontou com a fuzilagem a cabina dos controladores de tráfego que entraram em pânico, tendo caido todos de bruços, com medo, para logo a seguir o av ião passar de “barriga” ao lado da torre de forma espectacular.
Os pilotos que leram esta última passagem disseram que eu estava doente de doido, isso é impossível, não faz parte nem da formação de um doente mental. E como se essa loucura não bastasse, disse ainda que de entre os controladores de tráfego, estava Alberno Chipande na qualidade de Ministro da Defesa Nacional, e que ele também caíu como os restantes, e pior do que os profissionais da aviação civil ali presentes, Chipande desmaiou e molhou as calças de urina. Foi aí então que os meus críticos disseram em definitivo que eu estava a delirar.
Seja como for, Adriano Bomba fugiu naquele dia, naquela cirucunstância deixando os companheiros em desespero, de entre os quais o meu amigo Armando Matsimbe, de quem tenho muitas saudades, pelas histórias sem fim que contava em convívios sem tabus. Mas como ele próprio – o Armando - dizia, a vida é como um caça-bombardeiro em pleno combate, a qualquer momento pode ser atingido por um missil.
Que a tua alma descanse em paz, Mandito, meu irmão de sangue!
Está com medo como nunca. Ele já atingiu a última linha para o abismo onde lhe esperam as verrumas de aço, onde seu corpo será espetado como carne a ser servida aos convivas do inferno. Mariano Nhongo é um pêndulo sem confiança, como sempre foi depois da morte de Afonso Dlakama, nunca teve certeza de nada. Agora caminha completamente no escuro com o tacto a fugir-lhe, está atordoado. Se fosse um ndawu puro seria este o momento para optar pelo suicídio, mas não é ndawu, mesmo assim é a única alternativa que lhe sobra. Entre dar o derradeiro salto rumo ao vazio da noite onde reinam as hienas com as suas sinistras gargalhadas, e levantar os braços da rendição sem a certeza de que será recebido com amor, o general acha melhor entregar sua carne aos abutres.
Nos últimos dias anda em estado permanente de embriaguês mas sem perder a lucidez. Quanto mais ébrio, mais esclarecido. Perdeu o apetite e a vontade de continuar uma luta que lhe levou a verter sangue dos seus próprios irmãos. É esse sangue que agora jorra em catadupa sobre a sua cabeça, cobrindo-lhe os olhos que já não vêem nada. Não dorme, nem de dia nem de noite, o álcool e a cannabis que fuma sem parar, não produzem mais o efeito desejado, Nhongo pretendia com esses estimulantes ganhar coragem e manter o seu estatuto de general, mas tudo isso esfumou-se, ficou um esqueleto em fim de carreira.
Os subalternos deixaram de cumprir as ordens do ora temido homem tido como cicerone de Dlakama, aliás Nhongo esvaiu-se, não dá mais ordens, mesmo que as desse ninguém as cumpriria porque todos os seus sequazes andam bêbados também, como ele. Outros fugiram e entregaram-se, porém há muitos outros que manifestam no fundo essa vontade, mas têm medo de voltar, como o próprio comandante, que deixou de ir ao rio tomar banho, anda desmazelado.
Quando o general ainda acreditava na sua paranóia, ia ao rio livremente e os crodilos fugiam, assim como capitulavam os militares das FADM ao saber da presença desse tigre perigoso num determinado teatro das operações. Mariano Nhongo tinha nos amuletos dos curandeiros mais afoitos de Machanga, a sua fortaleza inabalável, chegou de facto a estremecer os fundamentos da Frelimo. Nhongo era a fúria da cordilheira de Gorongosa, mas hoje todo aquele baluarte está em derrocada, o homem do momento está a despedaçar-se. Em fiapos.
Em toda a sua vida da guerra mais cruel do século passado na África, Mariano Nhongo nunca tinha encarado uma hiena, animal abominável, porém muito feroz quando se junta aos outros bichos da mesma estirpe e partem em matilha para o ataque. Hoje são esses bichos desdenháveis que guarnecem a cubata sombria do general que não pára de beber e fumar cannabis em vão. As hienas riem-se de Nhongo e nas noites mordem-lhes as costelas nos pesadelos de não acabar.
