Após a apresentação de um importantíssimo evento, um par de senhores de muita classe, ambos cobertos de fatos pesados e de marca clássica, interpelaram o jovem Mestre de Cerimónias:
— Jovem, tudo bem? Quanto talento, ein!? O teu futuro é muito promissor, sabias? — Questionou um dos senhores, cuja aparência, autoridade e presença denotavam ser o líder da dupla.
Manuelinho, comovido pelo reconhecimento, respondeu, sem travões:
— Ora viva, meus ilustres senhores! Não é possível que eu esteja mal e demonstrar tanta energia. Aliás, estou muito bem e firme. Obrigado! Eu sou Manuelinho, natural de Quelimane.
— O teu carisma, a tua postura, firmeza e eloquência fazem de ti um candidato perfeito a grande líder. Podes ser o próximo Presidente do Município de Quelimane — Retorquiu aquele nobre senhor, enquanto o seu parceiro soltava olhares, como um sniper bem treinado, para todos os cantos daquele local. Tudo indicava que eles estavam ali com uma agenda bem estabelecida!
Manuelinho, espantado por aquela abordagem, reagiu, inocentemente, quase atrapalhado:
— Eu faço isso por amor. É algo que me apraz. Na verdade, é uma das coisas que gosto de fazer, além de cantar, compor e produzir músicas clássicas. Já produzi muitos cantores da praça!
Após trocar palavras, em silêncio, com o seu parceiro, o senhor reagiu planificadamente:
— Olha, jovem, aproxima. Temos uma proposta que vai mudar a tua vida e de toda a tua família.
Aproxima-te! O teu talento não pode ser desperdiçado. Não podes desperdiçar a tua influência.
Manuelinho era o filho mais velho do casal José e Marta. Pesava sobre os seus ombros, o cuidado dos seus seis irmãos mais novos. Todos homens. O seu pai era um pacato vendedor de produtos alimentícios no mercado Aquima, em Quelimane. A sua mãe era doméstica. Por isso, desde pequeno, ele teve que se abdicar dos prazeres e encantos de adolescente e jovem. Aos vinte anos, carregava a responsabilidade de um pai de família, o que se reflectia na sua forma de viver e estar, principalmente, pelos conselhos que espalhava com quem conversava.
Quis o destino que ele fosse Produtor Musical. Aliás, ele também é um excelente cantor e compositor de várias melodias e miscelâneas musicais ouvidas por milhares de gente em todo o País e no mundo. Tudo começou por causa do seu gosto pela dança, na altura influenciada por angolanos, que o conduziu aos estúdios da cidade de Quelimane, nos primórdios do seculo vinte e um. Enquanto assistia as gravações de hits, aprendeu a produzir músicas.
O seu gosto pela música, a responsabilidade e os cuidados pela sua família, maioritariamente sem condições, fizeram dele um leitor voraz. Manuelinho lia de tudo. Livros sobre música, história, filosofia, antropologia, sociologia, línguas, Sagradas Escrituras e vários livros de sabedoria ancestral que espalham o conhecimento de bem viver e estar na sociedade. Por isso, ainda cedo, Manuelinho carregava palavras distintas de sabedoria de um admirado ancião.
Ora, o calendário gregoriano marcava, nas suas páginas já cansadas de contagem rotineira, meados do nono mês do calendário de Rómulo, o mês de Novembro. Passava apenas um mês após a eclosão dos ataques extremistas e violentos no Cabo do norte de Moçambique que se tornou palco de danças sangrentas, dormitório recheado de insónia para milhares de mulheres, jovens e crianças, incluindo homens, e asilo repentino de Tutsis e Hutus, num claro jogo de batota à distraída SADC. Aliás, naquele Cabo, como jogo de Xadrez, polícias lideravam soldados!
Tratava-se, além disso, de um momento difícil para a família Sumila. A neta, que em vida respondia pelo nome da esposa do avô Sumila, Marciana, acabara de render o seu espírito para a eternidade, aonde seguem os fiéis que depositam a sua fé no Criador dos céus e da terra.
O Jota, que na altura era jornalista-estagiário na capital do País, no único centro de formação de jovens jornalistas, que hoje brilham em diversas telas televisivas, jornais e organizações nacionais e internacionais, como sobrinho mais velho, havia recebido a trágica notícia da partida da única tia com quem conviveu os seus dias de meninice. Tinha, entretanto, viagem marcada à África do Sul, terra queimada pela ignorância de gente que não sabe o que realmente quer, para participar da Conferência Internacional de Jornalismo Investigativo, onde Cardoso é uma marca!
