“As recentes reportagens passadas nos órgãos de comunicação social, mas antes nas redes sociais, em que um autocarro é queimado sem dó nem piedade, o relato de moçambicanos que sofreram sevícias naquele território, alegadamente, porque machanganas roubaram quatro D4Ds”, a indiferença da polícia sul-africana e, pior, a indiferença da nossa Diplomacia, que equivale dizer do nosso Governo, Governo de Moçambique, preocupa a muitos cidadãos atentos ao desenvolvimento, por isso a Sociedade Civil e o Sector Privado devem manifestar indignação com os acontecimentos, num acto que pode configurar que a África do Sul se declara inimiga de Moçambique!”.
AB
Os actos de vandalismo, perpetrados por cidadãos sul-africanos contra os moçambicanos e suas propriedades e a indiferença com que age o Governo da África do Sul demonstram claramente que o País vizinho não é amigo de Moçambique e tão pouco nos quer como parceiros naquele país vizinho. Mas, mais do que isso, o silêncio dos nossos serviços Diplomáticos pode traduzir a falta de vontade na protecção dos seus cidadãos no estrangeiro e isto preocupa a qualquer um, independentemente do seu interesse na visita à África do Sul.
Circula, nas plataformas digitais (Whatsap), vídeos e áudios relatando os acontecimentos e um dos áudios que ouvi é de um cidadão que repete de forma frequente: “irmãos! Isto é sério”. Diz ele no áudio que foram parados somente carros moçambicanos e nele deitaram gasolina, queriam queimá-lo. Mas conseguiram reunir 10.000 Rands e foi então que lhes deixaram passar. Num outro vídeo, uma senhora fala sobre a vingança dos sul-africanos nos seguintes termos: “dizem que machanganas roubaram quatro D4Ds e os proprietários foram mortos”, por isso estão a vingar-se.
Nos dois relatos existe algo em comum, é que as autoridades sul-africanas, mais concretamente a Polícia, depois de informada não “move palha” e, aos olhos do comum cidadão, isto parece algo coordenado entre os bandidos e o Governo da África do Sul. Mas preocupa-me mais o silêncio das autoridades moçambicanas perante este ataque a pessoa e seus bens num País estrangeiro. Ontem, na TVM, apareceu um senhor que se diz Director dos Serviços Rodoviários a falar do assunto e quase arrisco-me a dizer que “falou e não disse absolutamente nada que interesse” o público afectado.
Pessoalmente, advogo que nós moçambicanos deveríamos deixar por mínimo de uma semana a ida à África do Sul via terrestre. É verdade que muitos vão para lá por razões comerciais e dizer isto é o mesmo que “cortar-lhes as pernas”. Na minha opinião, irá doer, mas é a única forma de podermos demonstrar o nosso descontentamento e, certamente, a economia sul-africana iria ressentir-se e o Governo seria pressionado a agir contra os bandidos. A África do Sul precisa de um sinal, um sinal que demonstre que temos interesses naquele país, mas eles também saem a ganhar com a nossa entrada e saída naquele território.
Moçambique deve parar com a sua Diplomacia “silenciosa”, o caso é sério como dizia o cidadão que foi “regado” com gasolina e foi salvo por 10.000 Rands. Não podemos viver assim. A par da pressão social a ser feita, deve haver uma atitude do nosso Governo contra esta onda de criminalidade perpetrada por cidadãos sul-africanos porque, se deixam as coisas ganharem grandes proporções, passará a ser o “modus vivendi” daqueles cidadãos que concluirão que podem ganhar a vida interpelando e extorquindo, na via pública, cidadãos moçambicanos sem que as autoridades locais façam qualquer coisa.
Mas, mais do que o Governo, o Sector Privado deve posicionar-se com relação a este assunto periclitante. São empresários moçambicanos que perdem seus bens no exercício das suas actividades e se tornarão paupérrimos, pedintes e devedores de um tesouro cego e mudo, de uma Banca comercial insensível e ávida de lucro fácil sem olhar para o estado da “vaca que lhe dá leite”. Isto é preocupante, por isso advogo que todos nós não somos suficientes para manifestarmos a nossa indignidade, parem com isso!
Adelino Buque
De forma simplista, podemos considerar que a Síndrome de Estocolmo é um mecanismo de reacção a uma situação cativa ou abusiva a que determinadas pessoas são submetidas. E estas, por consequência, desenvolvem sentimentos positivos em relação aos violadores, ao longo do tempo. Esta condição se aplica às situações que incluem o abuso de crianças, abuso de relações conjugais ou, ainda, o tráfico sexual.
Tecnicamente, no mundo da Medicina e Psicologia, a Síndrome de Estocolmo é entendida enquanto uma resposta psicológica, que ocorre quando sequestrados, reféns ou vítimas de abuso se ligam psicologicamente aos seus raptores. Em outras palavras, tal situação ganha força quando, após contínuas sequências de sofrimento, a vítima incarna, na sua mente, aquela sensação como normal e passa a conviver, de forma natural, com o opressor; ou é atingida por um esquecimento temporário que lhe faz ver o seu ‘canalha’ como um indivíduo que apenas pratica o bem.
A designação da Síndrome deriva de um assalto a um Banco em Estocolmo, capital da Suécia. Em Agosto de 1973, quatro funcionários do Sveriges Kreditbank foram mantidos como reféns no cofre do Banco durante seis dias. No decorrer deste período, desenvolveu-se uma ligação aparentemente incongruente entre os sequestrados e sequestradores. Um refém, durante uma chamada telefónica com o então Primeiro-Ministro Sueco, Olof Palme, declarou que confiava plenamente nos seus raptores, mas temia morrer num ataque da polícia ao edifício. Ou seja, conforme o procedimento deste refém, entende-se que o instinto de sobrevivência está no cerne da Síndrome de Estocolmo, visto que as vítimas vivem em dependência forçada e interpretam actos raros ou pequenos actos de bondade em meio às condições horríveis como um bom tratamento.