O troar dos canhões que se ouvia ao longe, agora ribomba perto, anunciando a última hora de um relógio que funciona com sangue. Estes são os últimos dias, na verdade, de um grande lagarto que deixou de se mover ou que se move em direcção ao cadalfalso. Mariano Nhongo vive as últimas alucinações.
*Texto imaginário
Recebi uma chamada telefónica de alguém que me acompanhava no facebook, pelos vistos de forma muito particular, ele dizia que já não me via naquela plataforma, o quê que se passa, ilustre? O interlocutor que me abordava nem sequer teve tempo de se identificar e eu não me importei, não lhe perguntei quem era, achei isso supérfluo. É uma figura que fala de forma afável, com o nível mais alto de educação, sentia-se até certo ponto alguma angústia na forma como articulava as palavras. Era voz de um homem a quem eu fazia falta, e isso comoveu-me. Parecia que ele tinha falta de oxigénio, e o oxigénio sou eu. Então é preciso encontrar a melhor resposta para não decepcionar o meu seguidor.
Mais do que tudo, esta ligação renova-me, significa que estou sendo valorizado por um desconhecido, e é embaraçoso quando somos colocados numa situação destas. Vacilei várias vezes até encontrar aquilo que achei ser a resposta mais adequada, embora ambígua. Disse-lhe mais ou menos assim, a vida é inesperada, meu caro!
Depois houve um silêncio tanto do lado de lá, como do lado de cá, parecia que tudo estava sintentizado nesta expressão, “a vida é inesperada, meu caro”! Sim, a vida é inesperada! Ele percebeu esta verdade de modo que não restou outra coisa que não fosse agradecer os momentos agradáveis que lhe proporcionei durante uma temporada, e eu nem sabia que estava alimentando com as minhas intervenções, o coração de um ser humano que agora enconsta-me à parede, não segurando uma espada, mas um pequeno vaso cheio de flores. Aliás, antes de desligar o celular, eu ainda disse mais, talvez um dia volte, quem sabe!
Agora preencho uma grande parte do meu tempo descendo à pequena península que fica aqui perto da minha casa, onde outrora era o paraíso da juventude. Fico neste lugar desordenadamente ocupado por ávidas construções, quase todas elas frágeis, durante horas e horas assistindo ao mar que vai devorando aos poucos a terra incapaz de resistir. Sinto pena dos moradores que já perceberam tudo, ou seja, a destruição das suas casas é inevitável, isso vai acontecer mais dia, menos dia.
Chama-se Mabananeni este espaço que já foi um esplendor, presentemente cercado do lixo rejeitado pelo mar que canta a música do aplocalipse. Nas noites, em dias de marés enquinociais, as ondas, cansadas de se esbaterem nas margens, entram pelas habitações adentro molhando tudo e as próprias pessoas que serão fustigadas até ao interior do ser. Depois a maré vai vazar para esperar outros enquinócios que já se tornaram ferozmente cíclicas.
Já não tenho dúvida de que a minha pequena península um dia desaparerá, engolida pelo mar determinado, e eu acompanho esta dura realidade sem poder fazer nada. Resigno-me como estes poucos moradores trazidos pela desgraça. Assisto impotente, as ondas avançando de triunfo em triunfo, ao encontro da nossa derrota colectiva.
Tudo o que ela diz parece uma renovação, pela maneira como dá sentido às palavras. Vibra em todo o ser quando diz, por exemplo, que a linha férrea passava por aqui. Aqui perto da minha casa. É como se ela própria fosse o comboio à vapor puxando em tempos de história e cumplicidades e amizades desinteressadas, longas carruagens repletas de gente em feliz algazarra. Rebusca passados esquecidos e transforma-os em fonte de água nos dias de canícula. Desdenha as muletas e o andarilho, mesmo sabendo que aquelas pernas precisam de ajuda.
Sumbi Mahenhane é a lembrança das frenéticas execuções de zorre, em noites vertiginosas nos subúrbios da cidade de Inhambane. Era a raínha sobre quem tudo gravitava, incluindo o batuque tocado por Mafanele, o “King”. Sumbi puxava os instrumentistas para o ritmo do seu corpo, desenhado pela Mão do próprio Deus para enlouquecer. E quando ela não estivesse nesse dia, as estrelas do Céu recusavam-se a brilhar. A lua também.