Como de costume, o Jota teve de solicitar uma isenção para cumprir com as cerimónias fúnebres.
Assim, ele teve que partir para a capital do centro do País, terra conhecida por gerar um povo ‘rebelde’, que não se conforma com as malandrices e planos de líderes sanguinários, cujos cidadãos fazem justiça com as próprias mãos. Além disso, nela não se contratam Presidentes!
Em conversa, nas cadeiras de passageiro da Entre Rios, Manuelinho disse ao seu sobrinho:
— Jota, sabias que, por pouco, eu seria contratado para Presidente do Município de Quelimane? — Como assim? Afinal, os candidatos a Presidente dos Municípios não são eleitos nas autarquias para as quais concorrem? — Questionou, estarrecido, o jovem sobrinho.
— Jota, Jota… Abra os teus olhos! Isso de concorrer às eleições é apenas o resultado de um contrato com gente que nunca aparece nos holofotes. É um emprego e não resultado de uma agenda política do candidato para a autarquia onde concorre. É um jogo político, meu filho.
O sobrinho, possuído de um espírito jornalístico, replicou, sem noção da profundeza dos factos:
— Tio, não é assim como as coisas acontecem. O candidato é eleito no seu partido e organiza seu programa eleitoral, que se transforma, quando eleito, na agenda da sua governação. Outros, entretanto, concorrem de forma independente, como fez Daviz Simango. Não é isso que está previsto no pacote legislativo para eleições autárquicas ou mesmo presidenciais?
— Jota, Jota. Deixa-me revelar-te algo. Como eu disse, queriam contratar-me para ser Presidente do Município de Quelimane.
— Como assim, tio?
— Eu estava a coordenar a organização de um evento importantíssimo. Era o Mestre de Cerimónias. Espalhei muita alegria, sobretudo, palavras ditas com sabedoria e confiança, como sempre tenho feito. No final, dois senhores aproximaram-se de mim e apresentaram a proposta.
— Sério? Que proposta, tio?
— Era um contrato para ser Presidente do Município de Quelimane. Simples quanto isso!
— Ahhh, tio, isso não é possível — Interpelou Jota, tentando buscar mais factos sobre o assunto.
— Eles disseram que me podiam lapidar e treinar, caso eu estivesse interessado. Afirmaram que poderiam mudar a minha vida e da nossa família. Construiriam uma casa para os vovós e alugariam, para mim, um apartamento na cidade para começar a acostumar-me com a vida de luxo que, caso eu aceitasse, seria a minha próxima companheira pelos cinco anos seguintes.
Enquanto o Manuelinho falava, um Chinês atravessou a nossa frente. Era o único passageiro curioso, que fotografava todas as passagens verdes que via ao longo da Estrada Nacional Número Um. Eu até desconfiei, porque já tinha perdido a conta das vezes que ele se havia levantado para registar, com imagens, a nossa floresta verdejante. Pensei nos variadíssimos, alguns não registados, abates de árvores e exportações ilegais de madeiras no País praticados pelos seus compatriotas. Enfim, dirigi o meu olhar ao meu tio, para continuar com a conversa:
— O que mais disseram, tio?
— Aqueles senhores tiraram um calhamaço de papéis com artigos bem organizados. Era o Estatuto do Partido Político que eu deveria representar e o esquema da minha candidatura. Tinham, também, o contrato de admissão como candidato a Presidente do Município. Possuíam um plano de mobilização de massas. Eu apenas seria a imagem que queriam, por ser natural de Quelimane e possuir qualidades que julgaram haver em mim. Era um esquema de tirar o chapéu. — E qual foi a tua reacção, tio? O que disseste?
Manuelinho fez uma pausa. Notei que se tratava de uma decisão difícil que ele deveria tomar, visto que o seu efeito seria de enormes proporcionalidades. Poderia até custar a sua vida.
— É verdade que precisamos de mudar de vida, mas não aceitei a proposta. Eu simplesmente recusei-me, Jota. Eu disse-lhes que não queria entrar naquele esquema. Não nasci para isso!
— E qual foi a resposta que teve deles, tio? — Questionou o jovem jornalista-estagiário.