Se quisermos aplicar o introito acima para o caso de Moçambique, precisamos retomar ao debate efervescente que tem sido caracterizado por um distribuir gratuito de simpatias que o então Presidente da República, Armando Guebuza, tem estado a conquistar em cada aparição pública. Aliás, engana-se quem tenha concluído que tal teve o início apenas na celebração dos seus 80 anos de idade. Com alguma atenção, se o número de apoiantes representa um critério de medição de popularidade, basta uma visita rápida à sua página no Facebook para constatar a forma como se tem criado uma narrativa positiva relativa ao antigo governante.
Ora, trouxemos a proposta de Síndrome de Estocolmo Política para espelhar o que, no nosso ponto de vista, é a máxima dominante de toda esta situação. Sucede que, de um provável mal-amado no fim do seu mandato (*2015), o Presidente Guebuza parece ter espantado, com mestria, os seus ‘fantasmas’, visando ser o actual ‘bem-amado’ de vários moçambicanos. Para nós, isto revela que estamos diante da presença de uma Síndrome de Estocolmo Política, se considerarmos que o mesmo Presidente é co-responsável directo pelo que o País conhece, desde que este saiu da Presidência.
Mesmo que o País não tenha a cultura ou capacidade de realização de pesquisas de opinião de fim-de-mandato, assumimos a ousadia afirmando que o Presidente Guebuza não é, certamente, quem tenha tido bons níveis de aprovação popular quando deixara o poder. O nosso entendimento baseia-se no facto segundo o qual o contínuo martírio social na actual governação, caracterizado por uma aguda mendicidade colectiva na qual os moçambicanos estão expostos, faz com que estes prefiram o que em linguagem popular se considera “menos pior”. Ou seja, o pior a ser equiparado ao péssimo. Dito de outra forma, ambos, antigo e actual Presidente, são os ‘arquitectos’ máximos do desencanto que Moçambique tem vivido nos últimos 18 anos (desde o primeiro mandato de Guebuza até aos dias actuais).
Ademais, sem querer menosprezar as suas obras e valiosas acções no passado, para nós, o actual (des)caminho de Moçambique tem uma dose directa proveniente da governação deste Presidente, que tem sido colocado, ultimamente, como o ‘El-Salvador’ da Pátria. Por isso, tentar esquecer, mesmo que de forma incauta, os ‘pecados’ (passados, mas bem presentes na vida dos moçambicanos) do Presidente Guebuza faz parte de um teatro de massas abocanhadas pelas aparentes desavenças dos membros de elite do partido Frelimo. No nosso entender, estamos diante de um cenário que parte de uma elaboração dos media, algo explicado no que, em tempos, Adorno & Horkheim (1984) chamaram de “Indústria Cultural”, ou o que autores como McCombs & Shaw (1972) anteriormente designaram de “Definição de Agenda”.
Por conseguinte, não podemos refutar a desgovernação que temos perante o actual Executivo, espelhada pela falta de um horizonte para onde Moçambique segue ou deveria seguir. Contudo, tal não nos pode criar um estado amnésico igual ao que tem imperado neste País desde 1994, ano das eleições fundadoras, todas elas dominadas pelo mesmo partido político. Em outras palavras, o nosso problema não é tentar ‘salvar’ um Presidente que tanto mal causou aos moçambicanos ou insistir que o actual Presidente enverede por um fictício terceiro mandato. É, pelo contrário, uma Refundação dos alicerces que estruturam a nossa forma de governação. Ou seja, precisamos de um tratamento para cuidar da nossa Síndrome. Enquanto tal não suceder, o entretenimento político do que temos visto com a aparente ‘crise das comadres’ continuará a desviar-nos a atenção face ao real (des)caminho governativo que vivemos como País.
Num outro cenário, algumas vozes tendem a considerar a actual situação que se vive em Moçambique no que podemos designar “crise intra-partidária”. Podendo-se aceitar tal hipótese, teríamos dificuldades em enquadrar uma realidade que coloca actores do mesmo partido a falarem de forma dessincronizada. Mesmo que se admita a influência do ambiente eleitoral já iniciado, pensamos que não estamos perante uma crise do tipo partidário clássico, mas, provavelmente, um entretenimento discursivo e mediático, tal como se assiste entre os confrades partidários Cyril Ramaphosa e Jacob Zuma, na vizinha África do Sul.
O punho cerrado de Hugh Masekela enquanto cantava “Bring Him Back Home” (Nelson Mandela), num memorável espectáculo, em Harare, no Zimbabwe, a 14 de Fevereiro de 1987 – eu estava à beira dos 20 anos! –, povoa, de forma vívida, a minha memória, necessariamente nostálgica daquele tempo. O som pungente do seu trompete ainda esplende dento de mim e acorda nas minhas entranhas os deuses africanos. Passaram-se quase quatro décadas e eu me lembro daquele momento exuberantemente singular. As imagens aparecem esbatidas numa vetusta TVE, predecessora da TVM: Paul Simon apresentava “Graceland” e estava acompanhado de magos sul-africanos no Rufaro Stadium. Para quem não viveu os duros e exaltantes tempos em que enfrentámos o apartheid tudo isto não tem a mesma carga simbólica e até pode parecer uma frivolidade.