Hoje ficaram as palavras que lhe ressurgem da boca e do espírito. São elas – as palavras – que dançam debaixo do rufar imaginário dos tambores que outrora eram os fundamentos da vida desta mulher. Só a dança lhe dá o sentido da existência. O sonho só pode prevalecer com o som do ritmo. Nada é mais importante, senão a dança. E o amor. É por isso que continua a dançar, agora com as palavras. Retumbantes.
O que mais impressiona em Sumbi Mahenhane é a inabalável vontade de viver. Ela fala com esperança, como se o corpo esperasse nova oportunidade de pisar os palcos e balançar em liberdade. Espanta a memória deste pássaro. Ela lembra-se de todas as noites em que a luz era o seu corpo. E na verdade, Sumbi era o encanto da própria vida. Ou seja, o óleo derramado em Arone, desde a ponta dos cabelos até à ponta dos pés, foi inoculado também sobre esta mulher que brilhava em todo a esfinge. E agora reluz em toda a alma que ainda mora neste corpo em derrocada.
O que move Sumbi Mahenhane não é o presente, mas o passado de glória. Passado do qual nunca recebeu medalhas. Nada! Ela nem sabe o que é isso. Bastam-lhe os ecos da alegria que dava ao povo. As galardões são as pessoas do vulgo, algumas das quais ainda demandam a sua casa para falar desse passado. Com a mesma verve com que o corpo se entregava à dança. É essa presença humana que a faz acreditar no futuro.
Completou noventa anos no dia 15 de Junho passado. Festejou com a família e amigos, num ambiente em que não faltaram batucadas leves, para celebrar o passado de alguém que continua a falar com alegria. Com esperança.
Parabéns, Sumbi Mahenhane!
O demonstrativo desse sentimento é a minha obsessão por lugares abertos com pouca gente, como aqui onde me encontro, na Praia da Barra, testemunhando a derrocada do próprio fascínio. Vejo o Índico avançando devagar, porém resoluto, ao encontro das dunas ocupadas pelos homens, e parece já não haver nada a fazer perante a fúria do mar. Que vai destruir tudo isto.
Tenho o celular no dispositivo do silêncio, pois não quero ser interrompido nesta audição à música do oceano e dos pequenos montes de areia que vão sendo deluidos pelas ondas. Eu oiço esses montículos cantando dentro de mim a melodia da dor, composta pela ganância e estupidez. E nós mesmos não quisemos perceber os limites da nossa liberdade, indo até onde não deviamos, tocando em obras da natureza feitas apenas para a contemplação.
Eu também faço parte desta praia que vai sendo demolida pelas águas, pedaço a pedaço. Estou aqui há muitas horas e ainda não vi ninguém passando ou chegando, a não ser as aves marinhas voando rasante por sobre as ondas, outras passando perto de mim, saudando-me, ou simplesmente para admirarem alguém que ousa estar sozinho num sítio em decomposição. Sem medo de nada, nem da imensidão assustadora do mar determinado na devastação da terra.
Na verdade não tenho medo de estar aqui, e isso pode significar que estou no zénite, e a solidão, como se sabe, é o ponto mais alto da vida, e eu já estou lá, onde posso delirar livremente nas minhas alucinações provocadas pela incenssante imaginação. Aliás a minha vinda à Barra revela isso, mas no fundo é mentira, nunca estou sozinho. Tenho o mar como almofada, as dunas ruindo, as aves planando, e a presença magnética do silêncio que me faz viver como nunca.
Se há uma ave por estas bandas, arrebatada e desfrutando deste encanto sem limites, eu sou! Não me importam os ponteiros do relógio, nem as chamadas dos amigos que ligam ao meu telefone activado para o silêncio, esses podem esperar, contrariamente a esta consonância entre mim, o Índico, as dunas, os ventos, e o próprio silêncio. Até porque cheguei a pensar que a praia estivesse vazia, ela está repleta desta poção mágica vertida por sobre a minha alma.