— Eles disseram: “Infelizmente, acabaste de perder um jackpot, jovem.” E continuaram: “Mas se mudares de ideia, aqui está o nosso contacto. Podes ligar e vamos trabalhar juntos! Lembra-te que podes ser o próximo Presidente do Município de Quelimane.” E depois se foram! Enquanto se retiravam, olhavam para trás, para mim, e faziam dançar as suas cabeças da esquerda para direita e vice-versa. Era um sinal de que eu havia desperdiçado toda a minha vida e futuro!
Naquele instante de conversa, interpelada de vez em quando pelo Chinês que fotograva as zonas verdes, espalhadas pelo nosso vasto e belo território nacional, ao longo da deslembrada Ene Um, quase esquecíamos a triste notícia do falecimento da tia Marciana. Mas não era possível!
Por um instante, fui pensando no facto de os vários partidos políticos, que inundam os boletins de votos durante as épocas das eleições autárquicas e presidenciais, desaparecem logo após as eleições. Eu não sabia que muitas daquelas fotos são de candidatos contratados para concorrem tanto às autarquias, ao Parlamento e à Presidência. Grande parte deles não tem um plano a longo prazo, por isso, quando perdem, o contrato é exterminado e eles continuam no silêncio e a viverem as suas verdadeiras vidas anteriores ao contrato.
No entanto, alguns chegam até a desenhar planos de governação e projectos claros de liderança e transformação das suas autarquias, organização, bem como do País. Porém, as suas vontades voluntárias são substituídas por esquemas políticos que se voluntariam e definem quem deve ser candidato a Presidente de um Município ou País, ou mesmo líder de qualquer Organização!
Há duas ou três semanas, e neste espaço, fiz referência à colocação de novas placas de endereçamento, ora em curso, na capital do país. No texto insurgira-me (no seu sentido anterior ao da insurgência em Cabo Delgado) contra o excesso de postes (4) por cruzamento e por um erro no primeiro nome (Filipe) da Av. Filipe Samuel Magaia, escrito com “e” no lugar do primeiro “i”. Felizmente, por estes dias, reparei que as placas “Av. Felipe Samuel Magaia” foram removidas (palmas) e creio que para a devida correção. Oxalá, e não me surpreenderá, que as placas não retornem ostentando “Av. Paiva Manso”, o nome colonial da citada avenida.
Digo que não me surpreenderia porque à rua que prolonga a Av. Amílcar Cabral, no sentido “Mao Tse Tung – Kenneth Kaunda”, a nova placa, colocada na esquina com a “Mao Tse Tung”, ostenta o antigo nome colonial (General Teixeira Botelho) no lugar do actual que é Samuel Dabula. Ademais, e ainda em dois cruzamentos da “Mao Tse Tung”, outras duas falhas: uma na identificação da “Rua da Concórdia” trocada por “Rua da Concorida” e a outra na “Rua Esperança”, identificada por “Rua da Esperanca”. Nesta última, o teclado até que poderia ser a desculpa, mas tal não cola porque o “Ç” consta em outras placas a menos que a esperança tenha sido oficialmente dada por perdida.
No dito texto, e em relação aos postes, ainda observara de que era um exagero (de informação) a colocação de 4 postes/placas por cruzamento. Faria algum sentido em cruzamentos de avenidas largas, mas nas menos largas e até em pracetas diminutas, onde colocaram dois postes, é um desperdício de recursos e decerto um atentado à mobilidade e à própria estética da cidade. O exagero e o desperdício dobram a fasquia em cruzamentos onde já existam placas colocadas em edifícios, abrindo até espaço, face aos erros, que entre elas, as novas e as antigas placas, subsistam conflitos de identidade.
Uma outra observação prende-se com a localização incorrecta de placas que se encontram em avenidas que fazem a fronteira de bairros. Um exemplo: nas duas laterais do cruzamento entre a Av. Ho Chi Min com a Av. Guerra Popular, a que divide os Bairros Central e do Alto Maé, todas as placas ostentam “Bairro do Alto Maé”, mas no cruzamento com a “24 de Julho”, a diferenciação foi feita, ou seja: para cada bairro as placas correspondentes.
Do exposto, a seguinte conclusão: a pequena amostra sinaliza fortes indícios de que se esteja perante um problema estrutural e com um alto potencial de poder afectar negativamente a instalação de outros projectos. Assim, e muito assustado, temo que quando for a vez da instalação do “FUTRAN”, a nova (e aérea) aposta municipal para resolver o problema da mobilidade urbana em Maputo, este projecto seja abortado porque não se achara a Av. Pinheiro Chagas (o nome colonial da actual Av. Eduardo Mondlane).