Miriam Makeba cantou “Soweto Blues”, a música que Hugh Masekela fizera para ela. Cantaria também “Under African Skies” ou “N´kosi Sikeleli Africa” (com todos). “Soweto Blues” foi a primeira música de Masekela que eu conheci, ainda nos tempos em que vivia na mítica Nacala, nos anos 70, na voz de Makeba. Hugh cantou “Bring Him Back Home” (Nelson Mandela) e “Stimela”, com aquela sua força telúrica. Ele era uma brutal força da natureza. Ray Phiri, outro deus morto, estava na viola solo. Estão os três mortos na planície. Como estão outros. Os deuses da minha adolescência lírica, feita de versos, canções, sonhos e futuros.
Hugh Masekela impressionou-me ali para sempre. Estava na companhia dos seguintes músicos sul-africanos: Ladysmith Black Mambazo, comandados pelo carismático Joseph Shabalala, outro deus estirado na planície. Estavam ainda: John Selowane na guitarra, Bakithi Khumalo no baixo, Barney Rachabane no saxofone, entre outros, para além Nomsa Caluza e Sonti Mndebele, que faziam os coros. As duas grandes figuras, para além de Paul Simon, naquele palco e naquela tarde, foram, indubitavelmente, Miriam Makeba e Hugh Masekela.
Os dois eram, à época, expoentes da música sul-africana e activistas intrépidos na luta contra o apartheid. O seu apoio ao projecto de Paul Simon, que desagradou a cúpula do ANC, foi importante. Deles e de Ray Phiri e todos outros. Aquilo que fizeram como contributo na luta pela erradicação do regime do apartheid está por reconhecer. No meu entender, foi um contributo decisivo. Romperam barreiras, deram visibilidade a uma luta, foram a extensão da voz de Nelson Mandela, que estava encarcerado.
A importância de ambos não se pode aurir no facto de terem estado naquele palco, naquele dia e naquela tarde. Mas ali se pode dizer da poderosa metáfora daquela luta e de todas as vezes e de todos os palcos.
Há uma fotografia celebérrima de Peter Magubane, um deus sul-africano, hoje nonagenário, que mostra um punho cerrado. Foi a grande alegoria da luta. Não sei se naquele plano e naquele momento, Hugh Masekeka fazia o paralelo com essa imagem poderosíssima do mítico fotógrafo, outro combatente contra o apartheid, mas a sua voz poderosa, o seu trompete singularíssimo e aquele seu gesto enfático, mesmo depois de estes anos todos, ainda me deixam exultado.
Masekela usava ainda o cabelo grande e tinha, como sempre teve, aqueles olhos impressivos e esbugalhados. Tinha, à época, 48 anos, contava quase 30 anos de exílio, combatia intransigentemente nos palcos do mundo. Vê-lo cantar “Stimela”, com aquela força da natureza, com aquela energia, fez dele um dos músicos sul-africanos que eu haveria de cultuar para sempre. Eu nunca vira algo igual. Era extraordinário. Era libertador. Era exultante. Era poderoso. Era vigoroso. Era potente. Era veemente.
Aquele espectáculo de Paul Simon foi um marco na minha vida. Aquele disco de Paul Simon foi um acontecimento para mim. Para aqueles que sonhavam com a liberdade dos sul-africanos. Para aquele que pugnavam por uma África do Sul igual para todos. Decerto, aquele momento prenunciava um novo tempo e estava inscrito nele a esperança do porvir. Nós vivíamos na ânsia de ver Nelson Mandela liberto e “Graceland” e a incursão de Simon pela música sul-africana e com os músicos sul-africanos parecia um sinal inequívoco de que algo iria acontecer. Algo estava para acontecer. Isso só viria a suceder nos primórdios da década ulterior.
Oiço agora, como sempre, Hugh Masekela cantar: “There is a train comes from Namibia and Malawi/ there is a train that comes from Zambia and Zimbabwe. / There is a train that comes from Angola and Mozambique. / From Lesotho, from Botswana, from Swaziland. / From all the hinterland of Southern and Central Africa. / This train carries young and old, African men/ Who are conscripted to come and work on contract/ in the golden mineral mines of Johannesburg/ And its surrounding metropolis, sixteen hours or more a day / For almost no pay. / Deep, deep, deep down in the belly of the earth”. Deep! Deep! Deep!
A letra e a música têm uma força e a interpretação de Hugh Masekela é inesquecível. As várias interpretações, digo. Há pouco vi uma que ele fez em Lugano. Mas há várias nos vários palcos do mundo. Ele cantou esta música não sei quantas vezes, e sempre com uma energia, um alento, um dinamismo e um arrojo. Cantou-a, por assim dizer, até ao fim. A sua fibra, a sua vivacidade, a sua força moral, intelectual e política.
Era a música da sua causa maior: a luta contra a injustiça. Para além de a cantar, era seu hábito fazer um discurso sobre os explorados, sobre os espoliados, sobre os oprimidos, sobre a liberdade, o valor da liberdade, sobre os mártires, sobre os que tinham morrido nas minas ou na luta. O seu trompete vibrava em nós. Continua a vibrar em nós.
Vi-o cantar, mais tarde, em diversos lugares. Vi-o em Maputo, vi-o na Cidade do Cabo e em Joanesburgo. A última vez que o vi tocar e cantar foi no Kippies – assim se chama o palco em homenagem a Kippie Moeketsi no festival de jazz da Cidade do Cabo -, com a sala completamente cheia a cantar e a dançar numa explosão de alegria que não sei descrever. Masekela fazia uma extraordinária homenagem a Miriam Makeba, sua companheira de vida e de luta. Mas vi-o sobretudo naquele 14 de Fevereiro na minha vetusta TVE. Continuo a vê-lo nos meus dias. Continuo a ouvi-lo por estes dias aziagos. Continuo a encontrar nele o alento e o estímulo. A esperança. O tónico para estes dias ominosos. O lenitivo de que preciso.