A praia da Barra dói-me na música que ela canta, composta no conservatório do fundo dos mares. Ninguém a quer escutar, pois cada vibração é uma facada na esperança. A Barra pende num fio frágil que vai rebentar daqui a pouco, e eu estou aqui assistindo a esse momento dramático, com o celular no silêncio. E como o sol já está a cair no horizonte, por hoje basta, vou-me embora, entristecido, desolado como todo este espaço esplendoroso. Se calhar volte outro dia, sem expectativa, quem sabe!
M´saho é essa grande festa dos chopes, organizada anualmente para esconjurar os espíritos que têm trazido ventos infaustos por aqui. O próprio mwenje, árvore de onde se vai extrair a madeira para produção da timbila, está sendo varrido por poeiras invisíveis que se instalaram em mãos humanas para destruir. De ano para ano a sensação que nos fica é de que o remoinho provocado pelo toque e dança e canto desta tribo do sul de Moçambique está a desvanecer. E para agravar o cenário sombrio, veio a COVID-19 impedir a realização – que teria sido em Agosto – do festival cujo palco entra em consonância com as Lagoas de Quissico.
Warethwa! (Cuidado!). Na verdade quando a xipalapala retumba, é preciso ter-se cuidado com o que vem das mãos e do corpo inteiro dos chopes. Da alma deles. Inabalável. Revolta. Insaciável. Quer dizer, Quissico - o vilarejo eleito - ressurge. Engrandece-se. Embevece. E é projectado para o mundo inteiro, de onde depois traz as pessoas do planeta para este lugar insignificante na sua geografia. Todos querem estar aqui para se embebedarem com a loucura da timbila. Delirarem com as diabruras esvoaçantes da mathchatchulani, que vai parecer uma gazela dançando livre nas savanas, nas manhãs, agradecendo à Deus pelo sol que raia com esplendor no crepúsculo..
Mas hoje em dia eu não sei se o M´saho ainda tem verve. Não sei se esta festa continua a resguardar o unguento dos tempos para amassajar as almas sedentas da secular música vertiginosa dos chopes. Não sei! Tenho as minhas dúvidas. Parece ser urgente e inadiável que se tenha em grande consideração o facto de estarmos perante um Património Cultural da Humanidade. Não que não haja esse respeito, mas a sensação que tenho é de que está-se a fazer pouco, começando pelo palco que acolhe as orquestras. Ou seja, para quem chega antes de começar o M´saho, e antes de chegarem as pessoas da assistência, regra geral o que se vê são pequenos sinais como dísticos apelativos com pouca chama em termos de imagem. E pior do que isso, olhando-se para o palco, a pergunta que vai surgir imediatamente será: é aqui onde vamos assistir às loucuras dos chopes? Na verdade o palco instalado não é de forma alguma digno de receber uma manifestação de tão elevado porte cultural.
É aqui provavelmente onde começa, ou se agudiza a contrariedade. Talvez a decepção. Os executantes são acolhidos naquilo que tende mais para um alpendre carrancudo, do que propriamente para um palco. Quem construiu aquilo provavelmente não tem sensibilidade sobre o que é um festival desta dimensão, sobre a grandeza da timbila no mundo. Não só temos na obra os irritantes pilares múltiplos, como também o tecto atarracado, sufocando os artistas e aqueles que estão sentados nas bancadas.
Em conversa oportuna com Filimone Meigos (director do ISARC) e Rufas Maculuve, músico e professor de música na mesma instituição, eles também indignaram-se com o palco que deve ser repensado urgentemente para os próximos festivais. O lugar tem um tesouro invejável que são as Lagoas de Quissico, esplendorosas, algo que não pode passar despercebido durante o evento. As Lagoas de Quissico devem fazer parte do Festival. E fazer com que aquela paisagem seja pertença do M´saho, passa necessariamente por repensar o palco.