PS: Esta manhã, depois de fechar o texto e de previamente partilhá-lo com um amigo, fiquei a saber dele de que existem na cidade alguns cruzamentos com 04 postes de endereçamento e nenhum de sinalização rodoviária. Para ele, e face a uma eventual obrigatoriedade de que os postes só fossem usados para o endereçamento, o melhor tivesse sido a sua colocação em bairros menos consolidados (em termos de infra-estruturas) e que as anteriores formas de endereçamento continuavam ainda válidas na parte consolidada da cidade. Eu também acho.
A Raínha Elizabeth, em visita a um hospital público de Liverpool, numa manhã de chuva, virou-se para o seu segurança principal e disse, indicando ao mesmo tempo com os olhos para um bebé deitado no bercário: este menino é muito lindo! Olhou para a mãe, que sorria, orgulhosa pelo elogio e perguntou, como é que ele se chama?
Lá fora, relampeja com intensidade, troveja como se o fim do mundo estivesse à ilharga, e a chuva cai em catadupa, contrariando o dia que amanhecera solarento. Chove que chove, para gáudio da Raínha que não sai do berçário do menino negro deitado tranquilamente sob vigilância constante da mãe. A soberana venera a chuva, sobretudo quando cai em consonância com os trovões e os relâmpagos. Para ela, isso é sinal de que algo importante vai acontecer, agora ou nos próximos tempos.
A mãe do menino, uma mulher espampanante, transbordante de beleza em toda a sua estrutura, disse a rainha que o seu filho ainda não tem nome. E a raínha perguntou, posso escolher um nome para ele?
A sequência dos trovões não pára, os relâmpagos iluminam mais que a luz do dia, e a chuva está determinada, nem que tenha chegado para inundar toda a cidade dos Beatles. Ela - a chuva - cai em recebimento do bebé que continua sereno no pequeno leito, e ninguém sabe que esta criança que chega num dia de grandes enxurradas, é um sinal inequívoco dos tempos. Ninguém sabe, mas a raínha pressentiu, por isso voltou a abordar a parturiente: como é que se diz chuva na língua dos teus avôs?
- Diz-se mbvura
A raínha Elizabeth sorriu e disse, o teu filho chama-se Mbvura, vai ser, quando crescer, primeiro-ministro da Inglaterra! Ele será intenso como a chuva que cai lá fora!
Os jornais abriram as primeiras páginas com parangonas sobre o menino negro que será primeiro-ministro da Inglaterra. As televisões e as Rádios inundaram espaços inteiros com a premonição da raínha. Há um choque profundo nos ingleses que nunca acreditaram na possibilidade de o globo terrestre parar repentinamente e um negro elegido cair para cima, sem perder a humildade.
Quem é esse bebé?! A pergunta é feita em cascata. É preciso matá-lo antes que vitupere a nossa raça! A raínha Elizabeth está louca por velhice! Outros diziam que a raínha está mais lúcida do que nunca. Ela fala a verdade! Esse menino vai ser o nosso primeiro-ministro! Vamos lhe dar o nosso apoio! Viva, Mbvuraaaaaaa! Vivaaaaaa!
Mbvura é um estudante da elite, na Universidade de Oxford, onde se tornou no centro das atenções dos colegas e dos professores. Discute com argumentos sólidos, sem o recurso aos estereótipos. O seu discurso não é de reivindicação, é de catapulta. Tudo o que ele diz nas conversas com os amigos e colegas, ou em lugares de circunstância, torna-se uma palestra pela forma brilhante e esclarecida como coloca os dados. Mbvura já atingiu o palanque, onde nunca quis estar, mas eis que é elevado. Fala da vida no sentido de que a vida é uma seara para todos, e que todos podem ser felizes, cada um com a sua foice para o mesmo campo. Para a mesma fartura.
Toda a Inglaterra - desde que Mbvura se transformou no centro da convergência - tornou-se a própria aurora, e já ninguém tem dúvidas de que ele é o primeiro-ministro de que se espera!