Hoje, de 23 de Janeiro, passam 5 anos sobre a sua morte e volto a ouvi-lo. Oiço obsessivamente “Stimela”: a sua força, a telúrica força desta música, da sua música, que releva da fusão de vários ritmos, sobretudo da música dominante das townships da África do Sul, como mbhaqanga, marabi, jit e kwela, numa alquimia com o jazz, voltam à minha memória e vibram.
Ontem, por alguma razão que não sei explicar, pus-me a ouvir Brenda Fassie e a ver as imagens de Nelson Mandela e do seu milagre da nação arco-íris. Começara, por algum sortilégio, por rever as imagens lancinantes dos funerais de Samora, que são o ocaso de uma época e que se inscrevem nesta mitologia da libertação dos sul-africanos. Hoje retorno a Harare, a Hugh Masekela, a Miriam Makeba, a Joseph Shabalala e os seus companheiros, a Ray Phiri, a Paul Simon. Oiço, de novo, “Stimela”.
No alinhamento daquele memorável espectáculo: “Township Jive”, “The Boy in the Bubble”, “Gumboots”, “Whispering Bells”, “Bring Him Back Home”, “Crazy Love”, “I Know What I Know”, “Jinkel e Maweni”, “Soweto Blues”, “Under African Skies”, “Unomathemba”, “Hello My Baby”, “Homeless”, “Graceland”, “You Can Call Me Al”, “Stimela”, “Diamonds On The Soles of Her shoes”, “N´Kosi Sikeleli Africa” e “King of Kings”. Ali não se celebrava apenas o futuro inequívoco da África do Sul. Ali celebrava-se um tempo, que nos era comum e solidário, um tempo de uma história comum, de uma luta colectiva, de ideários partilhados, de sacrifícios que tínhamos consentido e compartilhado, de um destino igualmente comum e inexpugnável.
Hoje tudo isso está perdido. Quando me volto para estes tempos e oiço estes músicos libertários, quando me empolgo com estes hinos emancipatórios, quando exulto com estas vozes e estes ritmos vibrantes, falo de uma época, falo de um contexto, falo de uma História. Hoje estamos nos antípodas dessa História, desse contexto e dessa época. Hoje é difícil explicar o punho cerrado de Hugh Masekela, o seu poder simbólico e encantatório, a sua força mobilizadora e empolgante. Hoje é difícil explicar que descíamos às praças para que Nelson Mandela fosse livre e que a África do Sul não fosse o lugar da segregação racial. Hoje é difícil explicar que a luta dos sul-africanos era a nossa luta e que hipotecamos muito do nosso futuro quando nos engajamos – eis um termo do vocabulário da época – nessa luta.
Oiço “Sitmela”, oiço sobretudo o disco “Hope” (1994), com o seu vigor metafórico indesmentível, oiço Hugh Masekela, a sua voz robusta e a pujança do seu trompete e não temo em assumir-me como um nostálgico de um tempo em que havia grandeza nos propósitos, havia ideários, havia lideranças e um futuro por cumprir. Havia lutas por fazer. É isso, não tenho pejo em dizê-lo, que o punho cerrado e a voz potente de Hugh Masekela, enquanto canta “Bring Him Back Home” (Nelson Mandela), ainda hoje acordam em mim.
A LUTA CONTINUA!
KaMpfumo, 23 de Janeiro de 2023
“O actual estágio de violação sexual, reportado quase diariamente, mostra que as medidas de prevenção não são eficazes, quiçá, as medidas punitivas demasiado brandas para o tipo de crime. Pior do que isso, são reportados casos cujo seguimento se desconhece, não há a publicitação desses casos pelo Judiciário de modo a desencorajar essa prática. Hoje, 23 de Janeiro de 2023, no programa “Balanço Geral” da Televisão Miramar, reportaram a violação de uma mãe pelo filho, alegadamente, porque a namorada não compareceu! Será que o poder Legislativo tem acompanhado este tipo de reportagens? Não se pode fazer algo mais para dissuadir estes crimes? Mas, afinal, que animais somos nós”.
AB
“Cópula não Consentida (art.17): Aquele que mantiver cópula não consentida com a cônjuge, namorada, mulher com quem tem uma relação amorosa duradoura, laços de parentesco ou consanguinidade ou mulher com quem habite num mesmo espaço, é punido com pena de 6 meses a 2 anos de prisão e multa correspondente. Atenção às Consequências da Violência Sexual! As consequências da violência sexual são muitas, com efeitos físicos e (ou) psicológicos muitas vezes irreparáveis. A discriminação, perda da autoestima, medo, depressão, infecção pelo VIH, Infecções de Transmissão Sexual ou a morte são algumas delas. Estas consequências têm um impacto na condição social e económica das vítimas”.
In VIOLÊNCIA Sexual: Basta ao Silêncio de UNFPA
Os casos de Violência Sexual em Moçambique tendem a subir de forma exponencial e a violência sexual é caracterizada por muitas formas, desde a violação seguida de assassinato. Esta violação tem sido muito frequente e, muitas vezes, reporta-se que a vítima foi violada por mais de uma pessoa. A violação de menores: hoje é possível reportar-se a violação de menores de 10 anos de idade, o que constitui uma grave aberração, fugindo àquilo que deve ser a conduta da sociedade normal.
Há que registar a violência praticada pelos padrastos, em alguns casos consentida pela mãe para não perder o marido e, muitas vezes, a menor sofre ameaças do padrasto caso denuncie a mãe ou outra pessoa familiar. Grosso modo, os violadores são obrigados a pagar valores monetários e deixando a solto, o que pode significar garantias de continuidade de violação sexual, o que é bastante triste.