É imperioso e urgente levar as coisas mais a sério, porque aqueles que vão à Quissico pelas alturas do M´saho, querem ver a beleza em si estampada em todo o lado. Os estrangeiros em particular, vão para ali porque já ouviram falar desta manifestação cultural e sabem que é Património Cultural da Humanidade. Sabem que a festa da timbila é elevada, então os organizadores precisam de corresponder à todas as expectativas, tornando o festival num importante eixo que deve passar também pela capacidade de fazer a comunicação e imagem. O Marketing. E espreitar aquilo que se faz noutros eventos pelo mundo fora, porque o M´saho tem dimesão mundial. E em tendo uma dimensão universal, é preciso fazer algo que justifique isso.
Sou morador do bairro Liberdade 3, num canto chamado Fonte Azul, carregado de longa histótória que inclui um campo de futebol denominado Bángwè. É tranquilo como toda a cidade, e ao amanhecer ainda podemos ouvir o chilrear dos pássaros que povoam as árvores, sem medo das pessoas que não as espantam. É uma maravilha que entretanto vai degenerar quando chega a vez dos aparelhos sonoros, acionados pelos donos que deviam conhecer e cumprir com as regras impostas às pessoas que vivem numa comunidade.
A postura camarária determina que da mesma forma que não se deve poluir o ambiente com lixo, também não se deve poluir esse mesmo ambiente com qualquer que seja o som. Mas esta última obrigatoridade é literalmente ignorada por boa parte dos munícipes, que exibem, sempre que lhes aprouver, a potência da sua aparelhagem sem se importarem com os vizinhos. Que estarão sujeitos ao barulho violento.
O pior é que esses senhores que violam sistematicamente um dos nossos direitos humanos que é o sossego e a tranquilidade e a paz, acham-se autorizados a fazer o que bem entendem porque segundo eles próprios, “eu estou na minha casa”. Aliás, nem às estruturas do bairro respeitam, e estes responsáveis, cansados de lhes chamar a atenção, acabam resignando-se de forma incompreensível, pois existem mecanismos para se combater esta anarquia, e um desses recursos é a Polícia Camarária que, na incapacidade de colocar ordem, pode solicitar a intervenção da Polícia de Protecção.
É um verdadeiro caos em todos os bairros da periferia. Aos fins-de-semana não nos deixam dormir. Eu pessoalmente não me canso de ligar ao Comando da Polícia Camarária quando a festa começa. Em determinados momentos eles vêm e resolvem o problema, mas na semana seguinte recomeça, como uma doença degenerativa. Volto a ligar e por vezes não há carro disponível, “está no Tofo a fazer trabalho”. Noutras vezes ainda, dizem para aguardar que “havemos de ir aí”, mas amanhece sem terem vindo, e nós sem termos dormido.
Já alertamos ao presidente do Município usando as redes sociais sobre este mal que nos flagela todos os dias. O que não sabemos é se ele captou esse nosso clamor porque o que está acontecer é na verdade algo muito sério, que precisa de uma intervenção bastante séria e urgente. É uma questão de vontade por parte de quem de direito porque é possível cortar este desmando de uma vez por todas, para trazer a tranquilidade aos munícipes que depositaram o seu voto para que o edil nos dirija e nos proteja.
Uma das estratégias de luta seria reunir primeiro todos os secretários de bairro e seus colaboradores, nomeadamente chefes de quarteirão e chefes de 10 (dez) casas, os agentes da Polícia Camarária e o vereador da área, onde o presidente do Município daria orientações claras de como partir-se para o desmantelamento da poluição sonora. Não é difícil havendo vontade. Esse encontro deve ter cobertura dos órgãos de informação. O edil tem que ter uma intervenção vigorosa, avisando a todos os prevaricadores que a partir daquele momento, seriam sancionados se não cumprirem com o preceituado.
Ainda neste combate a poluição sonora no município de Inhambane, podia-se colocar publicamente por via dos órgãos de informação , nas redes sociais e nas sedes dos bairros, os números de telefone do comando da Polícia Camarária. Às estruturas de bairro deve ser exigida intervenção para salvaguardar o bem estar da comunidade. Outro aspecto ainda, aos que não respeitarem a esta ordem e continuarem a poluir o ambiente, serão confiscadas as aparelhagens e aplicadas.