*Texto imaginário
Não sei se voltarei! Mas tenho que seguir em frente. A pátria precisa de mim e, também, de ti. Da minha força e inteligência, do teu amor e esperança. Até onde sei, ninguém estava preparado para entrar naquelas matas sangrentas a fim de defender a bandeira – principalmente nesta altura em que os ventos da bonança pareciam estar a bater a nossa janela do quarto.
Nasci em Namarrói, na Província da Zambézia. O meu nome é Alfredo Hotakala, porém, nas fileiras sou conhecido por General Hotakala, apesar da minha patente ser a de Capitão. Tanto faz! Para mim, o mais importante é o trabalho que fazemos e não as insígnias que carregamos nos nossos ombros.
Eu tenho 30 anos de idade, e sou formado pelo famoso Exército Vermelho, na República Federal da Rússia, cidade de Volgogrado, nas especialidades de Inteligência Militar, Fuzileiro Naval e Aeroespaciais, onde fui condecorado com a medalha Júkov, pelas habilidades demonstradas durante a formação, bem como as missões em que participei com distinção.
Tristemente, hoje voltei à casa e encontrei parte dela em chamas. Vi amigos com os quais ingressei no mesmo ano nas fileiras mortos desumanamente, e outros cujos corpos nunca mais foram achados.
Além disso, vi filhos bravos que esperavam ter a patente mais alta do Exército. Queriam servir à pátria em mais missões, ver os seus filhos a crescer e formar-se. Trabalhar e fazer amor com as suas doces e belas esposas! No entanto, quis o destino que Cabo Delgado se tornasse num cemitério –um autêntico inferno na terra.
Jasmin, meu amor, espero que esta carta te encontre preparada e segura. Que o brilho e a cor dos teus olhos não escureçam com a quantidade de lágrimas e tristeza que a mesma irá criar em ti. Não chore por mim! Nós vamos vencer este inimigo.
Amor, escrevo-te esta singela carta, não como despedida, mas como símbolo da minha eterna heroicidade e amor à terra que nos viu nascer. Caso eu tombe em combate e vocês não recebam os meus restos mortais, coloque uma coroa e velas naquela minha foto de coroação na Crimeia, que está no centro da nossa sala de estar. E a cada data do meu aniversário, meu amor, acenda uma vela e leia esta carta para os meus filhos – e faça-lhes perceber que os homens sábios sempre foram corajosos e abnegados! Que eles entendam que o meu amor por Moçambique foi jurado com sangue e entrega total, sem reservas.
Eu bem sei que um dia estaremos em paz e perceberão o valor do nosso sangue derramado. Aprenderão a história dos grandes homens que tombaram em defesa da nossa soberania e da unicidade dos nossos umbigos que tão cedo caíram e desapareceram nas areias e águas do rio Maputo ao Rovuma.
Amor, esta é a carta que eu não queria escrever-te, mas tive de o fazer!
Em homenagem aos grandes homens que tombaram em defesa da pátria…
INTRODUÇÃO
O judiciário em Moçambique, pelo menos ao nível dos diferentes tribunais e do Ministério Público, mostra-se sobrecarregada de processos, desde os mais simples aos mais complexos, incluindo os mediáticos, o chamados “processos quentes” pela natureza e dimensão do objecto dos mesmos, as vezes ligados à corrupção, desvio de fundos públicos ou má gestão da coisa pública, violação sexual, furto, roubo, violação de direitos humanos de diversa natureza, responsabilidade civil do Estado, matérias sensíveis de família, processos laborais, etc.
Ora, não obstante o reconhecimento público de que os magistrados judiciais e do Ministério Público estão assoberbados de trabalho, para além da problemática da escassez dos mesmos a nível nacional, tendo em conta a elevada demanda processual, ou seja, a cada vez mais intensa procura pela justiça pelos cidadãos; dúvidas não restam de que a tramitação dos processos nos tribunais e no Ministério público é excessiva e abusadamente morosa, com alguma cobertura legal e de certa maneira institucionalizada, entanto que uma prática reiterada sem nenhuma consequência do ponto de vista de responsabilização de quem pratica a morosidade processual.
Em bom rigor a lei define prazo para a prática de actos dos juízes, bem como prazo geral para as promoções ou pareceres do Ministério Público nos termos seguintes: “Na falta de disposição especial, os despachos que não sejam de mero expediente serão proferidos dentro do prazo de cinco dias. Os despachos de mero expediente serão proferidos no próprio dia, salvo o caso de manifesta impossibilidade.” (Cfr. n.º 2 do artigo 159 do Código do Processo Civil). “As promoções do Ministério Público são dadas dentro do prazo de três dias, salvo se outro for fixado por lei ou pelo juiz.” (Cfr. artigo 160 do Código do Processo Civil). Por sua vez, o artigo 658.º do Código em referência estabelece que: “Concluída a discussão do aspecto jurídico da causa, vai o processo concluso ao juiz, que proferirá sentença dentro de quinze dias.”