Um exemplo dessa violação foi recentemente reportado na província de Inhambane, onde um homem amantizava com a irmã da esposa. Os familiares descobriram porque a relação já se tinha transformado em algo normal. O cunhado construiu uma casa para a cunhada onde se encontravam, aliás, a cunhada habitava nessa casa, quando a família descobre, o homem foi obrigado a pagar um valor de 10.000,00 (dez mil meticais) e com a obrigatoriedade de declarar o fim do relacionamento. Sucede que o relacionamento não terminou e, no conceito do homem, passou a ter “direitos” sobre a Mulher, que é sua cunhada!
Quando é que o caso é despoletado?! A mulher, não sei se cansada de uma relação não consistente, decidiu ter um homem, eventualmente para ela sozinha. Quando o cunhado/amante descobre, decide fazer da vida do casal um autêntico “inferno” controlando e exigindo contas à mulher, o que irritou o novo homem que partiu para a violência e o caso reportado à polícia. Quando os repórteres da TV Miramar foram entrevistá-lo, apesar dos duros golpes sofridos, o homem estava firme na manutenção das relações com a cunhada, caso contrário, disse ele: “que me devolvam o meu dinheiro, a casa e a roupa que comprei para ela”. Não é interessante isso!
Por acaso, o homem, depois das relações sexuais continuadas com a cunhada/amante, no caso de cumprir com as exigências deste, ele o que teria de devolver? Sim, porque a exigir a devolução de bens materiais resultantes de oferta por satisfação deste no “amor roubado” ele também teria de devolver o “prazer” que gozou com a mulher. Seria isto possível?! É evidente que não, mas isto mostra que, efectivamente, a mulher entra neste tipo de relação em pé de desigualdade e a constatação do estudo cujos trechos publiquei acima diz e passo a citar:
“Numa sociedade marcada por fortes desigualdades de género, como a nossa, as mulheres são as principais afectadas por este tipo de violência. Contudo, este não é um problema limitado às mulheres. As estratégias de desenvolvimento e combate à pobreza neste país não resultarão se este tipo de violação continuar invisível e impune.” Fim da citação.
Devo confessar aqui e agora que a inspiração para esta reflexão veio-me da reportagem passada no programa “Balanço Geral” da Televisão Miramar de 23 de Janeiro de 2023, onde um jovem violou sexualmente a sua própria mãe, depois que a namorada não compareceu ao encontro, pelo menos é isso que dizia a reportagem. Ora, a que ponto chegamos?! Já não somos racionais? Somos animais! Mas que animais, meu Deus, isto é de arrepiar o cabelo. Se violar e depois assassinar a vítima é doloroso, imagine a violação da própria mãe? O que vem a ser isto, caro compatriota! Realmente há que dizer basta à violação sexual, chega!
Antes da realização do XII Congresso do Partido Frelimo, já se aventava a hipótese de reeleição de Filipe Nyusi tanto para o cargo de presidente, tal como ainda se antevê a possibilidade de emenda constitucional para acomodação de um possível terceiro mandato de Filipe Nyusi. Entre políticos, analistas, académicos e jornalistas, esta tem sido a realidade corrente após a reeleição de Nyusi para terceiro mandato no Partido Frelimo, aliás, somente o facto de ter concorrido como candidato único para a presidência do Partido, tal poderia acontecer para a presidência da República de Moçambique. Enquanto a presidência do Partido Frelimo é facto consumado, a emenda constitucional é ainda uma hipótese, ao menos fora dos meandros da presidência emérita. Contudo, uma possibilidade tem sido colocada de fora: e se Armando Guebuza decidisse concorrer como candidato independente?
Ora, a especulação faz parte da liberdade de pensamento, eis a razão da liberdade de opinar diferente neste artigo. E se Guebuza concorresse como independente? Creio que a reacção de muitos leitores fosse de imediatamente descartar tal hipótese por razões que parecem óbvias: em primeiro lugar, a disciplina partidária; em segundo lugar, os vestígios da corrupção; terceiro, a aliado à corrupção, o processo de dívidas ocultas e, quarto os considerados pendentes que poderiam resultar em “vingança” contra Filipe Nyusi. Contudo, nenhuma das quatro possibilidades podemos considerar como sendo dado adquirido. Para um partido dominante saído recentemente do seu XII congresso, o que significaria? Eis que busco a suposição de candidatura independente de Armando Guebuza, Presidente Honorário do Partido Frelimo e ex-Presidente da República. E se Guebuza concorresse como independente? Qual seria o impacto?
Em primeiro lugar, assume- se que o nível de disciplina partidária no Partido Frelimo seja de alto nível que descartaria a possibilidade de candidatura de Guebuza concorrer fora da permissão do Partido. Um argumento adicional é que pelo seu mais alto nível na estrutura do Partido, seria de descartar uma espécie de revelia. Ora, os actos que um dirigente, quer eleito quer no partido não são em si condenáveis pelo cidadão, nem a legislação nacional impede tal opção. Trata-se de mera norma inter-partidária que pode ser considerada de traicção, ao optar por decisão extra-partidária. Serão os estatutos do Partido Frelimo acima dos preceitos da Constituição da República? Certamente que não!
E se Guebuza decidisse concorrer como independente, quem teria legitimidade para seu impedimento? Pela crença na sua experiência e seu legado, embora com questionamentos político-legais, poderia concorrer de forma independente. Que órgão teria a competência de impedi-lo? Quem foi que nos garantiu que a violação da disciplina partidária seria condenável por todos os membros ou sua maioria? Será que a indisciplina partidária limitar-se-ia a Guebuza? Ou seria um quebra-mito de unicidade? Sendo de considerar o princípio de não-deserção única, não seria possível um transfúgio partidário colegial ou informalmente constituída e exercida nas urnas. Samora Machel Jr, com todas as limitantes colocadas na avaliação da sua candidatura, demonstra que indisciplina ou deserção política não é impossível.