O presidente do muncípio deve informar à população que é dever de todos denunciar este tipo de comportamentos. É uma questão de vontade e de responsabilidade por arte da edilidade e das estruturas de bairro. De resto o sossego é um dos direitos humanos que nos assiste a todos.
O celular vibrou no bolso das calças e eu achei que podia atender noutra altura, depois de descer do barco. Eram oito horas da manhã de um sábado, e o meu destino era Linga-Linga, onde tenho ido amiúde ver a Fazilange, minha tia. Há dois caminhos para se chegar lá, a partir da Maxixe. O primeiro passa por Móngwè, e o outro por Murrombene. As duas vias têm o seu fascínio próprio, é por isso que me entrego a elas de forma aleatória. Mas existe ainda a esplendorosa estrada do mar, que nos leva ao êxtase da beleza, como se tudo aquilo fosse um paraíso.
Somos seis ocupantes da embarcação, incluindo dois tripulantes experientes, capazes de preverem a mudança dos ventos sem recorrerem ao barómetro, o barómetro são eles. Conhecem pelos nomes, cada lugar deste tapete azul que se estende entre os palmares da Maxixe e Murrombene, e outros palmares que ressurgem em Mucucune e Guidwane. Depois temos uma enorme vaga que nos deixa ver o Índico,por onde vão entrar os barcos de cabotagem que nunca mais apareceram por aqui.
Na verdade estamos no paraíso, e perante esta sumputuosidade da natureza, qualquer palavra será desnecessária. É como se nos prostrássemos a ouvir boa música, interepretada ao som das harpas. Não se fala quando é assim. Fica-se em silêncio, assim como nós estamos, deixando que as emoções triunfem. Também porque neste lugar quem manda são as gaivotas, que escolatam a nossa barcaça, susceptível dos sopros.
Mas eu vou a Linga-Linga ver a Fazilange. Providenciei um pequeno cabaz, que inclui duas garrafas de vinho, as quais vão proporcionar alegria a minha tia que me espera desde ontem, após uma ligação que fiz a dizer assim, Fazi, amanhã estou aí! É minha amiga. Ela gosta muito de mim na mesma proporção em que eu a admiro. Há uma afinidade entre nós. Falamos a mesma linguagem. De paródia.
Fazilange vive numa casa modesta virada eternamente para o mar. É uma mulher muthswa, levada para ali pelo marido, um bitonga pescador atacado e morto por um tubarão em plena faina. Então, a vida da minha tia, mesmo sem perder sentido, ficou profundamente abalada. Pior porque nunca teve filhos, nem ela, nem Khwambe Makwandra, e os dois eram felizes.
Agora vou a casa da minha amiga para matar saudade. Para lembrar momentos vibrantes que passamos juntos com Khwambe Makwandra, um homem jovial que vivia a vida profusamente. Quero ouvir a voz de soprano da Fazilange, tendo como catalizador o vinho que levo. Quero sentir o abraço profundo da minha tia. E já no auge, cantaremos canções dos nossos ídolos, onde não faltará Yimpi ya mafilista (guerra dos filisteus), do hinário da Igreja Metodista Unida.
Fazilange agora move-se com dificuldades, ela treme nas pernas, mas por dentro emana energia, testemunhada pela voz equalizada que canta versos antigos. É isso que me leva a visitá-la constantemente, como hoje, que vou passar aqui todo o sábado e todo o domingo, sem atender a nenhuma chamada do telefone que não pára de vibrar. Estou pouco me lixando para os que querem falar comigo, nem que seja para me comunicarem a última tragédia. Deixem-me ao menos desfrutar deste pedaço de paz, depois voltarei às azáfamas!
A primeira experiência que tive foi terrível, eu tinha apenas catorze anos. A minha mãe sofria de uma doença desconhecida. Estranha. Rastejava como um grande lagarto humano. Por vezes contorcia-se lembrando as serpentes em desespero. Na nossa casa o silêncio era por demais aterrador, e os meus dois irmãos mais novos chegaram a um ponto em que já não falavam. De fome. Parecia que estavam num funeral sem fim, assistindo aos seus próprios corpos descendo ao abismo. Vezes sem conta acercavam-se da mamã, abraçando-a sem se importarem com o mau cheiro que exalava. Eles também, como eu, cheiravam mal por falta de banho.