O PALCO DA MOROSIDADE PROCESSUAL
Há processos que duram por mais de cinco ou dez anos a serem tramitados e em muitos casos apenas aguardando a realização de julgamento ou da proferição da decisão final. Os tribunais comuns, cujo órgão superior da hierarquia é o Tribunal Supremo, e o Tribunal Administrativo revelam-se os campeões da morosidade processual. Estes tribunais constituem uma espécie de local onde os processos entram em estado de coma prolongado, ou seja, sine die, sobretudo quando se trata processos de interesse público de matérias de natureza económica/financeira, política ou que envolve altos dirigentes do Estado ou ainda processos que visam a protecção dos direitos humanos, incluindo processos relativos ao pagamento de indeminização, acesso à saúde, educação e ao emprego por parte dos cidadãos, só para dar alguns exemplos que relevam para o prejuízo da salvaguarda do efeito útil dos processo judiciais ou da justiça. Os processos no âmbito da proteção dos direitos das comunidades afectadas pelos grandes investimentos, com destaque para a indústria extractiva são evidências da morosidade processual propositada. O Tribunal Administrativo leva uma eternidade para decidir sobre determinado processo e muitas das vezes profere seus Acórdãos, excessivamente demorados, escudando-se em questões meramente formais que obstam ao conhecimento do mérito da causa, como é o caso da falta de constituição de advogado ou falta de indicação da parte contra-interessada no processo ou caducidade do direito de interposição do processo ou ainda incompetência do tribunal. Ora, não é compreensível durar com um processo cinco, dez ou mais anos para decidir com base em questões de mera formalidade, sem discutir o fundo da causa, quando apreciação processual das questões formais pode ser feita em poucos meses.
Outrossim, o Ministério Público tem dificuldades em tramitar, com a necessária celeridade, os referidos processos quentes em que estão implicados altos dirigentes do Estado ou em que estão em causa os interesses políticos do Partido no poder ou ainda em que está em causa a responsabilidade do Estado por violação dos direitos humanos e liberdades fundamentais dos cidadãos.
As providências cautelares, que são processos de natureza urgente nos termos da lei, também são remetidas para as gavetas judiciais da morosidade processual e aqui o Tribunal Administrativo também se destaca pela negativa, na medida em que os Juízes Conselheiros do mesmo têm plena consciência de que não vão ser sujeitos a qualquer responsabilização por essa conduta ociosa em prejuízo da realização da justiça pelo cidadão.
A lei não é clara quanto a responsabilização contra os magistrados pela prática da morosidade processual em prejuízo do acesso à justiça. O juiz pode ficar uma eternidade sem proferir sentença ou Acórdão e não é responsabilizado por isso. A lei não indica de forma expressa e inequívoca a sanção a aplicar aos magistrados judiciais por violação das normas sobre o prazo judicial para a práctica de actos pelos mesmos.
No mesmo sentido, a lei não especifica a sansão a aplicar os magistrados do Ministério Público por violação dos prazos processuais a que estão obrigados a cumprir nos termos da lei.
Na jurisdição laboral, os processos também tendem a ser objecto de excessiva morosidade para a realização de julgamento, uma vez praticados todos os actos processuais necessários para o efeito. Há cidadãos que aguardam a realização de julgamento dos seus casos há mais de dois anos. Nos casos de despedimento dos trabalhadores e que reivindicam indeminização no tribunal por despedimento sem justa causa é extremamente doloroso e injusto a longa espera, sobretudo quando devem pagar os elevados encargos judiciais enquanto estão na condição de desempregados e sobretudo quando são a parte vencida no processo.
Regar geral, do ponto de vista de normas internas da corporação, os magistrados judiciais são obrigados a cumprir metas em termos de números de processos julgados, o que releva para a avaliação do desempenho do magistrado e por vezes são distinguidos por atingir essas metas, uma espécie de premiação. Curiosamente, trata-se de uma avaliação quantitativa e não necessariamente qualitativa. Não interessa a qualidade das decisões, o tipo e a complexidade do processo em causa. Daí que, por exemplo, nos processos crimes, o juiz ou juíza que julga vários processos sumários-crime, que geralmente não são complexos, independentemente de julgar sem fundamentar devidamente as suas decisões, é percebida como tendo bom desempenho processual.