Em segundo lugar, e como mencionei acima, vestígios da corrupção são considerados uma limitante que poderia restringir eleição de Guebuza para a Presidência da República. No entanto, a história da democracia ensina-nos que tal assumpção é enganosa. Tanto partidos, como dirigentes indiciados de escândalos de corrupção já foram eleitos e reeleitos em diversas partes do mundo, dentre as consideradas democracias consolidadas, como nas novas democracias. Ademais, por vezes, durante os mandatos pós-eleitorais seus países se tornam mais democráticos, ao menos por via da avaliação dos índices convencionais como os da Freedom House, da EIU e da VDem. Em Israel, Benjamin Netanyahu reconquistou o poder após escândalos de corrupção. ANC continua no poder na África do Sul, mesmo com os escândalos de corrupção da sua liderança. O mesmo já ocorreu na França, nos Estados Unidos, Reino Unido, para além do recente caso de Lula da Silva. Aliás, Filipe Nyusi foi eleito Presidente da República já com alegações da “equipa” das dívidas ocultas. Tanto indiciados como corruptos provados como devassos, podem granjear maior interesse que aqueles tidos como candidatos ou líderes limpos do poder.
Ainda no segundo ponto, quem foi que nos garantiu que outros candidatos do Partido Frelimo apareceriam sem mácula de corrupção, incluindo o o actual Presidente Nyusi. A corrupção não é fenómeno isoladamente de um líder, mas seus colaboradores e apoiantes podem ter sido cúmplices, logo, descartando a hipótese do primeiro ponto de deserção. Corruptos também deixam legado autêntico ou de mera percepção que os eleitores consideram irrelevantes para impedir a ascensão ao poder: os “sete milhões” podem ser considerados um desastre político e punível por eleitores ou entidades, mas os beneficiários “legítimos” dos 7 milhões podem apoiá-lo por expectativa de melhor negócio ou expectativa do privilégio de voltar a aceder ao mesmo fundo.
Consideremos que Guebuza fosse político corrupto, seria tal integralmente dado adquirido para todos? Qual é a percentagem da população Moçambicana com tal percepção? Quem se esquece da ponte Maputo-KaTembe, embora problemática na sua actual gestão, a infraestrutura é Guebuziana. Aliás, Nyusi o afirmou no acto da inauguração da ponte que a ponte não tinha sido iniciativa dele, mas sim do seu antecessor. Talvez fosse discurso para mera culpabilização de Guebuza pela transitabilidade dispendiosa do uso da ponte pela classe média com viaturas. Mas Guebuza não é quem gere a ponte, quem decide sobre a taxa da portagem não é do governo de Guebuza. As taxas são decididas pela governação nacional de Nyusi e Municipal de Eneas Comiche. Que coloca KaTembe como enclave não é Guebuza.
Os eleitores já votaram e ainda escolhem corruptos ou indivíduos de conduta duvidosa. A estrada circular na “Região do Grande Maputo” não lembra Nyusi, mas sim, Guebuza emérito Presidente do Partido Frelimo. As peripécias do fundo de desenvolvimento distrital, visitas presidenciais recebidas em massa na era Guebuziana, estarão apagadas da mente dos eleitores. Os eleitores não são parvos, conhecem a razão da escolha, sabem o que escolhem, sabem ainda decidir pela abstenção. Uns se vingam por elevado custo de vida, outros por premiação pela governação anterior, mas também há eleitores que decidem por pura esperança. Não de trata de mitos. A ideia de unidade nacional não é nova, os moçambicanos se unem pelo Português, mas também por obras: e a Ponte Armando Guebuza, Sofala-Zambézia? E a ponte Kassuende em Tete? E a ponte Guijá-Chókwe? Os problemas de má conduta no INSS não são de Guebuza, mas as instalações são marcas de Guebuza. Será que os trabalhadores urbanos se esqueceram das instalações do INSS e da Autoridade Tributária? Poderíamos nos enganar ao descartarmos a hipótese de vitória de Guebuza. “Compatriotas, Cahora-Bassa é Nossa!”
Nos corredores do debate, já se aventa a hipótese de terceiro mandato do Engenheiro Filipe Nyusi. De facto, a Frelimo detém maioria qualificada para alterar a Constituição da República e permitir terceiro mandato. Como possível imprevisto, o que terá justificado a candidatura em aparente uníssono de Nyusi para a presidência do Partido no mais recente congresso? Como apresento mais adiante, as dívidas ocultas tiveram “chefe do comando operativo, um grupo delegado para negociar, esse chefe é Filipe Nyusi. Não serão marcas de poder de um político considerado de conduta duvidosa, incluindo membros da sua família. Hillary Clinton granjeou poder, mesmo após escândalos do seu esposo e ex-presidente Bill Clinton no caso Monica Lewinsky, sua secretária na Casa Branca. No funeral de Margareth Tachter, ex-Primeira Ministra da Grã-Bretanha, vimos cartazes de pessoas que diziam: “finalmente a feiticeira morreu!”