Não tinhamos nada. O papá foi-se embora para onde até hoje ninguém sabe, numa altura em que ainda não podiamos perceber as coisas, e a minha mãe nunca nos explicou sobre o desaparecimento do nosso projenitor porque ela perdeu a fala. Fomos crescendo como filhotes de uma fêmea abandonada. Incapaz. Sem provento. Pior do que isso, uma fêmea decepada por dentro, que vai passar a vida inteira sem poder caminhar na vertical. Era arrepiante ver minha mãe erguendo o corpo como uma grande salamandra e ir a casa de banho para a satisfação das necessidades. E regressava sem se lavar adquadamente porque não tinhamos sabão. Não tinhamos nada. Absolutamente nada. Não sabendo, até hoje, como é que chegamos vivos até àquele limite.
Mas eu já não podia suportar mais uma situação que superava as nossas capacidades de sofrimento. Era um castigo que queimava mais que o fogo do vale de Guehena. Então, precisa urgentemente de fazer qualquer coisa. Tinha que me mover, não como a salamandra encarnada na minha mãe, mas como alguém capaz de abdicar do corpo e entregar-se aos sabujos. Era mais fácil assim, segundo o que eu pensava, do que procurar trabalho com a idade que tinha. Por isso decidi vender-me para alimentar meus irmãos e tentar mudar a vida da minha mãe.
Apesar de criança, eu possuía corpo de mulher. Era bonita, e já tinha consciência de que nenhum homem resistiria aos encantos da minha fisionomia. Era portador de um activo valioso, que podia ser colocado na mesa das negociações com alguma arrogância. Aliás, antes de entrar nesse carreiro do diabo, já conversava com as minhas vizinhas que tinham uma longa carreira de prostituição e elas falavam-me das manhas que era preciso ter se quisesse fazer aquele trabalho catalogado no patamar do abominável. Até porque fui relutante, porém cheguei ao ponto em que já não aguentava assistir a minha família sucumbindo.
Expus-me resolutamente na montra da noite, preparada para o pior, vestindo saia curta, comprada com dinheiro que pedi emprestado a uma daquelas que viriam a ser minhas companheiras do infortúnio.. Sabia que estava entrando para o inferno, porém nas circunstâncias em que vivia com a minha mãe e meus irmãos, eu precisa entrar no inferno, para dar o Céu aos meus irmãos. À minha família. Não era o prazer que me chamava, mas o dinheiro, esse metal do diabo, que sem ele não haverá pão em casa.
Parou ao meu lado um carro de luxo, e o homem que ia ao volante convidou-me gentilmente a entrar. Já me tinham dito, as minhas amigas, que eu valia ouro, por isso não devia brincar em serviço, ou seja, tinha que cobrar de acordo com o meu estatuto. E foi isso que fiz. Sem saber, todavia, que a experiência seria amarga.
Eu era virgem, e o homem, ao aperceber-se disso, despejou sobre mim todo o seu sadismo. Estuprou-me com violência, e ainda revirou-me como carne no espeto sobre o fogo, sem se importar com o sangue que molhava os lençóis da pensão. Eu gemia de dor, e ele castigava-me mais a cada gemido.
Voltei para casa de madrugada. Esfarrapada no corpo e na alma. Revoltada. Decidida a nunca mais voltar a entregar-me às noites. Mas era mentira. Nesse dia a luz materializou-se na nossa casa. Comemos pão com salada e peixe frito, como nunca o tinhamos feito. Os meus irmãos tomaram banho com sabão. E a minha mãe, sem me dizer nada, chorou por perceber tudo. E comeu a comida da ignomínia. Mas tinha que comer para sobreviver.
Tornei-me profissional depois de todas as dores. Depois de toda a vergonha. A minha ferramente era o corpo. Usado e abusado, mas era uma importante jazida de rubis esgotáveis. Comprei um apartamento. Levei minha mãe ao tratramento médico na África do Sul, de onde regressou curada. Os meus irmãos estão formados, com a universidade paga pelo meu corpo subjugado. Mesmo assim, continuo a ser uma cobra, apesar das vestes de púrpura que me cobrem.