CONCLUINDO
São significativos os casos em que os cidadãos perdem interesse pelos seus processos judiciais devido a irrazoável morosidade chegando ao ponto dos tribunais julgarem extinto o processo por alegada falta de interesse do autor do mesmo. O pior é que com essa decisão o tribunal cobra coercivamente as custas do processo à vítima da morosidade processual. Curiosamente, nestes casos de cobrança do valor das custas judiciais os tribunais são altamente céleres e implacáveis.
Os tribunais hipotecam as vidas dos cidadãos que vivem reféns do desfecho dos seus casos numa difícil e penosa gestão de expectativas.
Pelo que, urge uma “task force” séria e eficaz que congregue advogados, magistrados judicias e do ministério público, Provedor de Justiça, Comissão Nacional dos Direitos Humanos, bem organizações da sociedade civil relevantes para esta matéria com vista a uma investigação e monitoria da morosidade processual, bem como para a reforma legal sobre a responsabilização dos magistrados pela morosidade dos processos. É, pois, preciso colocar fim a esta prática injusta, legalizada, institucionalizada e recorrente no judiciário.
Por: João Nhampossa
Human Rights Lawyer
Advogado e Defensor dos Direitos Humanos
Vi a miúda agachando-se com leveza e apanhou um caco que sobrou de uma garrafa partida na rua de pavet que sai da Fonte Azul à Escola Primária 1º de Maio. Havia outros pequenos pedaços de vidro espalhados no chão, e a menina recolheu tudo, com as mãos nuas. Tirou da pasta um caderno de onde rasgou uma folha e juntou nela os fragmentos, depois caminhou em direcção ao depósito de lixo que serve o mercado ali perto, e atirou delicadamente o embrulho.
Deve ter por aí nove/dez anos, é por isso que aquele gesto comoveu-me. Fiquei mais sentido ainda porque a menina, pelas características, provavelmente vem de uma família pobre, deduzi isso pelos chinelos de borracha que usava, velhos, segurados por arames em ambos os pés. Outro detalhe que notei nela é a camisa de uniforme, remendada, e a saia azul desbotada, com a baínha mal feita.
Faz frio por estes dias e a menina não está agasalhada, segura a pasta apertada ao peito para aquecer os pulmões, e naquela posição parece um um jogador de rugby que corre. Ao encontro da luz. A pele dela não brilha, então pode estar a passar privações em alimentação e sobre isso eu não tenho a menor dúvida. Mas mais do que todas essas contrariedades, podemos estar perante o samaritano que atrasou a sua ida à Igreja para salvar um homem bêbado ferido pelos bandidos. E esta menina atrasa à escola para retirar cacos da rua.
Invadiu-me a vontade de persegui-la, mas ela corria, alegre, com os livros sobre o peito, e vi-a depois encaixada no cacho dos colegas que também corriam ao chamamento do sino. Era assim que começava a minha manhã, desvancendo-me os pensamentos de que não vale a pena lutar porque o sinal está fechado para nós. Afinal vale a pena! Tudo a vale a pena quando a alma não é pequena, como a desta menina que caminha por cima de todos os cactos, com os pés nus, sem ser ferida.
Passado um tempo volto a vê-la no mesmo lugar, a voltar da escola, meu coração perdeu o compasso. Em vez de chama-la ao ponto onde eu estava, fui ter com ela, mesmo assim com medo de que as minhas palavras fossem inconsequentes.
- Olá, menina!
- Olá.
- Tudo bem?
- Estou bem, obrigada.
- Como é que te chamas?
- Dorotéia.
Perguntei-a se se lembrava do dia em que ali mesmo retirou cacos de vidro espalhados no chão, e ela disse que não. Não se lembrava. E é isso mesmo, quem faz o bem com toda a alma, não faz para se recordar, nem para ser visto!
- És uma menina abençoada.
- Porquê?
Se eu a dissesse que Dorotéia significa “Dádiva Divina”, eventualmente a miúda podia não entender. Mas eu entendi que Dorotéia é uma menina profunda. Tem um rio abundante por dentro, e uma enorme albufeira nos olhos-