Finalmente, contam notas do processo de julgamento das dívidas ocultas que Filipe Nyusi foi citado como tendo sido das figuras importantes da criação da Empresa Moçambicana de Atum (EMATUM), uma das empresas envolvidas, juntamente com a Mozambique Asset Management (MAM) e Proindicus, as decisões não foram tomadas isoladamente por Guebuza. No decurso do julgamento do caso das dívidas ocultas, Guebuza afirmou em sede to tribunal que Filipe Nyusi tinha sido o “chefe do comando operativo, um grupo delegado para negociar”. Não precisava ser ele a saber e que talvez o chefe do comandando operativo pudesse esclarecer melhor os detalhes do projecto económico-financeiro que resultou nas dívidas.” Ora, estas afirmações geraram um clima que supostamente fossem forma de Guebuza se livrar e responsabilizar Nyusi, ao que Adriano Nuvunga, director do CDD chamou de “relação ruim” entre Guebuza e Nyusi. Seja como for, fica claro que ambos estiveram a par do negócio que resultou nas dívidas, mas aventando-se uma vitória eleitoral de Guebuza, será que haveria “vingança” de Guebuza contra Filipe Nyusi? Não é dado adquirido, não conhecemos todos os processos autónomos do mesmo.
Como se indica, tanto Presidente Guebuza como o então Ministro da Defesa, concordavam na necessidade de criação da EMATUM e MAM, justificando-a por conta de ameaças à segurança da República de Moçambique, quem então seria o responsável para o esclarecimento dos contornos da dívida? Seja como for, se Guebuza ganhasse as eleições como independente, estaria seguro pelas imunidades emanadas para o Presidente da República e Filipe Nyusi gozaria do actual estatuto para não ser imediatamente responsabilizado: por que razão os eleitores deixariam de votar em Guebuza em detrimento de Nyusi ou vice-versa? Se Guebuza concorresse como independente, se pode presumir um equilíbrio entre ambos e vitória de um ou outro, será que Guebuza não poderia evocar seus feitos presidências como bandeira de campanha? Será que Nyusi superaria Guebuza com possível discurso anti-Guebuza? Mantendo constante a possibilidade de fraco apoio para Ossufo Momade, líder da Renamo, qual seria então o posicionamento dos eleitores membros da Frelimo? E os não-Frelimistas?
No processo de julgamento das dívidas ocultas, Armando Guebuza abdicou do privilégio de audição em fórum privado e foi à da chamada “tenda BO” prestar declarações em público. Em sede do tribunal, Guebuza, com ou sem verdades, pronunciou-se, inclusive mencionando o nome do ex-Ministro da Defesa, Filipe Nyusi, na qualidade de chefe do comando conjunto – o considerado fórum do qual podem ter sido tomadas decisões mesmo na ausência de Guebuza. Filipe Nyusi não se pronunciou sobre o processo de endividamento oculto aprovado pela maioria partidária da Frelimo na Assembleia da República. Desta forma, entre os dois, quem pode ser considerado defensor do interesse nacional e com mérito político? Quem dos dois, aventando-se a hipótese de candidatura independente de Guebuza, teria maior apoio dos eleitores? Aliás, Nyusi, com seus feitos, foi eleito sabendo-se sobejamente que tinha estado no comando conjunto, provável corrupto ou cúmplice. E se Guebuza se concorresse como independente?
Cabral está para a Guiné como Sandino está para a Nicarágua: ambos são hoje os maiores fantasmas nos seus países. Quando visitei a Nicarágua, essa terra “delgada como um látego”, como cantou Neruda num soberbo poema, as paredes e os muros vociferavam:
Sandino Vive! Quando me desloquei à Guiné, em Maio de 1999, as paredes de Bissau também gritavam: Cabral Ka Morri – Cabral não morre, em crioulo. Nas silhuetas também se descobre alguma semelhança. Sandino é baixo e o seu chapéu de abas largas é a sua imagem de marca. Cabral é de meia estatura, e na cabeça tem enterrada uma boina de lã tricotada, a sua marca de água. Ambos simbolizam a luta contra o opressor. O primeiro, contra o gigante do norte, os Estados Unidos que, na primeira metade do século XX, tratava a América Central como o seu quintal, “charruando” os governos que não lhe obedeciam cegamente. O segundo, foi o mentor, organizador e iniciador da luta contra o colonialismo português, o mais antigo em África. Ambos estão vibrantemente mortos, permanecendo vivos no coração dos seus povos. Sandino desde 1934, quando um complot entre os EUA e a Guardia Nacional, comandada por Anastácio Somoza Garcia, o atraiu para uma emboscada fatal. Cabral foi morto pelos seus correligionários, sem que até hoje se conheçam os mandantes, na capital da vizinha homónima, Conacri, no dia 20 de Janeiro de 1973, fez na passada sexta-feira, precisamente 50 anos.
Amílcar é um produto do seu sonho. Nascido em Bafatá - a segunda cidade da Guiné - em 1924, é filho de pais cabo-verdianos, que a administração colonial desloca amiúde para o continente, elitizando-os à chegada ao novo território. Nas suas veias corre sangue insular. No seu coração bate uma terra continental que adopta como sua. Muito mais tarde, na sua mente, adensa-se um sonho: reunir as duas, Cabo Verde e Guiné, sob uma única bandeira. Esta é a verdadeira Pátria de Cabral!
Cabral tem o típico percurso do assimilado exemplar. Aos 8 anos muda-se com a família para Cabo Verde. No liceu, em São Vicente, é um aluno de quadro de honra. Integra movimentos associativos de carácter cultural ao mesmo tempo que escreve os primeiros poemas. Pelo bom desempenho académico, consegue uma bolsa de estudo e é num navio da Companhia Nacional de Navegação que desembarca na capital do império, Lisboa, no ano em que termina a II Guerra Mundial.
Amílcar integra-se bem no “novo mundo”. Ingressa no Instituto Superior de Agronomia de Lisboa, onde cursa Engenharia Florestal, e à noite dá aulas de alfabetização a operários do bairro lisboeta de Alcântara, uma zona industrial desfavorecida. Publica, na conceituada revista ‘Seara Nova’, o poema “A minha poesia sou eu”, começando a conquistar respeito e admiração dos intelectuais opositores do regime de Salazar e dos neorrealistas.
Em 1959, é eleito Secretário-Geral da Casa de Estudantes do Império (CEI), uma instituição que acaba por ser um tiro no pé para o regime, sendo um viveiro dos ideais nacionalistas dos futuros movimentos de libertação que então desabrochavam. Aí conhece figuras como Mário Pinto de Andrade, Agostinho Neto, Lúcio Lara (Angola), Alda Espírito Santo (São Tomé), Marcelino dos Santos (Moçambique), Aquino de Bragança (Goa). Marcelino foi o nacionalista moçambicano que mais conviveu com o histórico líder guineense.
À Guiné regressa já diplomado ao serviço do Ministério do Ultramar para efectuar importantes estudos agrícolas. É nesta altura que percorre toda o território e contacta de perto com a dura realidade que as populações enfrentam. Toma consciência da necessidade de libertar o país.
Os acontecimentos no cais de Pidjiguiti, em Bissau, no dia 3 de Agosto de 1959, quando as forças coloniais reprimem barbaramente uma greve de estivadores deixando no chão cerca de 50 cadáveres, constitui o botão detonador para o início da Luta Armada, que irá começar em 1963, sete anos depois da fundação do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), dirigido por Amílcar.
Ao contrário de outros companheiros de luta como Nino Vieira ou Osvaldo Vieira, Amílcar não tem uma natureza militarista. É um intelectual, um teórico, um humanista, um ávido leitor dos grandes da Negritude: Césaire, Senghor, Fanon. Sabe que o seu trabalho é sobretudo diplomático, e aí ele é a principal rosto do anticolonialismo português. O texto “Guiné e Cabo Verde frente ao Colonialismo português”, redigido em julho de 1962, logo após a independência da Argélia, não deixa dúvidas sobre as intenções do PAIGC.
A partir de 1962, Cabral tem no seu vizinho Ahmed Sékou Touré, o seu maior aliado e a Guiné-Conacri está para o PAIGC como a Tanzânia está para a Frelimo: é quartel-general. É lá que a guerrilha assenta toda a sua rectaguarda, sobretudo a logística.
Cabral é um andarilho diplomático e as suas diversas dimensões como político, teórico, ensaísta e humanista, a partir de meados da década de 60, excedem largamente os pequenos territórios de Cabo Verde e da Guiné. Torna-se o principal rosto do luta anticolonial que entretanto evolui nos territórios da Guiné, Angola e Moçambique, e a nível do continente ombreia com nomes como Mandela, N’krumah, Lumumba, Senghor, Oruka. Intervém em grandes fóruns internacionais, dá entrevistas sobretudo na midia francesa, língua que domina na perfeição. Tem o cuidado de colocar sempre a sílaba tónica da sua luta não no povo português, mas no regime colonial fascista de Salazar. Os seus textos e discursos são editados em francês e inglês, correndo as principais capitais europeias e a Comissão dos Direitos Humanos da ONU, em Nova Ioque.
O ponto alto da diplomacia atinge-o no dia 1 de Julho de 1970, quando o papa Paulo VI, numa audiência no Vaticano, recebe Cabral, Agostinho Neto e Marcelino dos Santos. É um golpe duríssimo para o poder colonial português, agora liderado por Marcelo Caetano. As relações entre os dois Estados, Vaticano e Portugal, entram numa fase de azedume que só a revolução de 25 de Abril de 1974, normalizará. Do encontro retira-se uma conclusão: o chefe da Igreja Católica no Mundo abençoa a independência das colónias portuguesas.
O protagonismo de Cabral acaba por traí-lo na noite do dia 20 de Janeiro de 1973. Era um sábado e o PAIGC havia tido uma reunião com uma delegação da FRELIMO, chefiada por Samora Machel. Após a encontro, Cabral foi a uma recepção na embaixada da Polónia. No regresso a casa, depois estacionar o carro, é morto a tiro por um grupo de correligionários. O dedo que prime o gatilho é do camarada de armas Inocêncio Kani. Os verdadeiros mandantes nunca serão descobertos. Aventou-se muitas hipóteses: a ala guineense do PAIGC desconfiada das intenções dos cabo-verdianos; os serviços secretos soviéticos; a PIDE; e até Sékou Touré que começava a ter ciúmes do protagonismo de líder guineense.
Cabral cumpriu a sua promessa: “Jurei a mim mesmo que tenho de dar a minha vida, toda a minha energia, toda a minha coragem, toda a minha capacidade que posso ter como homem, até ao dia em que morrer, ao serviço do meu povo, na Guiné e Cabo Verde.”
A Pátria de Cabral, já libertada do jugo colonial, morreria na manhã de 14 de Novembro de 1980, quando Nino Vieira liderou um golpe de Estado – chamou-lhe “Movimento Reajustador” - que apeou Luís Cabral – meio-irmão de Amílcar – do poder, encetando uma purga aos dirigentes cabo-verdianos do PAIGC. A separação entre irmãos estava consumada. Em Cabo Verde nascia o PAICV (Partido Africano para a Independência de Cabo Verde) para dirigir a sociedade, como era comum naquele tempo aos partidos únicos.
Enquanto isso, a Guiné enveredou por uma vida de faroeste, sem rei nem roque, feita de golpes e contragolpes, assassinatos políticos, dominada por traficantes de droga, gente sem o mínimo de escrúpulos que põe e dispõe do país e da sua gente a seu bel-prazer, distanciando-se cada vez mais do sonho de Cabral.
*Cabral não morre, em crioulo da Guiné-Bissau.